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Em "Despedida em Veneza" Louis Begley consegue fugir
do lugar-comum ao falar de um publicitário em estado
terminal que decide passar os últimos dias na cidade italiana
A morte pragmática
Cristovão Tezza
especial para a Folha
O homem que está para morrer é daqueles temas absolutos da ficção -em certo sentido,
podemos dizer que é o próprio objeto da literatura. Modernamente, quando cada vez menos a chamada vida eterna é uma referência concreta do
mundo escrito, a interrogação do vazio da morte ganha
um apelo irresistível. E difícil, é claro, tantas são as tentações de sair pela tangente cinematográfica do sentimentalismo, de um lado, ou do pragmatismo alienado,
fingindo que não temos nada com isso, na outra ponta.
Também comparativamente a tarefa é árdua, depois de
"A Morte de Ivan Ilitch", de Tolstói, novela de 1886 que
parece ter sido escrita ontem, como a balizar o limite último de uma obra de arte ao tratar do assunto.
Se acrescentamos ao tema a paisagem também acachapante de Veneza, o menor dos problemas será a
sombra de "Morte em Veneza", de Thomas Mann.
Com tantos assuntos no mundo, por que escrever logo
sobre um homem que resolve morrer em Veneza?
Outsider às avessas
Pois foi isso que decidiu fazer
o escritor americano Louis Begley em
"Despedida em Veneza". Além do tema
arriscado, chama também a atenção o fato de que Begley é uma espécie de outsider, às avessas, do mundo literário. Sócio
de um rico escritório de advocacia em
Nova York, o Debevoise & Plimpton, e
escritor tardio que começou a ser reconhecido aos seus 60 anos de idade, Begley teria mais semelhança com um personagem de um filme jurídico-policial
do que com um escritor. Pelo menos na perspectiva
brasileira: um homem rico que escreve sobre ricos, produzindo não roteiros de segunda, mas literatura de primeira qualidade.
Mais uma razão para ler o romance "Despedida em
Veneza": como no Brasil os ricos só são consistentes nas
páginas policiais (talvez porque os nossos escritores sejam pobres demais para conhecê-los), esse livro nos dá
oportunidade de inverter o ponto de vista. Louis Begley
nos apresenta um personagem, filho e neto de banqueiros, que transita pelas filiais internacionais de sua agência de publicidade e em cujo rol de culpas não consta o
fato de ser rico.
Na primeira cena, nosso herói Mistler descobre que
tem poucos meses de vida. Entre se encher de tubos
num hospital e "sair à francesa", ele decide pela última
hipótese. E resolve fazer uma viagem solitária a Veneza
para pensar na vida e preparar, pragmaticamente, os
detalhes de sua morte: a herança, o destino de sua firma,
o futuro da família, apenas mulher e filho. Nesse início,
Begley corteja perigosamente o lugar-comum; em algumas cenas, quase que vemos Anthony Hopkins (digamos, para supor o melhor) levantando-se melancólico à
mesa do jantar da amiga Anna, com aquela fachada
bem produzida de um filme que simula profundidade e
se reduz a nada assim que termina.
Mas é aqui que a imensa superioridade
da palavra escrita, nas mãos de Begley,
contra todas as probabilidades, transparece. A viagem de Mistler em direção à
morte evita todas as tentações sentimentais e, embora filha do poderoso realismo americano do século 20, cria, com
traços sutis e delicados de aquarela, um
solo literário de alta qualidade.
Tecnicamente, a narração encontra o
tom adequado. O narrador vê o mundo apenas pelos
olhos de Mistler, mas ao mesmo tempo não é ele o que
dá ao texto o equilíbrio exato entre a empatia e o distanciamento. Todas as figuras que circulam em torno
de Mistler, no passado de sua vida ou no presente sufocante de Veneza, vão se reduzindo a fantasmas, seres
incompletos, com os quais a cada minuto transparece a
absurda impossibilidade de comunhão.
Transcendência e memória
Os temas da vida do
personagem -a traição, a amante do pai, a namorada
que ele nunca teve, a fotógrafa que invade sua vida e desaparece, o ex-sócio, o sexo, a distância do filho, o sucesso- vão inapelavelmente se fragmentando e se esfarelando diante da proximidade da morte (e da dor física);
mas, ao mesmo tempo, são tudo o que Mistler tem. Toda transcendência terá de contar com essa memória, e
só com ela: o problema é que Deus não existe, e não há
ginástica mental capaz de torná-lo convincente.
Também aqui a intuição técnica se revela: ao recusar
as marcas tradicionais de diálogo (aspas ou travessão) e
fundir frequentemente o texto do narrador à fala dos
personagens (deixando nítida a fronteira, entretanto,
para não distrair o leitor do que realmente interessa), a
escrita descobre o seu ritmo intimista, em que a voz alta
é apenas a extensão superficial da voz silenciosa que diz
quem somos e em que a memória não se transforma
num bloco fechado e monolítico de referências biográficas. Ao contrário, acompanhamos Mistler como ele
mesmo se acompanha: à deriva de sua própria vida.
Cristovão Tezza é professor do departamento de linguística da Universidade Federal do Paraná e autor, entre outros, de "Breve Espaço
entre Cor e Sombra" e "Ensaio da Paixão" (Rocco).
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