|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ história
Para Chartier, incorporação da ótica dos vencidos pela historiografia não oculta desigualdades
O século dos hibridismos
É preciso não sucumbir às ilusões perigosas que fazem pensar que a intensidade recente das trocas e relações signifique a partilha universal dos conhecimentos
Roger Chartier
especial para "Le Monde"
Cerca de 2.200 participantes vindos de 60 países, 103 sessões, 800
comunicações (das quais uma
grande parte é acessível no site
do congresso: www.oslo2000.uio.no): o
19º Congresso Internacional das Ciências Históricas, realizado em Oslo, em
agosto passado, foi um evento grandioso, perfeitamente controlado pelo comitê de organização norueguês. Mas esse
congresso não foi mais que um mecanismo bem montado. Ele exprimiu as preocupações ou as dúvidas dos historiadores quanto ao estatuto do saber que eles
produzem e à sua responsabilidade na
sociedade.
As mais violentas das mutações que
transformaram profundamente a prática da história neste século vieram do curso das próprias coisas. Wilfred Owen,
Geoffrey Hill ou Paul Celan foram os
poetas desesperados dos sofrimentos infligidos pelos confrontos impiedosos e
sangrentos entre as nações, as classes, os
blocos. Os historiadores, como outros,
foram intimados a tomar partido, a escolher seu campo e o fizeram às vezes com
entusiasmo. A história foi, assim, convocada para a defesa de interesses e de
ideologias opostas. Muitas vezes perdeu
sua lucidez e mesmo sua alma, quando,
por uma causa, forjou falsos documentos e justificações partidárias.
Tais práticas certamente não são novas, mas puderam mobilizar, no século
20, os meios inéditos da fotografia, do cinema ou da televisão e se instalar no interior de aparelhos de propaganda poderosos e tirânicos. Mas a história engajada
não foi somente submissão cega ou interessada a serviço de propósitos infames.
Voz aos vencidos
Numerosas sessões do congresso mostraram que ela
soube igualmente dar voz e existência
aos banidos, aos vencidos, aos desfavorecidos. Estes conquistaram o direito à
história, uma história da qual não eram
apenas vítimas, mas também protagonistas. Sua entrada na cena histórica não
pode ser separada das opções corajosas
dos historiadores que foram os primeiros a tirá-los do silêncio.
Hoje, tal engajamento envolve um duplo risco, como lembraram François Bédarida e Eric Hobsbawm. O primeiro é o
da confusão entre a história, entendida
como um saber crítico e controlável, e as
reconstruções da memória, que mantêm
com o passado uma relação afetiva e militante. É verdade que entre história e
memória as relações são fortes. De um
lado, a história pode contribuir para dissipar as ilusões que por muito tempo extraviaram as memórias coletivas; de outro, as necessidades da rememoração estiveram com frequência na base de investigações rigorosas e originais.
Mas nem por isso história e memória
são identificáveis. A primeira está inscrita na ordem de um saber universalmente
aceitável, "científico". A segunda é movida pelas exigências existenciais de comunidades para as quais a presença do passado no presente é um elemento essencial de seu ser coletivo.
Daí o segundo risco que corre uma história esquecida dessa diferença: o do
anacronismo. A necessidade de afirmação ou de justificação de identidades
construídas ou reconstruídas no mundo
atual inspira muito frequentemente uma
reescrita do passado que distorce, ignora
ou oculta as contribuições do saber histórico controlado. Essa dupla deriva,
produzida por reivindicações legítimas
em si mesmas, requer dos historiadores
vigilância constante. Com efeito, a capacidade crítica da história não deve se limitar à simples recusa das imposturas.
Ela pode e deve submeter a critérios objetivos de julgamento falsificações que,
sem produção de falsidade, propõem argumentações inaceitáveis.
A constatação não deixava de ter ressonância na cena histórica norueguesa, que
conheceu, ela também, sua "Historikerstreit", sua "querela dos historiadores",
em 1996, quando o historiador Hans Frederik Dahl louvou os livros do "revisionista" David Irving como sendo os mais
bem informados sobre a história do nazismo, separando assim radicalmente as
opiniões condenáveis do autor e sua
competência erudita. Vários historiadores noruegueses, como Rolf Hobson ou
Odd-Bjorn Fure, recusaram tal distinção, mostrando que a ideologia de Irving
afetava profundamente sua leitura das
fontes e a construção de suas demonstrações, como, por exemplo, em sua biografia de Goebbels, a omissão de qualquer
menção às câmaras de gás.
