|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Calada noite preta
Ausência de energia elétrica moldava comportamentos e vida pública no Rio de Janeiro dos séculos 18 e 19
NIREU CAVALCANTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Estava assistindo à TV
quando começou o
apagão recente.
Esse apagão do século 21 mostrou que a
construção cosmopolita urbana é uma realidade muito tênue, que desmorona a qualquer
momento em razão até de um
raio, segundo o ministro Lobão
[Minas e Energia]!
Enquanto criança, a escuridão era vivida com naturalidade; agora, adulto, na cidade do
Rio de Janeiro, fui tomado pelo
temor de estar isolado do mundo. Sem TV, sem rádio, sem telefone e sem possibilidade de
conversar com os vizinhos por
não ter elevador e pelo desafio
da escadaria escura.
Estava isolado nas alturas da
tecnologia e cercado de aparelhos inúteis.
Retroagi ao Rio de Janeiro
antes da luz elétrica, período
que pesquiso e pelo qual sou
apaixonado.
Hora de meretrizes
Cotidianamente a cidade do
Rio dos séculos 18 e 19 deveria
dormir, no mais tardar, às 22h.
Mulher na rua depois desse horário com certeza era meretriz.
Os padres e bispos denunciavam o costume de algumas mulheres circularem na cidade depois desse horário.
Cobrava-se das famílias
maior controle sobre acabarem-se as festas e visitas familiares antes da hora marcada
pelas posturas municipais.
As autoridades proibiam os
homens de chapéu e capote, os
famosos encapuzados, de circularem durante à noite, para
evitar romance proibido, atentado ou roubo.
Por isso a população carioca
ansiava pelas festas: da irmandade, dos dias santos, as comemorativas de datas vinculadas à
família real, à chegada de uma
autoridade civil, militar ou religiosa que viesse assumir seu
posto na capitania do Rio.
Ou autoridade estrangeira
cujo navio aportasse na cidade
e que merecesse homenagem.
Normalmente eram três dias
de festas e de iluminação.
Todos eram convocados a
iluminar suas casas, os oratórios (se os tinham) e o trecho da
rua em frente.
As fortificações, os prédios
públicos e os navios aportados
se engalanavam.
As igrejas e os logradouros
por que passariam as autoridades e a procissão deveriam ser
enfeitados e profusamente iluminados por conta da irmandade, da ordem religiosa dona do
templo, da Fazenda Real e da
Câmara de Vereadores.
Aliás, nesses dias festivos as
autoridades recebiam a propina de velas e óleo de peixe para
iluminarem suas casas e desfilarem orgulhosos, de vela à
mão, nos cortejos.
A cidade da luz era o momento de ocupação dos espaços públicos noite adentro.
No final do século 18, o conde
de Resende [vice-rei de 1790-1801] iniciou a implantação da
rede de iluminação pública
com lampião alimentado por
óleo de baleia, nos logradouros
circunvizinhos ao largo do Paço, atual praça Quinze.
O povo gostou! Sob pressão
popular e empresarial, os lampiões se espalharam por toda a
cidade e por subúrbios cujos
moradores tinham prestígio
em meio ao poder imperial.
Em 25 de março de 1854, os
moradores assistiram embevecidos à inauguração, na rua do
Ouvidor, da iluminação a gás da
fábrica do grande empreendedor Irineu Evangelista de Sousa (futuro barão de Mauá).
Luz e modernidade
A luminosidade intensa dos
novos lampiões tornou-se sinônimo de modernidade, progresso e status.
Os velhos lampiões a óleo foram sobrevivendo nas ruas da
periferia do núcleo nobre da cidade e nos subúrbios.
Exceção para São Cristóvão,
moradia do imperador, cujo caminho de acesso e a Quinta da
Boa Vista foram iluminados a
gás. O novo combustível penetrou nas casas de gente abastada, que passou a exibir fogão e
aquecedor a gás, novidade do
viver nas metrópoles.
Em 1881, o importante Campo de Santana foi iluminado,
experimentalmente, com 16
postes com energia elétrica e
lâmpadas de arco voltaico, criação do engenheiro russo Pavel
Iablotchkov.
O povo acorreu ao campo para conhecer a novidade, que
tornou o lugar tão claro como o
dia. Isso três anos após a primeira experiência feita em
Londres.
Em 8 de outubro de 1892, foi
a vez de o povo se extasiar com
a circulação do primeiro bonde
movido a eletricidade, correndo fagueiro da avenida Treze de
Maio, no centro, ao largo do
Machado, no Catete.
Já o serviço de distribuição
de energia elétrica na cidade do
Rio começou oficialmente em
30 de julho de 1907.
O Rio passou a ser considerado a "cidade luz" até a demanda
crescer tanto que os apagões se
tornaram constantes e serem
motivo da marchinha carnavalesca "Vagalume", de Victor Simon e Fernando Martins, lançada com sucesso em 1954:
"Rio de Janeiro/ cidade que me
seduz/ de dia falta água/ de noite falta luz!".
NIREU CAVALCANTI é arquiteto, historiador e
professor na Universidade Federal Fluminense,
autor de "O Rio de Janeiro Setecentista" (Zahar).
Texto Anterior: + Lançamentos Próximo Texto: Ensaio sobre a cegueira Índice
|