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Em "Amor para Sempre", Ian McEwan mantém seu fascínio pela aberração
Um flerte com o horrível
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
O primeiro capítulo deste romance, "Amor para Sempre", já
foi publicado pelo Mais! há alguns meses; tem a concisão e o
poder sugestivo de um conto magistral. Mas a história continua.
Tudo começava com um acidente horrível. O narrador, fazendo um piquenique com sua mulher, ouve gritos: é um balão desgovernado, com uma criança
dentro. Várias pessoas tentam segurar as cordas do balão, mas o
vento é forte, e todas, menos uma,
largam as cordas. Todos se salvam, exceto o homem que não
quis se soltar a tempo e termina
despencando do céu.
Esse primeiro capítulo tem uma
narrativa tão tensa, envolve problemas morais tão ricos, apresenta com tal sutileza as relações entre casamento e catástrofe, que
poderíamos parar por aqui.
Ocorre que Ian McEwan não se
contentou com esse "tour de force" inicial e tirou um romance inteiro da situação que brilhantemente descreveu. O resultado é
um pouco decepcionante.
Quem leu outros romances do
autor, como "Cães Negros" e "Ao
Deus-Dará", já publicados no
Brasil pela Rocco, conhece a atração que Ian McEwan tem pelos
casos-limite, pela patologia sexual, pela violência, pela aberração.
É como se, em "Amor Para
Sempre", Ian McEwan tentasse
moderar esse gosto. Mesmo assim, toda a história do livro se organiza em torno de um personagem psicopata, que nutre uma obsessão amorosa pelo narrador.
Essa doença passional dá coerência, ritmo e suspense ao romance. Mas diminui, a meu ver, a
grandeza e a complexidade que o
primeiro capítulo do livro sugeria.
McEwan tem prazer quando a
tragédia intervém no cotidiano;
gosta quando a história desanda
em crime, loucura, obsessão. O
instinto da tragédia tende a prejudicar sua excepcional sutileza
narrativa. A gestualidade chocante contrasta com o controle da escrita, com o senso do segredo que
ele cultiva tão bem. De certo modo, "Amor para Sempre" é um livro que se autobanaliza injustamente.
Mas talvez esta resenha vá ficando injusta. Uma característica das
boas obras de arte é que podemos
resumi-las de inúmeras maneiras;
podemos ver dez coisas como se
fossem sua mensagem essencial.
Vai aqui uma sugestão.
O narrador do romance é um
jornalista especializado em temas
científicos, materialista, atento às
evidências objetivas. Vê-se envolvido num quadro de paranóia e perseguição. A arte
de McEwan está em nos fazer
desconfiar das
provas e certezas que o narrador acumula
ao longo da
história.
Estaríamos,
então, diante
de um romance sobre a certeza
-e sobre o quanto de certeza é
preciso para consolidar ou arruinar um casamento.
Proponho essa leitura um pouco decepcionado com o resultado
final. Não sei se McEwan é um escritor que se envergonha da própria sutileza, investindo demais
na apelação cinematográfica,
ou se sua sutileza é tanta que
termina embrutecendo os
personagens e
o próprio leitor.
Ele flerta
muito, sem dúvida, com o
horrível. Elogiá-lo ou criticá-lo é quase como desafiar as superstições que seus livros sabem
sugerir. Esse romancista tem parte com o demônio. É uma grandeza e uma limitação.
A OBRA
Amor para Sempre - Ian McEwan. Trad. Paulo Reis. Rocco.
(r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP
20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/507-2000). 260 págs. R$ 26,00.
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