Ao dedicarem o primeiro grande tema
do congresso à "história global", seus organizadores quiseram exprimir a recusa
em encerrar a compreensão das evoluções históricas principais no quadro dos
Estados-nação, mas também um certo
cansaço diante das abordagens monográficas ou microhistóricas que dominaram a disciplina de uns 30 anos para cá.
A intenção é louvável, mas não basta
para dissipar incertezas quanto à definição mesma dessa história pensada em
escala mundial. É uma nova forma dada
ao comparatismo, como o havia proposto Marc Bloch, em 1928, numa comunicação que se tornou clássica, pronunciada nessa mesma cidade de Oslo por ocasião do Sexto Congresso Internacional
das Ciências Históricas? Deve-se entendê-la num sentido mais braudeliano, como a identificação dos amplos espaços
que, como o Mediterrâneo, encontram
sua unidade histórica nas redes de relações e de trocas que os constituem? Ou é
essa história antes de tudo a dos encontros, das aculturações e das mestiçagens?
Consciência do global
Vários dos
participantes do congresso (sobretudo
Jürgen Kocka) sublinharam a dificuldade de conciliar as perspectivas dessa história em escala muito ampla com as exigências científicas que definiram a disciplina a partir do exame minucioso das
fontes primárias e do conhecimento em
profundidade do contexto no qual todo
fenômeno histórico particular está situado. Consciente da dificuldade, Natalie
Davis indicou sua preferência por uma
história que, sem renunciar a suas escalas e a seus objetos clássicos, seja inspirada por uma "consciência da globalidade"
que recuse qualquer etnocentrismo e entrecruze os relatos sem relacioná-los a
um modelo único de evolução.
Para alguns, o século 20 seria o do
"fim" da história ou, pelo menos, o de
sua "crise". Como se viu em Oslo, o tempo dos questionamentos foi um tempo
de dispersão: as grandes tradições historiográficas, por muito tempo identificadas a uma escola, a uma instituição ou a
uma revista, perderam, todas, sua unidade. Romperam-se em proposições diversas, contraditórias, que multiplicaram os
objetos, métodos e "histórias".
Isso deve ser deplorado? Não, se pensarmos que o século 20, ferido por tantos
horrores e sofrimentos, foi igualmente o
século dos encontros e das mestiçagens.
Vivê-los no cotidiano nem sempre é
isento de tensões e conflitos. Mas, como
o mostram as experiências estéticas, os
empréstimos recíprocos podem produzir magníficos resultados.
A história do século 20 será caracterizada pelas hibridações: entre tradições,
metodologias, disciplinas. Mas, se a
construção e a comunicação dos saberes
têm suas regras e suas exigências próprias, sabemos que elas são também profundamente dependentes das distâncias
que separam os continentes, as nações,
os indivíduos. É preciso precaver-se para
não sucumbir às ilusões perigosas que
fazem pensar que a intensidade recente
das trocas e das relações signifique necessariamente a partilha universal dos
conhecimentos.
A sociedade dos historiadores reunida
em Oslo pareceu fraterna. No entanto ela
está marcada por desigualdades e compartimentações. A presença muito pequena dos historiadores do Terceiro
Mundo ilustrava tristemente as primeiras, enquanto as referências quase exclusivas a obras ou artigos publicados numa
só língua -o inglês- indicavam com
força as segundas. Essa constatação não
deixa de ter uma certa ironia num tempo
considerado como o da comunicação
imediata e geral e para um congresso que
justamente advogou em favor de uma
história mais universal.
Roger Chartier é historiador francês e diretor de
estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências
Sociais (França). É autor, entre outros, de "A Aventura do Livro" (Ed. da Unesp).
Tradução de Paulo Neves.
Texto Anterior: + autores: Desafios de uma história polifônica Próximo Texto: + história: Um caso bem brasileiro Índice
|