São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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+ brasil 503 d.C.

Diário em Dubrovnik

Luiz Costa Lima

Neste período do ano, amanhece cedo em Dubrovnik, Croácia. Às seis da manhã, o sol brilha e aquece. Os pombos arrulham, os pássaros piam, trinam e riscam o azul safira do céu, lançando-se em desafios de mergulhos. Com o tormento do fuso horário e uma noite no avião, deitei-me para logo abrir os olhos. Intransigência do relógio biológico. Sem força de barganha, tenho de esperar a hora em que o café da manhã começa a ser servido. Resolvo sair e passear à frente do pequeno e simpático hotel. Descortino a baía e o porto de Gruz, sobre o Adriático. Um solícito transeunte me informa que, do outro lado da baía, a antiga aristocracia croata, até fins do século 19, tinha suas "villas" e palácios. Distingo-os por sua diversa arquitetura. Caminhamos um pouco e ele me aponta uma vetusta construção, hoje Faculdade de Turismo. Ao voltar, continuava fechada. Os alunos deviam estar em aulas práticas. Seja o que for que ali estudam, esse é o lugar ideal: Dubrovnik depende do turismo. Confirma-o a algaravia de línguas que encontro no café do hotel. Como neste primeiro dia só tenho compromissos no fim da tarde, volto ao meu quarto. As próximas horas hão de ser inventadas. Os pássaros continuam sua festa de sons e acrobacias. Enquanto os mais próximos fazem vôos rasantes em torno de minha janela, os distantes formam um estranho solo de assobios saltitantes. Por saber dos horrores da guerra recente, culpo-me da paz de que usufruo. Há apenas dez anos todo o mundo falava dos conflitos dos Bálcãs. Depois de uma segunda correção, aprendo que não se lhe deve referir como guerra civil. Mas a sensação de culpa foi ligeira. Do contrário, as horas não teriam passado tão rápidas. Sou apresentado aos outros membros do simpósio e um ônibus nos leva às proximidades do palácio do prefeito, no fim da grande rua central. O discurso de boas-vindas de uma autoridade declara, por meio do tradutor, que ali fomos convidados pelo empenho da cidade em mostrar ao mundo que, depois da destruição, a vida retoma seu rumo. Conta-nos um pouco do que se dera entre 1991 e 1992. Um conflito antes de etnias e religiões do que de ideologias. A ex-Iugoslávia, cuja unidade fora mérito de um herói da resistência contra os nazis, o marechal Josep Tito (1892-1980), está hoje repartida em cinco repúblicas (a Croácia, onde estamos, a Iugoslávia [reduzida à Sérvia e Montenegro", a Eslovênia, a Bósnia-Herzegóvina e a Macedônia). Cerca de 70% dos tetos da cidade velha foram destruídos.

Pontos simbólicos
Situando seus canhões no alto da colina paralela à cidade e ao mar, o Exército sérvio-montenegrino dera preferência aos pontos simbólicos: o antigo mosteiro que abriga a primeira farmácia da Europa, o palácio renascentista-veneziano, o hotel que vinha do período austro-húngaro (hotel Imperial), a construção em 1971 do Inter-University Center (IUC), com suas bibliotecas e salas de conferência, onde se realizou o simpósio de que participei, humildes casas assobradadas, que se acotovelam em ruas estreitas. Porque Dubrovnik fora antes considerada patrimônio da humanidade, a Unesco tem ajudado na sua reconstrução. As perdas, contudo, sobem a milhões de dólares e o dinheiro não basta para recuperar a rede hoteleira. A guerra dá lugar ao círculo vicioso: decresce a entrada de turistas e, sem eles, o ingresso de capital. A reconstrução se torna mais lenta. O típico turista nem sequer nota. Chega até a duvidar: "Você não estará se referindo à Guerra do Golfo ou ao Afeganistão?!". Ao chegar, no dia seguinte, ao IUC, procuro informar-me melhor. A bibliotecária me fala das perdas irremediáveis e me oferece algumas fotos do que fora arrasado. Eu mesmo fotografo a reconstrução do incendiado hotel Imperial. Já recupera sua dignidade, mas os jardins que o circundavam não mais existirão. No corredor de saída do IUC, está exposto um informe do diretor: o general responsável pela "razzia" da cidade encontra-se entre os seis criminosos de guerra, sob julgamento em Haia. Querendo saber mais sobre o período da guerra, um amigo croata me fala doutros amigos, de anos passados. Assumiram outras posições -um, particularmente, se destacara e chegara a vice-reitor da Universidade de Zagreb [capital da República da Croácia". Como acrescenta ainda não haver uma análise exaustiva sobre o conflito, descarto as publicações que encontro. Basta-me o testemunho das pessoas em que confio. Apenas procuro com os olhos a colina de onde vieram os tiros. Em seu topo, junto de uma antena de TV, permanece intacta a fortaleza construída por Napoleão -até sua invasão, Dubrovnik fora uma república independente. Notando minha curiosidade, um taxista propõe me levar às zonas não-reconstruídas; diz que as aldeias vizinhas e Sarajevo permanecem em estado lastimável. Atento à pobreza de meu bolso tropical, prefiro seguir as sessões do simpósio.

Inter-relações
Não haveria lugar mais adequado para discutir o tema que nos reúne: a contingência na história. Mas a rigidez acadêmica pouco aproveita a familiaridade entre tema e lugar. Há mesmo palestrantes que reclamam da importância, para eles excessiva, dada à contingência. Ou outros que acentuam a obra de arte ter por alvo domar o contingente. (Por que não acrescentam: que o doma, ao mesmo tempo em que o produz?! Do contrário, o novo só produziria epígonos.) A rigidez, porém, não impede que se levante o ponto básico: contingência histórica não é sinônimo de acidente; é sim o que se opõe ao que se considerara necessidade histórica. Eu estaria mais bem preparado se houvesse antes lido o último tomo da série "Poetik und Hermeneutik", dedicado exatamente a "Kontingenz" [editado por Gerhart v. Graevenitz e Odo Marquard com apoio de Matthias Christen, München. (Poetik und Hermeneutik; 17)", que circula desde 1998. Mas só poderei recuperar a falha ao voltar para casa.
É outra coisa que me prende a atenção: embora o tema tenha assento direto na teoria da história, foi ele escolhido por uma associação de literatura comparada. É surpreendente e auspicioso. Pois indica que os especialistas, entre graus diferentes de sensibilidade, reconhecem que não podem manter suas compartimentações estreitas. Porque concerne a um fenômeno histórico, o contingente -o imprevisível ao que até então se tomava como necessário- se mostra indispensável também ao especialista em literatura (e arte).
De tal reconhecimento, derivam inter-relações antes desprezadas; além do mais, é correlato ao desprestígio das visões finalistas da história -os períodos se sucedendo, como se guiados por um motor surdo, que se aproveitariam dos homens e das visões nacionais segmentadas-, fulano que só tem olhos para a produção cultural de um certo país ou de certo período ou de um único autor.
Por isso a comunicação de que guardei mais forte impressão tematizava as relações entre o politólogo Carl Schmitt (1888-1985), o marxista e místico (ou místico e marxista) Walter Benjamin (1892-1940) e o teatrólogo Heiner Müller (1929-95), a partir do que escreveram sobre "Hamlet". Ao procurar o autor, ele me diz que foi convidado a participar de um colóquio em Curitiba sobre Mikhail Bakhtin. Será um sinal de que nossa pasmaceira intelectual é tão-só aparente?


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "Intervenções" (Edusp) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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