São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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+ história
Escândalo do roubo das jóias da imperatriz Teresa Cristina, em 1882, realçou declínio do Segundo Reinado
Um caso bem brasileiro

Ricardo d'Alencastro
especial para a Folha

Não fosse o grande roubo que o sucedera, o baile que marcou o 60º aniversário da imperatriz Teresa Cristina teria passado incólume. Esquecida da história brasileira, apontada sempre como a princesa siciliana: "Baixa, gorda e, além de tudo, coxa e feia", segundo a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, a discreta monarca, de repente, se viu envolta num grande escândalo. Roubaram-lhe as jóias, logo após a recepção oferecida, no paço da cidade, à nobreza da terra, corpo diplomático e parlamentares sobre quem ela mantinha larga influência. A imprensa republicana alardeou o episódio pela corte, afinal era mais um motivo para desgastar o combalido "império tropical". Antes do escândalo, porém, o mais importante e avançado -em termos gráficos- periódico da época, a "Gazeta de Notícias", publicou, em 14 de março de 1882, data de aniversário de dona Teresa Cristina, a seguinte notinha, de teor bastante carinhoso: "Sua majestade a imperatriz completa hoje 60 anos de idade. À virtuosa senhora, cujas nobilíssimas qualidades lhe têm valido o amor e o respeito de todos os brasileiros, apresentamos hoje os nossos cumprimentos e os sinceros votos que fazemos pela tranquilidade de sua existência".

Proteção às matas
Dessa forma, a imprensa fluminense procurou demonstrar o carinho não pela monarquia brasileira, mas pela imperatriz, que, aos poucos, tornou suas qualidades caritativas mais ressaltadas que outras, tais como a proteção às matas e pássaros do Rio de Janeiro, bem como o ensino primário para os filhos de escravos. No entanto nem ela seria poupada da crítica ferina da imprensa republicana. Cinco dias após o baile, o escândalo veio à tona, quando a própria "Gazeta de Notícias" revelou os fatos. No paço de São Cristóvão, onde as jóias foram depositadas na câmara imperial após os festejos, o armário fora arrombado com um pau, o cofre levado e o pior: tudo indicava que o roubo tinha sido realizado por um funcionário da mordomia. Azar do imperador! Naquele ano, ele pensara em vender as jóias e investir o montante, que não era pouco, nas obras contra a seca que assolavam o Ceará. Não o fez... Na corte, os súditos alardeavam: se a casa imperial foi roubada, como andará a nossa segurança? Na "Gazeta de Notícias", que fez a melhor cobertura sobre o escândalo, o noticiário elencava as jóias roubadas, enquanto a polícia buscava o gatuno, que fugiu pela janela do paço por uma corda dependurada. Segundo o próprio redator do jornal, somente um colar de brilhantes foi avaliado em cem contos de réis, uma fortuna para a época. Com a peça, outras 24 foram levadas, além de outras pertencentes a sua majestade, o imperador, e à açafata da imperatriz, a baronesa Josefina Fonseca da Costa. Um dos colares roubados, por exemplo, continha 36 brilhantes. Outras jóias, por exemplo, foram levadas: uma fivela ou dragona com dez grandes brilhantes e outros pequenos, além de brincos, diademas, flores, comendas, insígnias, pulseiras, todos com brilhantes e pérolas. Tanto diamante bem que poderia enriquecer o ladrão.

