São Paulo, Domingo, 15 de Agosto de 1999
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Em "Amor para Sempre", Ian McEwan mantém seu fascínio pela aberração
Um flerte com o horrível

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

O primeiro capítulo deste romance, "Amor para Sempre", já foi publicado pelo Mais! há alguns meses; tem a concisão e o poder sugestivo de um conto magistral. Mas a história continua.
Tudo começava com um acidente horrível. O narrador, fazendo um piquenique com sua mulher, ouve gritos: é um balão desgovernado, com uma criança dentro. Várias pessoas tentam segurar as cordas do balão, mas o vento é forte, e todas, menos uma, largam as cordas. Todos se salvam, exceto o homem que não quis se soltar a tempo e termina despencando do céu.
Esse primeiro capítulo tem uma narrativa tão tensa, envolve problemas morais tão ricos, apresenta com tal sutileza as relações entre casamento e catástrofe, que poderíamos parar por aqui.
Ocorre que Ian McEwan não se contentou com esse "tour de force" inicial e tirou um romance inteiro da situação que brilhantemente descreveu. O resultado é um pouco decepcionante.
Quem leu outros romances do autor, como "Cães Negros" e "Ao Deus-Dará", já publicados no Brasil pela Rocco, conhece a atração que Ian McEwan tem pelos casos-limite, pela patologia sexual, pela violência, pela aberração.
É como se, em "Amor Para Sempre", Ian McEwan tentasse moderar esse gosto. Mesmo assim, toda a história do livro se organiza em torno de um personagem psicopata, que nutre uma obsessão amorosa pelo narrador.
Essa doença passional dá coerência, ritmo e suspense ao romance. Mas diminui, a meu ver, a grandeza e a complexidade que o primeiro capítulo do livro sugeria.
McEwan tem prazer quando a tragédia intervém no cotidiano; gosta quando a história desanda em crime, loucura, obsessão. O instinto da tragédia tende a prejudicar sua excepcional sutileza narrativa. A gestualidade chocante contrasta com o controle da escrita, com o senso do segredo que ele cultiva tão bem. De certo modo, "Amor para Sempre" é um livro que se autobanaliza injustamente.
Mas talvez esta resenha vá ficando injusta. Uma característica das boas obras de arte é que podemos resumi-las de inúmeras maneiras; podemos ver dez coisas como se fossem sua mensagem essencial. Vai aqui uma sugestão.
O narrador do romance é um jornalista especializado em temas científicos, materialista, atento às evidências objetivas. Vê-se envolvido num quadro de paranóia e perseguição. A arte de McEwan está em nos fazer desconfiar das provas e certezas que o narrador acumula ao longo da história.
Estaríamos, então, diante de um romance sobre a certeza -e sobre o quanto de certeza é preciso para consolidar ou arruinar um casamento.
Proponho essa leitura um pouco decepcionado com o resultado final. Não sei se McEwan é um escritor que se envergonha da própria sutileza, investindo demais na apelação cinematográfica, ou se sua sutileza é tanta que termina embrutecendo os personagens e o próprio leitor.
Ele flerta muito, sem dúvida, com o horrível. Elogiá-lo ou criticá-lo é quase como desafiar as superstições que seus livros sabem sugerir. Esse romancista tem parte com o demônio. É uma grandeza e uma limitação.



A OBRA
Amor para Sempre - Ian McEwan. Trad. Paulo Reis. Rocco. (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/507-2000). 260 págs. R$ 26,00.




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