São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ história
Para Chartier, incorporação da ótica dos vencidos pela historiografia não oculta desigualdades
O século dos hibridismos

É preciso não sucumbir às ilusões perigosas que fazem pensar que a intensidade recente das trocas e relações signifique a partilha universal dos conhecimentos

Roger Chartier
especial para "Le Monde"

Cerca de 2.200 participantes vindos de 60 países, 103 sessões, 800 comunicações (das quais uma grande parte é acessível no site do congresso: www.oslo2000.uio.no): o 19º Congresso Internacional das Ciências Históricas, realizado em Oslo, em agosto passado, foi um evento grandioso, perfeitamente controlado pelo comitê de organização norueguês. Mas esse congresso não foi mais que um mecanismo bem montado. Ele exprimiu as preocupações ou as dúvidas dos historiadores quanto ao estatuto do saber que eles produzem e à sua responsabilidade na sociedade. As mais violentas das mutações que transformaram profundamente a prática da história neste século vieram do curso das próprias coisas. Wilfred Owen, Geoffrey Hill ou Paul Celan foram os poetas desesperados dos sofrimentos infligidos pelos confrontos impiedosos e sangrentos entre as nações, as classes, os blocos. Os historiadores, como outros, foram intimados a tomar partido, a escolher seu campo e o fizeram às vezes com entusiasmo. A história foi, assim, convocada para a defesa de interesses e de ideologias opostas. Muitas vezes perdeu sua lucidez e mesmo sua alma, quando, por uma causa, forjou falsos documentos e justificações partidárias. Tais práticas certamente não são novas, mas puderam mobilizar, no século 20, os meios inéditos da fotografia, do cinema ou da televisão e se instalar no interior de aparelhos de propaganda poderosos e tirânicos. Mas a história engajada não foi somente submissão cega ou interessada a serviço de propósitos infames.

Voz aos vencidos
Numerosas sessões do congresso mostraram que ela soube igualmente dar voz e existência aos banidos, aos vencidos, aos desfavorecidos. Estes conquistaram o direito à história, uma história da qual não eram apenas vítimas, mas também protagonistas. Sua entrada na cena histórica não pode ser separada das opções corajosas dos historiadores que foram os primeiros a tirá-los do silêncio. Hoje, tal engajamento envolve um duplo risco, como lembraram François Bédarida e Eric Hobsbawm. O primeiro é o da confusão entre a história, entendida como um saber crítico e controlável, e as reconstruções da memória, que mantêm com o passado uma relação afetiva e militante. É verdade que entre história e memória as relações são fortes. De um lado, a história pode contribuir para dissipar as ilusões que por muito tempo extraviaram as memórias coletivas; de outro, as necessidades da rememoração estiveram com frequência na base de investigações rigorosas e originais. Mas nem por isso história e memória são identificáveis. A primeira está inscrita na ordem de um saber universalmente aceitável, "científico". A segunda é movida pelas exigências existenciais de comunidades para as quais a presença do passado no presente é um elemento essencial de seu ser coletivo. Daí o segundo risco que corre uma história esquecida dessa diferença: o do anacronismo. A necessidade de afirmação ou de justificação de identidades construídas ou reconstruídas no mundo atual inspira muito frequentemente uma reescrita do passado que distorce, ignora ou oculta as contribuições do saber histórico controlado. Essa dupla deriva, produzida por reivindicações legítimas em si mesmas, requer dos historiadores vigilância constante. Com efeito, a capacidade crítica da história não deve se limitar à simples recusa das imposturas. Ela pode e deve submeter a critérios objetivos de julgamento falsificações que, sem produção de falsidade, propõem argumentações inaceitáveis. A constatação não deixava de ter ressonância na cena histórica norueguesa, que conheceu, ela também, sua "Historikerstreit", sua "querela dos historiadores", em 1996, quando o historiador Hans Frederik Dahl louvou os livros do "revisionista" David Irving como sendo os mais bem informados sobre a história do nazismo, separando assim radicalmente as opiniões condenáveis do autor e sua competência erudita. Vários historiadores noruegueses, como Rolf Hobson ou Odd-Bjorn Fure, recusaram tal distinção, mostrando que a ideologia de Irving afetava profundamente sua leitura das fontes e a construção de suas demonstrações, como, por exemplo, em sua biografia de Goebbels, a omissão de qualquer menção às câmaras de gás. Ao dedicarem o primeiro grande tema do congresso à "história global", seus organizadores quiseram exprimir a recusa em encerrar a compreensão das evoluções históricas principais no quadro dos Estados-nação, mas também um certo cansaço diante das abordagens monográficas ou microhistóricas que dominaram a disciplina de uns 30 anos para cá. A intenção é louvável, mas não basta para dissipar incertezas quanto à definição mesma dessa história pensada em escala mundial. É uma nova forma dada ao comparatismo, como o havia proposto Marc Bloch, em 1928, numa comunicação que se tornou clássica, pronunciada nessa mesma cidade de Oslo por ocasião do Sexto Congresso Internacional das Ciências Históricas? Deve-se entendê-la num sentido mais braudeliano, como a identificação dos amplos espaços que, como o Mediterrâneo, encontram sua unidade histórica nas redes de relações e de trocas que os constituem? Ou é essa história antes de tudo a dos encontros, das aculturações e das mestiçagens?

