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LITERATURA
Leia conto inédito de Paulo Leminski, escrito em 1986
Céu embaixo
PAULO LEMINSKI
17
Janelas, escancaradas janelas do
17º andar, aqui vou eu, aqui vai
toda essa minha estúpida vontade
de apagar a luz, única maneira decente de apagar a dor.
16
Décimo sexto andar. Até aqui,
tudo bem. A temperatura está a 17
graus, o céu azul, e a lei da gravidade continua funcionando com
o costumeiro rigor. Quem partiu,
tem que chegar.
15
Ao passar pelo 15º andar, já não
acho mais que quem partiu tem
que. Está provado que é possível,
em certos casos, partir sem chegar
a. Nesses casos, se diz, houve empate. Eu não jogava pelo empate.
Jogava pelo escândalo, vitória ou
derrota. Foi vitória? Derrota? Tem
gente que prefere abrir o gás. Tem
quem se dedique à pesca submarina. Em nenhum desses casos, o
fim é algo de último, a meta não é
definitiva. Qual era o jogo dela?
Fosse qual fosse, amigos, amigos,
jogos à parte.
14
Só quem já caiu de um 14º andar
pode imaginar o que senti quando. Quando foi mesmo? Será que
foi? Ou foi um peso que tirei de cima de mim? Peso por peso, prefiro o meu, que, pelo menos, me leva para algum lugar.
13
Pronto. Treze é meu número de
azar favorito. Tenho outros números de azar. Um, dois, três,
quatro, cinco, seis, sete, por exemplo, essas coisas, enfim, que atravessam as réguas de cálculo. De
todos, 13 é o meu predileto. Que
foi que fiz para merecer cair até o
13º andar, donde se descortina
um relance do Atlântico? Quem
sabe eu não devia ter, vocês sabem. Vai ver, aquela nuvem lá
longe não passa de um eco de um pensamento meu. A raiva é sábia.
12
Alguma coisa não pára de me
dizer, não devia ter vindo. Eu sabia que a comida era péssima, o
atendimento sempre ficava a desejar. Mas, depois de vindo, como
desvir? O 12º é sempre o mais filosófico. Aquele onde o ato de pensar fica mais ridiculamente genérico. Cair não é genérico. Cair é a
coisa mais natural do mundo.
Cair é lógico. Podem perguntar
para qualquer pedra do planeta
Terra.
11
O 11º andar é sempre um caso à
parte. Talvez melhor dissessem
um caos à parte. Mas isto não seria correto. O correto consiste em
dizer: o 13º andar, donde se descortina um relance do Atlântico,
sim, o mais correto, é deixar cair.
10
Não sei como suporto esta situação. É absolutamente ridículo.
Só porque alguém saltou do 17º
andar de um edifício não quer dizer necessariamente que tenha
que chegar até um, digamos, décimo andar. O décimo andar, em
casos de queda, é objeto e motivo
de lendas e chacotas entre muitos
povos primitivos que, absorvidos
por outros afazeres mais prementes, deixaram-nas cair no esquecimento, onde jazem até hoje. Mas
jazem muito bem. As lendas sobre o décimo andar, ainda vai haver quem as conte. Palavra de honra.
9
Que frio. Bem que minha mãe
falou, leva um casaco. Sempre assim. A cabeça não pensa, o corpo
é que sofre. O que eu queria mesmo era ficar para sempre no 12º
andar.
8
Ela, ela mora no 12º andar. Ao
passar, quase dei um alô. Ela não
entenderia. Telefonaria para a
mãe. Fritaria um ovo. No máximo, olharia para baixo. Ou para
cima, para ver de onde eu tinha
vindo.
7
Parece mentira, mas cheguei ao
7º andar. A que ponto chegamos!
Nessa velocidade, a lembrança do
12º andar parece apenas uma
lembrança. A física ensina que os
corpos têm sua queda acelerada à
medida que se aproximam do
destino. Não vejo por que deveria
ser diferente comigo. A lei da gravidade é a mais democrática de
todas. Rege, com idêntico rigor,
gregos e troianos, jóias e paralelepípedos, impérios e pétalas de
magnólia. Sete é conta de mentiroso. Ela me mentiu. Nada mais
fácil que mentir que se ama alguém. Basta dizer: eu te amo.
Quem vai saber? Como medir?
Como provar? As palavras também estão sujeitas à lei da gravidade?
6
No sexto, fica a administração. É
o andar mais frio e mais distante.
É onde se tramam as grandes negociações, onde ficam os cofres
com os segredos indecifráveis.
Chegar ao sexto andar é a ambição de todo corpo que cai. Os que
não. A poucos é dada essa proeza.
Os que fracassam, fatalmente,
continuarão caindo até o quinto,
onde ficam os infernos.
5
Do antigo inferno, o moderno
só traz o nome. Na verdade, o inferno de hoje, no quinto andar, é
um dos andares mais agradáveis
do edifício, dispondo de amplas
instalações, sala, cozinha, banheiro, área de serviço e quarto de empregada. Os banheiros são revestidos de material à prova de fogo,
precaução inútil, já que neste prédio raramente ocorre algum incêndio de proporções catastróficas. Da janela do quinto andar,
avista-se o letreiro que diz, PROIBIDO CAIR.
4
Ninguém nunca soube para que
servia o quarto andar. Sempre se
imaginou que era uma espécie de
depósito onde se guardavam as
coisas que não serviam mais para
os andares de cima, garrafas vazias, móveis usados, lâmpadas
queimadas, livros já lidos, óculos
quebrados, espelhos, diários, relógios.
3
Deus queira que esta saudade
do 12º permaneça acesa durante
todo este andar, durante o frio, o
vento, a angústia, a raiva e a força
maior deste poder que me chama.
2
Não há muito a dizer, nunca há.
Meia dúzia de palavras resolvem
problemas de mil anos atrás. Fomos nos dizendo cada vez menos.
Dizer sempre é uma outra coisa.
1
O chão é duro.
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