São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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Ponto de Fuga

Em surdina

Jorge Coli
especial para a Folha

Limitar-se, reduzir, concentrar-se no pequeno: certos artistas encontram a felicidade em modos menores. Propõem -e ensinam- o recolhimento; inventam jardins isolados de quaisquer agitações. Com nuanças diminutas, tecem um infinito sugestivo e silencioso. Alcançam, pela poesia delicada e fina, as harmonias mais plenas. Os "Microcosmos", de Bartók (1881-1945), os quadros de Chardin, de Vermeer, de Klee, concentram esses poderes. São criadores que se mantêm a vida toda fiéis a si mesmos. Suas trajetórias eliminam grandes saltos e guinadas. Tornam e retornam às constantes que sempre os fascinaram, renovando-as com cuidado, em passos de gato.
Arthur Luiz Piza pertence a esse naipe. Os relevos que inventou, de 1958 a 2002, menos conhecidos talvez que suas gravuras, podem ser vistos na retrospectiva apresentada pela Pinacoteca do Estado, em São Paulo [tel. 0/xx/11/229-9844". Retoma, sem cessar, pequenos fragmentos recortados, de modo artesanal, em retângulos, quadrados, triângulos, dispondo-os sobre uma superfície que os sustenta. Com eles, organiza aglutinações, dispersões, ritmos, fluxos, preferindo agrupá-los no centro, de modo largo ou estreito, criando sempre novas relações com o fundo. As metamorfoses de cores, de matérias, de evocações se sucedem. Quando o artista passa a espetar, sobre sisal, unidades metálicas, há uma esplêndida dilatação de escala. Outras pulsações vibram no papel graças a incisões que são como vetores. Mas estas enumerações são toscas. As obras de Piza fogem das palavras para melhor se oferecerem no silêncio. Segredo - Como é possível filmar a morte? Não uma representação da morte, uma bala na cabeça, um corpo apodrecido, uma agonia dramática, mas a morte cotidiana, que se esgueira nos segundos de cada dia, espreitando, para surgir inesperada ou conhecida?
Manoel de Oliveira está com 93 anos. Deve ser o único diretor de cinema, hoje em atividade, que tenha começado a trabalhar nos tempos do cinema mudo. Domina a imagem, domina o som, criando descompassos entre eles, descompassos que se carregam de sentidos. Por exemplo, mostra sapatos novos, mostra sapatos velhos, enquanto pessoas conversam, e os sapatos contam a impossibilidade de voltar atrás.
"Vou para Casa" (2001) é um filme delicioso e simples, que parece passar em cinco minutos. "Vou para Casa" é um filme implacável, que impõe a consciência da morte em cada segundo.
Ele começa com uma peça de Ionesco, em que o rei pergunta: "Por que eu nasci, se não era para sempre?". O teatro, a literatura, mesmo o cinema podem tratar da velhice e da morte; Michel Piccoli representa o papel de um ator idoso, respeitado e reconhecido. Teatro e cinema são hábeis em criar simulacros de juventude: em "Vou para Casa", a maquiadora, com gestos seguros, devolve uma aparência jovem ao rosto envelhecido, cena que faz pensar no Visconti de "Morte em Veneza", de 1971.
Mas Manoel de Oliveira não discorre sobre a morte: faz a ilusão do cinema dizer que é ilusão, e faz o cinema ir muito fundo, para além da ilusão. Costura - É engano pensar que um artista trabalha sobre "questões", que "interroga" vida, morte, sexualidade ou o que se quiser. Isto é domínio do filósofo. O artista faz obras. Por imateriais que sejam, partem sempre de uma espessura. Alguns mestres sábios ensinaram: arte não é um meio, é um modo de ordenar. A obra, e não o artista, cria entendimentos mudos, alusivos, intuitivos. É nela que se encontram, sem conceitos nem enunciados, pensamento e interrogação.
Penélope - Ainda na Pinacoteca do Estado (SP), uma exposição consagrada a Vera Martins reúne seus objetos feitos de tecidos, antes desfiados que fiados. Eles se enrolam, se fazem e se desfazem. Estiram-se, animados, em tramas largas, deixando visíveis os fios; escorrem em abandono; aconchegam-se em corolas; determinam transparências, orifícios ou obstruções. Paira uma calma feminina em tudo isso, um acabamento cuidadoso, em que o trabalho apaga seus próprios traços. E onde, também, se incorpora algo de ritual, de solene, de sagrado, escondendo segredos e presságios.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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