Consciência do global
Vários dos participantes do congresso (sobretudo Jürgen Kocka) sublinharam a dificuldade de conciliar as perspectivas dessa história em escala muito ampla com as exigências científicas que definiram a disciplina a partir do exame minucioso das fontes primárias e do conhecimento em profundidade do contexto no qual todo fenômeno histórico particular está situado. Consciente da dificuldade, Natalie Davis indicou sua preferência por uma história que, sem renunciar a suas escalas e a seus objetos clássicos, seja inspirada por uma "consciência da globalidade" que recuse qualquer etnocentrismo e entrecruze os relatos sem relacioná-los a um modelo único de evolução.
Para alguns, o século 20 seria o do "fim" da história ou, pelo menos, o de sua "crise". Como se viu em Oslo, o tempo dos questionamentos foi um tempo de dispersão: as grandes tradições historiográficas, por muito tempo identificadas a uma escola, a uma instituição ou a uma revista, perderam, todas, sua unidade. Romperam-se em proposições diversas, contraditórias, que multiplicaram os objetos, métodos e "histórias".
Isso deve ser deplorado? Não, se pensarmos que o século 20, ferido por tantos horrores e sofrimentos, foi igualmente o século dos encontros e das mestiçagens. Vivê-los no cotidiano nem sempre é isento de tensões e conflitos. Mas, como o mostram as experiências estéticas, os empréstimos recíprocos podem produzir magníficos resultados.
A história do século 20 será caracterizada pelas hibridações: entre tradições, metodologias, disciplinas. Mas, se a construção e a comunicação dos saberes têm suas regras e suas exigências próprias, sabemos que elas são também profundamente dependentes das distâncias que separam os continentes, as nações, os indivíduos. É preciso precaver-se para não sucumbir às ilusões perigosas que fazem pensar que a intensidade recente das trocas e das relações signifique necessariamente a partilha universal dos conhecimentos.
A sociedade dos historiadores reunida em Oslo pareceu fraterna. No entanto ela está marcada por desigualdades e compartimentações. A presença muito pequena dos historiadores do Terceiro Mundo ilustrava tristemente as primeiras, enquanto as referências quase exclusivas a obras ou artigos publicados numa só língua -o inglês- indicavam com força as segundas. Essa constatação não deixa de ter uma certa ironia num tempo considerado como o da comunicação imediata e geral e para um congresso que justamente advogou em favor de uma história mais universal.


Roger Chartier é historiador francês e diretor de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (França). É autor, entre outros, de "A Aventura do Livro" (Ed. da Unesp).
Tradução de Paulo Neves.



Texto Anterior: + autores: Desafios de uma história polifônica
Próximo Texto: + história: Um caso bem brasileiro
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.