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+ história
Escândalo do roubo das jóias da imperatriz Teresa Cristina, em 1882, realçou declínio do Segundo Reinado
Um caso bem brasileiro
Ricardo d'Alencastro
especial para a Folha
Não fosse o grande roubo que o
sucedera, o baile que marcou o
60º aniversário da imperatriz
Teresa Cristina teria passado
incólume. Esquecida da história brasileira, apontada sempre como a princesa siciliana: "Baixa, gorda e, além de tudo, coxa e feia", segundo a historiadora Lilia
Moritz Schwarcz, a discreta monarca, de
repente, se viu envolta num grande escândalo. Roubaram-lhe as jóias, logo
após a recepção oferecida, no paço da cidade, à nobreza da terra, corpo diplomático e parlamentares sobre quem ela
mantinha larga influência.
A imprensa republicana alardeou o
episódio pela corte, afinal era mais um
motivo para desgastar o combalido "império tropical". Antes do escândalo, porém, o mais importante e avançado
-em termos gráficos- periódico da
época, a "Gazeta de Notícias", publicou,
em 14 de março de 1882, data de aniversário de dona Teresa Cristina, a seguinte
notinha, de teor bastante carinhoso:
"Sua majestade a imperatriz completa
hoje 60 anos de idade. À virtuosa senhora, cujas nobilíssimas qualidades lhe têm
valido o amor e o respeito de todos os
brasileiros, apresentamos hoje os nossos
cumprimentos e os sinceros votos que
fazemos pela tranquilidade de sua existência".
Proteção às matas
Dessa forma, a
imprensa fluminense procurou demonstrar o carinho não pela monarquia
brasileira, mas pela imperatriz, que, aos
poucos, tornou suas qualidades caritativas mais ressaltadas que outras, tais como a proteção às matas e pássaros do Rio
de Janeiro, bem como o ensino primário
para os filhos de escravos. No entanto
nem ela seria poupada da crítica ferina
da imprensa republicana. Cinco dias
após o baile, o escândalo veio à tona,
quando a própria "Gazeta de Notícias"
revelou os fatos. No paço de São Cristóvão, onde as jóias foram depositadas na
câmara imperial após os festejos, o armário fora arrombado com um pau, o
cofre levado e o pior: tudo indicava que o
roubo tinha sido realizado por um funcionário da mordomia.
Azar do imperador! Naquele ano, ele
pensara em vender as jóias e investir o
montante, que não era pouco, nas obras
contra a seca que assolavam o Ceará.
Não o fez...
Na corte, os súditos alardeavam: se a
casa imperial foi roubada, como andará
a nossa segurança? Na "Gazeta de Notícias", que fez a melhor cobertura sobre o
escândalo, o noticiário elencava as jóias
roubadas, enquanto a polícia buscava o
gatuno, que fugiu pela janela do paço por
uma corda dependurada.
Segundo o próprio redator do jornal,
somente um colar de brilhantes foi avaliado em cem contos de réis, uma fortuna
para a época. Com a peça, outras 24 foram levadas, além de outras pertencentes a sua majestade, o imperador, e à açafata da imperatriz, a baronesa Josefina
Fonseca da Costa. Um dos colares roubados, por exemplo, continha 36 brilhantes. Outras jóias, por exemplo, foram levadas: uma fivela ou dragona com
dez grandes brilhantes e outros pequenos, além de brincos, diademas, flores,
comendas, insígnias, pulseiras, todos
com brilhantes e pérolas. Tanto diamante bem que poderia enriquecer o ladrão.
"Dá o pé, louro"
Por quase um
mês, as investigações não chegaram a nenhuma conclusão, tendo tanto o chefe de
polícia, Trigo do Loureiro, quanto o tenente Lírio angariado, nas ruas da corte,
alcunhas como: "Louro do Trigueiro",
"Dá cá o pé, meu louro". Diante de tanta
imoralidade, o Parlamento protestou e,
pela primeira vez, o ministro da Justiça,
em 30 de março de 1882, exigiu punição.
Roubar era crime, sobretudo em se tratando das jóias da "boa mãe dos brasileiros". Mas o pior ainda estava por vir: o
gatuno finalmente foi pego.
