São Paulo, Domingo, 15 de Agosto de 1999
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PONTO DE FUGA

BB

JORGE COLI
especial para a Folha, em Nova York

Brigitte Bardot? Bertolt Brecht? Não, Bernard Berenson, que assinava sempre com essas iniciais. Foi um mítico "atribuidor", especialista específico dentro da história da arte que se consagra a identificar quadros de autoria obscura. Sua biografia, "Being Bernard Berenson" (Penguin), escrita por Meryle Secrest, faz um ótimo balanço do papel que exerceu no conhecimento artístico de nosso tempo. Berenson teve um prestígio enorme. Em sua "villa" toscana, "i Tatti", recebia milionários e soberanos. Não foi um universitário. Era antes um intelectual diletante, de olho muito agudo. Atribuir não é uma atividade inocente. Ela repercute além do saber desinteressado. Interfere diretamente no mercado das artes, fazendo subir ou cair, pela convenção de um nome, o preço de um quadro. Pouco importa se a idéia de autor, na época em que a pintura foi feita, fosse inteiramente diversa da do nosso tempo. Definir uma autoria individual é como endossar um cheque e receber, por isso, uma substancial porcentagem. Berenson foi o grande conselheiro de americanos ricos e sem cultura, mas compradores de arte. Graças a ele, muitas grandes obras estão hoje nos museus dos EUA. Comprometeu-se de modo voluntário ou não com marchands mais ou menos escrupulosos. Sua trajetória biográfica é uma lição para a história da arte, beneficiária e vítima. Como reclamava Francastel: "É muitas vezes impossível pôr um nome numa obra: nem por isso ela perde sua beleza e importância".

Reencarnação - O atribuidor, em verdade, emite apenas uma opinião. Sua autoridade, além dos acertos, vem, em boa parte, da aptidão em convencer seus interlocutores, por meio de argumentações eruditas e sutis, nas quais o estilo escrito e o carisma pessoal possuem um peso considerável. Seu poder é grande, quase mágico: de um certo modo, ele torna-se parceiro do pintor ou do escultor morto há muito tempo. Há, às vezes, enganos espetaculares, logo esquecidos dentro da história e da crítica das artes, por um pacto geral de silêncio que parece ser regra. O erro mais sensacional vincula-se a Van Meegeren, falsário de gênio, que entendeu perfeitamente as expectativas dos peritos e pintou quadros que foram, sem hesitação, reconhecidos como obras-primas de Vermeer, imenso artista holandês do século 17. No pós-guerra, acusado de colaboração por ter vendido um de seus Vermeer a Goering, confessa as fraudes para evitar a prisão. Não fora isso, é possível que até hoje admirássemos seu "Cristo em Emaús" por entre as maiores obras de todos os tempos. O caso de Van Meegeren ensina saudável desconfiança.

Gargalo - O conhecimento intuitivo do atribuidor permite agrupar, por afinidades estilísticas, obras dispersas. Mas o mercado das artes exige nomes e, não raro, a atribuição ultrapassa os limites seguros. É possível chegar perto do ponto de origem de um quadro, que pode ser, por exemplo, de Giorgione ou Ticiano. Como então distinguir na última instância? Os critérios não são apenas intelectuais. Assim, é importante saber que um Giorgione, porque mais raro, vale bem mais do que um Ticiano.

Arte - Logo depois do julgamento de Van Meegeren, uma pesquisa de opinião mostrou que ele era, para os holandeses, o homem mais popular do país, perdendo só para o primeiro-ministro. Os falsos e os falsários fascinam. Em segredo, desmontam a pose e a autoridade dos especialistas. O engodo foi um dos domínios preferidos de Orson Welles: seu último filme, "F for Fake", de 1973, um ambíguo documentário, diverte-se em empregar impostura e falsificação nas artes, com ironia e gênio.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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