São Paulo, domingo, 15 de novembro de 2009

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Ensaio sobre a cegueira

Da Bíblia a Conan Doyle, de Victor Hugo a José Saramago, incapacidade de ver é alegoria da condição humana

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

No começo eram as trevas, o apagão "avant la lettre". Então Deus disse: "Faça-se a luz".
A luz se fez, e, ao fazer-se a luz, introduziu-se uma diferença básica no Universo, o antagonismo luz versus trevas, que condiciona profundamente a existência humana, inclusive do ponto de vista simbólico. Há pessoas que vivem, total ou parcialmente, nas trevas.
Não é uma situação rara: a Organização Mundial da Saúde estima que cerca de 2,6% da população do planeta apresenta graus variáveis de deficiência visual, chegando, no caso extremo, à cegueira. Glaucoma, catarata, retinopatias, acidentes, problemas neurológicos estão entre as causas principais desse problema tão penoso quanto antigo. Não é se de admirar que, ao longo do tempo, a literatura tenha abordado a cegueira de diferentes formas. Para começar, existiram autores cegos, entre eles dois poetas famosos, Homero e John Milton. E, por outro lado, a situação dramática criada pela cegueira e a metáfora que ela representa inspiraram não poucos escritores.

Resignação e profecia
De modo geral -e isso vale tanto para o cotidiano como para a ficção-, o deficiente visual é encarado como uma pessoa sofrida, mas resignada, serena, filosófica, quando não dotada de poderes especiais: o Tirésias de Sófocles tem o dom da profecia.
No Novo Testamento o cego Bartimeu, informado de que Jesus está passando à sua frente, imediatamente proclama-o como "o filho de David", vale dizer, o Messias; com o que Cristo cura-o de sua cegueira. Em "Sir Nigel", pouco conhecida novela de Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, há um personagem que esclarece casos misteriosos, graças inclusive a sua acuidade visual. A heroína cega de "O Homem Que Ri", de Victor Hugo, é retratada como uma criatura angelical, vivendo um permanente êxtase, porque a cegueira, diz-nos o escritor francês, é "uma caverna na qual se pode chegar à profunda harmonia do Eterno".
Mas esse tratamento compassivo e até privilegiado tem exceções, porque, afinal, escritores não precisam ser bonzinhos. Em "O Homem Cego", do escritor inglês D.H. Lawrence, um veterano de guerra privado da visão leva uma vida de desespero e miséria, e o mesmo acontece com o protagonista de "Convite à Valsa", de Rosamond Lehmann. A cega Gertrude, de "Sinfonia Pastoral", de André Gide, vive num mundo ilusório, para ela criado por um pastor; e só quando recupera a visão dá-se conta do que é o bem e o mal. A Bertha, de "O Grilo na Lareira", do inglês Charles Dickens, também é uma pobre desamparada.

Epidemia
Mais recentemente, a cegueira foi usada como metáfora pelo Prêmio Nobel José Saramago em "Ensaio sobre a Cegueira" (Companhia das Letras). Saramago percorre, de maneira diferente, uma vereda que já tinha sido trilhada por H.G. Wells, em "O País dos Cegos", e por Paul Corey, com "O Planeta dos Cegos". No caso de Saramago, porém, veterano militante comunista, a dimensão política é mais que evidente.
O que temos aqui é uma cegueira epidêmica que se espalha rapidamente. As autoridades confinam os cegos (designados, não por nomes, mas por expressões como "o homem da venda preta", "a rapariga dos óculos escuros") em um hospital de doenças mentais desativado, mas ali eles são vítimas da violência de criminosos. Quanto ao Governo (a palavra sempre aparece com maiúscula), trata os infelizes de maneira cínica, protegendo interesses privados. A cegueira é na verdade a submissão, capaz, no romance, de levar a uma situação verdadeira kafkiana; para enfrentá-la é preciso evocar "a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam", ou seja, um equivalente daquilo que Marx chamava de consciência de classe.
John Milton lamenta, em seu poema "Sansão Agonista", que o herói bíblico seja um "blind among enemies", um cego entre os inimigos. Saramago faz o mesmo, mas de um ponto de vista político.

Calafrios
A vida real reproduz, ainda que transitoriamente e sob forma diferente, as obras ficcionais. O apagão que o país recentemente viveu provocou calafrios em muitas pessoas, deixou-as com a sensação de abandono e desamparo. Foi um ensaio do que pode ser a epidêmica cegueira. Ainda bem que a eletricidade é menos misteriosa e menos escura que os profundos meandros da natureza humana.


MOACYR SCLIAR é escritor e acaba de ganhar o 51º Prêmio Jabuti, nas categorias ficção e romance, por "Manual da Paixão Solitária" (Companhia das Letras). moacyr.scliar@uol.com.br


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