Tratava-se de Manuel Paiva, cuja fama
de comparsa do imperador Pedro 2º havia ultrapassado os muros do paço de
São Cristóvão, percorrido as ruas do Rio
de Janeiro e, mais longe ainda, figurado
nos cadernos do diário da condessa de
Barral. De tão íntimo, ele participou da
comitiva de viagem ao estrangeiro de
dom Pedro 2º, em 1876.
Haver, de fato, uma parceria entre o
monarca e o lacaio é uma realidade tão
evidente que, nos três folhetins inspirados no escândalo -"As Jóias da Coroa",
de Raul Pompéia, "Um Roubo no Olimpo", de Artur Azevedo, e "A Ponte do
Catete", de José do Patrocínio-, Manuel
Paiva é representado como "favorecedor
de encontros amorosos com ninfetas".
Tanto assim que, além da deliciosa descrição das correrias, à madrugada, na
ponte do Catete, relatadas por José do
Patrocínio, Artur Azevedo, logo na abertura de sua comédia, "Um Roubo no
Olimpo", reinventa:
Cena I - Júpiter (o imperador), depois
Mercúrio (Manuel Paiva)
Júpiter - Digam lá o que quiserem: bela
coisa é reinar!
Mercúrio, entrando - Pai dos céus, salve!
Júpiter - Esperava-te ansioso, alado
mensageiro dos meus amores!
Mercúrio - Silêncio, sire: as paredes
têm ouvidos. Juno pode estar por aí...
Júpiter - Nada receies... Fostes a Tebas?
Falastes à mulher do general Anfitrião?
Mercúrio - Sim, onipotente Jove: Alcmena, além de ser a mais bela tebana que
Apolo ilumina, é o maior monstro de virtude que pisa a terra.
Júpiter - O que me dizes?
Mercúrio - O que te digo. Ali não arranjas nada.
Já em "As Jóias da Coroa", Raul Pompéia escreve um romance folhetim repleto de pitadas irônicas, todas ríspidas e
contra a figura do imperador. Antes de
descrever seu texto, vale salientar que as
três obras literárias foram publicadas em
jornais cariocas republicanos, pouco
tempo após o escândalo do "roubo das
jóias". Diz Pompéia:
"Por alguns momentos de observação
pode-se saber quem é o duque de Bragantina (o imperador Pedro 2º). A roda
de amigos que o envolve nos diz que ele é
rico e poderoso: o cumprimento galante
à rapariguinha da janela indica-nos que
ele é inclinado ao sexo das belas; a sua
conversa mostra-nos, pelo objeto, que
ele gosta da ciência; pela dissertação, que
ele a não cultivava; pelo ar de imposição
com que fala, conhece-se que ele não admite obstáculos adiante de si".
E um pouco mais adiante, na tentativa
de desmascarar ainda mais a figura do
duque de Bragantina (ou dom Pedro 2º),
o autor coloca-o em situação de fraqueza. Isto após a compra de uma adolescente de 14 anos, realizada pelo comparsa Manuel de Pavia (Manuel Paiva).
Barba postiça e óculos
Também
nessa obra literária, a imperatriz é representada como mulher forte, combatendo
o marido fraco, em momento decisivo. É
ela, a duquesa de Bragantina (ou a imperatriz) quem impede a violação de Conceição, nessa obra de ficção, filha bastarda do duque de Bragantina, desconhecedor da sua paternidade. Mas como diz,
sobre os folhetins, a escritora Marlyse
Meyer, "desgraça pouca é bobagem".
Figura celebrizada no final do Segundo
Reinado, quando a decadência deste sistema político era realidade concreta, Manuel Paiva, o comparsa imperial, foi
apontado como ladrão, mostrou o lugar
onde as jóias estavam enterradas e, pouco depois, foi liberado por ordens do
monarca. Arquivado o crime, restaram
as chacotas. O chefe de polícia e o tenente
Lírio, como num delicioso Carnaval, foram até Petrópolis, fantasiados, um de
cocheiro e outro com barba postiça e
óculos, entregar as jóias ao imperador.
Vistos na saída do Rio, foram apelidados de "masqués", isto é, mascarados, e
debochados como se estivessem participando de um corso, cheios de pó e... ruge! Não era para menos: o caso abafado,
o crime passou a ser considerado subtração, sem qualquer pronunciamento da
imperatriz, e o "roubo das jóias" terminou em história do Brasil.
Ricardo d'Alencastro é jornalista e doutorando
em estudos comparados de literaturas de língua
portuguesa na USP.
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