São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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Obra clássica sobre urbanismo ataca mitos que desprezam problemas concretos, como trânsito e segurança
Colapso das cidades imaginárias

Mauricio Puls
da Redação

Publicado em 1961, "Morte e Vida de Grandes Cidades", de Jane Jacobs, mantém até hoje uma atualidade impressionante. O livro dirige um ataque vigoroso a velhos paradigmas do urbanismo, derivados de modelos teóricos baseados em cidades imaginárias, contra os quais ela defende a observação e a análise de cidades reais. Jacobs observa que as intervenções urbanas fundadas nesses paradigmas, longe de promover a recuperação das áreas decadentes, produziram na realidade "conjuntos habitacionais de baixa renda que se tornaram núcleos de delinquência, vandalismo e desesperança social generalizada, piores do que os cortiços que pretendiam substituir (...); centros cívicos evitados por todos, exceto desocupados (...); passeios públicos que vão do nada a lugar nenhum e nos quais não há gente passeando; vias públicas que evisceram as grandes cidades". Qual a razão desse fracasso generalizado? Jacobs lembra que o planejamento urbano surgiu do desencanto e da rejeição da vida nas metrópoles. Seu pioneiro, Ebenezer Howard (1850-1928), "observou as condições de vida dos pobres na Londres do final do século 19 e com toda a razão não gostou do que cheirou, viu e ouviu. Ele detestava não só os erros e os equívocos da cidade, mas a própria cidade (...). Sua receita para a salvação das pessoas era acabar com a cidade".

Separação de funções
Para isso, ele propôs a construção da cidade-jardim, na qual os pobres poderiam voltar a viver em contato com a natureza. Esse núcleo ideal teria 30 mil habitantes, no máximo, e nele cada setor (industrial, comercial, residencial) teria um lugar definido. O princípio fundamental de Howard era isolar as funções sociais citadinas -axioma que foi mantido nas utopias posteriores, como a "Ville Radieuse", de Le Corbusier (1887-1965), e a "City Beautiful", de Daniel Burnham (1846-1912).
Essa vertente teórica não explica como a cidade é, mas diz como que ela deveria ser, e desse modelo ideal deduz seus princípios de planejamento urbano -que não costumam funcionar quando colocados em prática. A separação de funções provoca congestionamentos, reduz a eficiência do comércio e da indústria, esvazia as calçadas e degrada a cidade.
O erro desses planos reside precisamente na tentativa de separar cada uma das principais atividades (morar, administrar, produzir e distribuir bens e serviços), solapando assim o fundamento mesmo da vida urbana, que é a coexistência de funções diversas (porém complementares) num mesmo espaço social.
O ponto de partida de Jacobs, ao contrário, são os problemas concretos. Em relação à questão da segurança, por exemplo, ela ressalta que sua manutenção depende mais dos cidadãos do que da própria polícia: "A primeira coisa que deve ficar clara é que a ordem pública (...) não é mantida basicamente pela polícia, sem com isso negar sua necessidade. É mantida fundamentalmente pela rede intrincada, quase inconsciente, de controles e padrões de comportamento espontâneos presentes em meio ao próprio povo e por ele aplicados". Segundo ela, as zonas em que a ordem pública depende inteiramente de guardas são regiões selvagens. "É uma coisa que todos já sabem: uma rua movimentada consegue garantir a segurança; uma rua deserta, não." As pessoas que transitam pelas ruas fazem um policiamento inconsciente, mas extremamente eficaz.

Rua mais confiável
O que torna uma rua segura? Basicamente, sua diversidade econômica e cultural. Uma via com uma ou duas atividades é movimentada apenas algumas horas ao dia. Já uma rua com várias funções (lojas, bares, restaurantes, casas, prédios públicos, teatros) é usada ininterruptamente, tornando-se mais confiável.
A obra de Jacobs encerra diversas sugestões factíveis para estimular a vitalidade urbana e recuperar cortiços e conjuntos habitacionais degradados. E conclui: "O ser humano é, em si, difícil, e portanto todos os tipos de coletividades (exceto as cidades imaginárias) têm problemas. As grandes cidades têm problemas em abundância porque têm pessoas em abundância. Mas as cidades cheias de vida não são impotentes para combater mesmo os problemas mais difíceis".

Morte e Vida de Grandes Cidades
510 págs., R$ 37,50 de Jane Jacobs. Tradução de Carlos Mendes Rosa. Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330/340, CEP 01325-000, SP, tel. 0/xx/11/239-3677).

trecho
"É inútil tentar esquivar-se da questão da insegurança urbana tentando tornar mais seguros outros elementos da localidade, como pátios internos ou áreas de recreação cercadas. Por definição, mais uma vez, as ruas da cidade devem ocupar-se de boa parte da incumbência de lidar com desconhecidos, já que é por elas que eles transitam. As ruas devem não apenas resguardar a cidade de estranhos que depredam: devem também proteger os inúmeros desconhecidos pacíficos e bem-intencionados que as utilizam, garantindo também a segurança deles. Além do mais, nenhuma pessoa normal pode passar a vida numa redoma, e aí se incluem as crianças. Todos precisam usar as ruas."


Trecho extraído de "Morte e Vida de Grandes Cidades", de Jane Jacobs.



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