|
Texto Anterior | Índice
Ensaio sobre a cegueira
Da Bíblia a Conan Doyle, de Victor Hugo a José Saramago, incapacidade de ver é alegoria da condição humana
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
No começo eram as
trevas, o apagão
"avant la lettre".
Então Deus disse:
"Faça-se a luz".
A luz se fez, e, ao fazer-se a
luz, introduziu-se uma diferença básica no Universo, o antagonismo luz versus trevas, que
condiciona profundamente a
existência humana, inclusive
do ponto de vista simbólico.
Há pessoas que vivem, total
ou parcialmente, nas trevas.
Não é uma situação rara: a Organização Mundial da Saúde
estima que cerca de 2,6% da
população do planeta apresenta graus variáveis de deficiência visual, chegando, no caso
extremo, à cegueira.
Glaucoma, catarata, retinopatias, acidentes, problemas
neurológicos estão entre as
causas principais desse problema tão penoso quanto antigo.
Não é se de admirar que, ao
longo do tempo, a literatura tenha abordado a cegueira de diferentes formas.
Para começar, existiram autores cegos, entre eles dois poetas famosos, Homero e John
Milton. E, por outro lado, a situação dramática criada pela
cegueira e a metáfora que ela
representa inspiraram não
poucos escritores.
Resignação e profecia
De modo geral -e isso vale
tanto para o cotidiano como
para a ficção-, o deficiente visual é encarado como uma pessoa sofrida, mas resignada, serena, filosófica, quando não dotada de poderes especiais: o Tirésias de Sófocles tem o dom da
profecia.
No Novo Testamento o cego
Bartimeu, informado de que
Jesus está passando à sua frente, imediatamente proclama-o
como "o filho de David", vale
dizer, o Messias; com o que
Cristo cura-o de sua cegueira.
Em "Sir Nigel", pouco conhecida novela de Arthur Conan
Doyle, o criador de Sherlock
Holmes, há um personagem
que esclarece casos misteriosos, graças inclusive a sua acuidade visual.
A heroína cega de "O Homem
Que Ri", de Victor Hugo, é retratada como uma criatura angelical, vivendo um permanente êxtase, porque a cegueira,
diz-nos o escritor francês, é
"uma caverna na qual se pode
chegar à profunda harmonia do
Eterno".
Mas esse tratamento compassivo e até privilegiado tem
exceções, porque, afinal, escritores não precisam ser bonzinhos. Em "O Homem Cego", do
escritor inglês D.H. Lawrence,
um veterano de guerra privado
da visão leva uma vida de desespero e miséria, e o mesmo
acontece com o protagonista de
"Convite à Valsa", de Rosamond Lehmann.
A cega Gertrude, de "Sinfonia
Pastoral", de André Gide, vive
num mundo ilusório, para ela
criado por um pastor; e só
quando recupera a visão dá-se
conta do que é o bem e o mal.
A Bertha, de "O Grilo na Lareira", do inglês Charles Dickens, também é uma pobre desamparada.
Epidemia
Mais recentemente, a cegueira foi usada como metáfora pelo Prêmio Nobel José Saramago em "Ensaio sobre a Cegueira" (Companhia das Letras).
Saramago percorre, de maneira diferente, uma vereda
que já tinha sido trilhada por
H.G. Wells, em "O País dos Cegos", e por Paul Corey, com "O
Planeta dos Cegos".
No caso de Saramago, porém,
veterano militante comunista,
a dimensão política é mais que
evidente.
O que temos aqui é uma cegueira epidêmica que se espalha rapidamente. As autoridades confinam os cegos (designados, não por nomes, mas por
expressões como "o homem da
venda preta", "a rapariga dos
óculos escuros") em um hospital de doenças mentais desativado, mas ali eles são vítimas da
violência de criminosos.
Quanto ao Governo (a palavra sempre aparece com
maiúscula), trata os infelizes de
maneira cínica, protegendo interesses privados.
A cegueira é na verdade a
submissão, capaz, no romance,
de levar a uma situação verdadeira kafkiana; para enfrentá-la
é preciso evocar "a responsabilidade de ter olhos quando os
outros os perderam", ou seja,
um equivalente daquilo que
Marx chamava de consciência
de classe.
John Milton lamenta, em seu
poema "Sansão Agonista", que
o herói bíblico seja um "blind
among enemies", um cego entre os inimigos. Saramago faz o
mesmo, mas de um ponto de
vista político.
Calafrios
A vida real reproduz, ainda
que transitoriamente e sob forma diferente, as obras ficcionais. O apagão que o país recentemente viveu provocou calafrios em muitas pessoas, deixou-as com a sensação de abandono e desamparo.
Foi um ensaio do que pode
ser a epidêmica cegueira. Ainda
bem que a eletricidade é menos
misteriosa e menos escura que
os profundos meandros da natureza humana.
MOACYR SCLIAR é escritor e acaba de ganhar o
51º Prêmio Jabuti, nas categorias ficção e romance, por "Manual da Paixão Solitária" (Companhia das Letras).
moacyr.scliar@uol.com.br
Texto Anterior: Calada noite preta Índice
|