São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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Ponto de fuga
Encantos mil

Jorge Coli
especial para a Folha

Não há cidade mais bela. Apesar disso, nunca se formou uma verdadeira escola de paisagem estimulada pelo sítio carioca. O impacto que ele provoca, porém, não deixou de suscitar uma iconografia numerosa, por artistas e artesãos, locais ou de passagem, de mais ou de menos talento. O Pão de Açúcar, o Corcovado, a baía e o imenso anfiteatro de montanhas são recorrentes.
Duas exposições se sucedem à volta desse tema. Uma no MAM (Museu de Arte Moderna), que terminou; outra no Centro Cultural do Banco do Brasil, que começa; ambas no Rio de Janeiro, ambas retomando a imagem da própria cidade. A do MAM fez um emprego astucioso de meios eletrônicos. Mergulhava-se num Rio de Janeiro virtual e artificioso. O contraste fazia-se ainda mais forte, já que o edifício do museu, na esplêndida arquitetura de Reidy, abre imensas janelas pela Guanabara afora, se inserindo num diálogo visual único com o exterior.
Dentro, numa atualização dos antigos "panoramas" caros ao século 19, podia-se descobrir, por um visor eletrônico, uma topografia em 360, que se modificava segundo a ocupação humana desde a época do Descobrimento. Havia, ainda, em grandes telas, cenas simultâneas de filmes, nacionais e estrangeiros, que tomaram como cenário locais cariocas. Isso se mesclava com quadros, com objetos de marchetaria, vidros de Gallé, pratos, bandejas, com documentos e fotos, todos repetindo a bela paisagem. Alguns vídeos traçavam escorços históricos, sintéticos, inteligentes. Foi uma lição, divertida e inovadora, sobre as passagens do natural ao artifício.

Encantos mil 2 - A outra mostra, também à volta da iconografia carioca, no CCBB, é o fruto de colecionadores particulares, os Geyer. Estão lá o "Outeiro da Glória", de N.A. Taunay, luminoso e feliz; a silenciosa rua da Candelária, na pintura secreta de Victor Meirelles; a montanha da Tijuca, nas brumas finas de Biard, isso para pescar, sem rigor, só três, dentre as 200 obras expostas. Uma reunião por si só fenomenal, mas ainda bem menor que a coleção completa. Muito raro, em relação aos costumes brasileiros de hoje, é o fato de que os colecionadores doaram o conjunto todo para uma instituição pública, o museu Imperial de Petrópolis.

Gaveta - Das cinco sonatas para violino e piano de Cláudio Santoro (1919-1989), apenas a de número quatro era, de fato, conhecida. Algumas outras nem sequer tiveram edição impressa. Elas foram gravadas em CD no ano passado, por iniciativa da Academia Brasileira de Música.
São tramas musicais que inventam sons sempre necessários, sempre expressivos, indutores de uma inspiração incessante. Por isso mesmo apresentam uma clara unidade, para além das fases circunstanciais que o compositor pôde atravessar. Obras que estão lá em cima, nos píncaros da produção musical ocorrida no Brasil. Podem enfrentar, sem medo, a comparação com qualquer outro autor, de qualquer outro país. As intérpretes, Laís de Souza Brasil e Mariana Salles, tornaram comovente e intenso este que é, não há dúvida, um dos mais belos CDs de música brasileira.

Asas - No final da peça, no longo espaço de cena do teatro Oficina (SP), surge um avião. "Dédalus" é um espetáculo da companhia Ueinzz. Alguns dos atores são pacientes psiquiátricos, e o espetáculo poderia ser tomado por um exercício terapêutico. Talvez ele possua esse efeito, mas o que importa, para o espectador, é a estranha poesia que, pouco a pouco, entre momentos mais áridos e mais sedutores, vai se erguendo. É um teatro que não se apóia na máscara, na aparência construída pelo ator, com habilidade e talento, para esconder o seu ser próprio. Funda-se, antes, numa dupla presença: vejam, eu sou Ícaro, eu sou Eurídice. Eu, isto é, a identidade do ator, não se separa de Ícaro ou Eurídice, seus personagens. No finzinho, quando chega o avião, artistas e público flutuam, suspensos na mesma felicidade.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br



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