São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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+ cultura
História da humanidade se confunde com a dos cavalos, tanto nas guerras quanto na literatura e no cinema
Três milênios a galope

Fernando Savater
especial para "El País"

Milênios? Os três últimos se passaram a galope. Não me refiro tanto à velocidade com que transcorreram -falta-nos o testemunho de alguém tão longevo que pudesse nos transmitir suas impressões a respeito-, mas ao fato de a humanidade ter cavalgado sem cessar através deles. Sem cavalos, não há história humana. Ou melhor, não há histórias humanas, porque eles aparecem constantemente em todas: os cavalos impetrativos de Altamira, os corcéis de Diomedes, o Cavalo de Tróia, o Bucéfalo (que Alexandre domou cegando com o sol), aquele outro equino promovido -ou rebaixado- a senador por Calígula, o famigerado corcel montado por Átila (onde ele pisava, não tornava a nascer a relva), os cavalos que Maomé reservou para o paraíso dos fiéis e que qualificou de "belos como o mar", os cavalos que os conquistadores espanhóis levaram para a América e aos quais o modernista Santos Chocano dedicou uma famosa ode, a tristeza metafísica de Rocinante ou a mistificação de Clavileño, o cavalo que montava Fabrice del Dongo em Austerlitz, aquela égua por cujos encantos Ana Karenina foi momentaneamente preterida pelo amante, os cavalos mártires de Balaclava e os da cavalaria polonesa que investiram contra os tanques alemães no prelúdio da Segunda Guerra Mundial, os ganhadores durante 221 anos -o número da casa de Sherlock Holmes- do derby de Epsom, o "dark horse" do "Ulisses" de James Joyce, os cavalos da diligência do John Ford e de todos os demais "westerns", os minúsculos pôneis que divertem as crianças junto com os cavalinhos de carrossel, os percherões que tantos sulcos araram e tanto peso arrastaram para que construíssemos nosso presente de cavalos a vapor, de cavalos a diesel, de cavalos nucleares e blindados... O militante e memorável projeto de são Paulo foi "ser tudo para todos". Sem intenção missionária, os cavalos realmente foram tudo para os homens ao longo de pacientes milênios, trabalharam com eles e os transportaram, compartilharam suas batalhas sanguinárias e seus desfiles triunfais, com eles navegaram, morreram em suas praças de touros, serviram-lhes de alimento, de distração, de companhia e até de orgulho nas estátuas sobre as quais, inclementes, cagam as pombas nas praças de tantas cidades...

Meio humanos
Em grande medida, as várias estirpes e variedades equinas são uma invenção humana. Um mito antigo fala dos centauros, cujo pai é Quíron, que educou nada menos que o próprio Hércules. Os centauros, como todos sabem, eram cavalos com tronco e cabeça humanos, ou seja: metade natureza e metade inteligência racional. Todos os cavalos que frequentamos ao longo de milênios são também meio humanos, pois nasceram de formas de criação e domesticação voltadas a potencializar um ou outro aspecto de suas muitas aptidões, aqueles cuja colaboração se revelava mais imprescindível para esses nossos projetos que arrogantemente chamamos "civilizados". De modo que cada corcel e cada modesto pangaré pode se reclamar herdeiro putativo de Quíron.
Mas não se poderia dizer o mesmo de nós, donos e inventores da humanidade? O que somos, o que conseguimos ser, não se explica nem é imaginável sem a perpétua cumplicidade dos cavalos. Inevitavelmente, já somos em parte equinos, e não apenas os cavalheiros, mas também as damas que mais se encrespam com o tonificante cheiro do esterco.
Na lenda e na história, na fama e na infâmia -"meu reino por um cavalo!"- dependemos da sela, dos arreios, do chicote e do estribo. Talvez o milênio que inauguramos prescinda dos equinos: entramos numa época que considera um progresso descartar ou substituir aqueles que mais úteis nos foram. Mas, depois de nos perguntarmos com displicência "o que será dos cavalos sem os homens?", talvez devamos fazer outra interrogação mais inquietante: "Continuaremos sendo homens, sem cavalos?".


Fernando Savater é filósofo espanhol, autor, entre outros, de "Ética como Amor-Próprio", que acaba de ser lançado pela editora Martins Fontes.
Tradução de Sergio Molina.



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