"Dá o pé, louro"
Por quase um mês, as investigações não chegaram a nenhuma conclusão, tendo tanto o chefe de polícia, Trigo do Loureiro, quanto o tenente Lírio angariado, nas ruas da corte, alcunhas como: "Louro do Trigueiro", "Dá cá o pé, meu louro". Diante de tanta imoralidade, o Parlamento protestou e, pela primeira vez, o ministro da Justiça, em 30 de março de 1882, exigiu punição. Roubar era crime, sobretudo em se tratando das jóias da "boa mãe dos brasileiros". Mas o pior ainda estava por vir: o gatuno finalmente foi pego. Tratava-se de Manuel Paiva, cuja fama de comparsa do imperador Pedro 2º havia ultrapassado os muros do paço de São Cristóvão, percorrido as ruas do Rio de Janeiro e, mais longe ainda, figurado nos cadernos do diário da condessa de Barral. De tão íntimo, ele participou da comitiva de viagem ao estrangeiro de dom Pedro 2º, em 1876. Haver, de fato, uma parceria entre o monarca e o lacaio é uma realidade tão evidente que, nos três folhetins inspirados no escândalo -"As Jóias da Coroa", de Raul Pompéia, "Um Roubo no Olimpo", de Artur Azevedo, e "A Ponte do Catete", de José do Patrocínio-, Manuel Paiva é representado como "favorecedor de encontros amorosos com ninfetas". Tanto assim que, além da deliciosa descrição das correrias, à madrugada, na ponte do Catete, relatadas por José do Patrocínio, Artur Azevedo, logo na abertura de sua comédia, "Um Roubo no Olimpo", reinventa: Cena I - Júpiter (o imperador), depois Mercúrio (Manuel Paiva) Júpiter - Digam lá o que quiserem: bela coisa é reinar! Mercúrio, entrando - Pai dos céus, salve! Júpiter - Esperava-te ansioso, alado mensageiro dos meus amores! Mercúrio - Silêncio, sire: as paredes têm ouvidos. Juno pode estar por aí... Júpiter - Nada receies... Fostes a Tebas? Falastes à mulher do general Anfitrião? Mercúrio - Sim, onipotente Jove: Alcmena, além de ser a mais bela tebana que Apolo ilumina, é o maior monstro de virtude que pisa a terra. Júpiter - O que me dizes? Mercúrio - O que te digo. Ali não arranjas nada. Já em "As Jóias da Coroa", Raul Pompéia escreve um romance folhetim repleto de pitadas irônicas, todas ríspidas e contra a figura do imperador. Antes de descrever seu texto, vale salientar que as três obras literárias foram publicadas em jornais cariocas republicanos, pouco tempo após o escândalo do "roubo das jóias". Diz Pompéia: "Por alguns momentos de observação pode-se saber quem é o duque de Bragantina (o imperador Pedro 2º). A roda de amigos que o envolve nos diz que ele é rico e poderoso: o cumprimento galante à rapariguinha da janela indica-nos que ele é inclinado ao sexo das belas; a sua conversa mostra-nos, pelo objeto, que ele gosta da ciência; pela dissertação, que ele a não cultivava; pelo ar de imposição com que fala, conhece-se que ele não admite obstáculos adiante de si". E um pouco mais adiante, na tentativa de desmascarar ainda mais a figura do duque de Bragantina (ou dom Pedro 2º), o autor coloca-o em situação de fraqueza. Isto após a compra de uma adolescente de 14 anos, realizada pelo comparsa Manuel de Pavia (Manuel Paiva).

Barba postiça e óculos
Também nessa obra literária, a imperatriz é representada como mulher forte, combatendo o marido fraco, em momento decisivo. É ela, a duquesa de Bragantina (ou a imperatriz) quem impede a violação de Conceição, nessa obra de ficção, filha bastarda do duque de Bragantina, desconhecedor da sua paternidade. Mas como diz, sobre os folhetins, a escritora Marlyse Meyer, "desgraça pouca é bobagem".
Figura celebrizada no final do Segundo Reinado, quando a decadência deste sistema político era realidade concreta, Manuel Paiva, o comparsa imperial, foi apontado como ladrão, mostrou o lugar onde as jóias estavam enterradas e, pouco depois, foi liberado por ordens do monarca. Arquivado o crime, restaram as chacotas. O chefe de polícia e o tenente Lírio, como num delicioso Carnaval, foram até Petrópolis, fantasiados, um de cocheiro e outro com barba postiça e óculos, entregar as jóias ao imperador.
Vistos na saída do Rio, foram apelidados de "masqués", isto é, mascarados, e debochados como se estivessem participando de um corso, cheios de pó e... ruge! Não era para menos: o caso abafado, o crime passou a ser considerado subtração, sem qualquer pronunciamento da imperatriz, e o "roubo das jóias" terminou em história do Brasil.


Ricardo d'Alencastro é jornalista e doutorando em estudos comparados de literaturas de língua portuguesa na USP.



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