São Paulo, Domingo, 16 de Janeiro de 2000


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O historiador Kenneth Maxwell conta a formação de Macau, ocupada pelos portugueses na década de 1550 e devolvida à China no ano passado
A terra de sombras

Reprodução
O Mapa de Macau do livro "Descripçam da Fortaleza de Sofala, e das mais da India com uma Rellaçam das Religiões todas, q há no mesmo Estado", do cartógrafo Antonio de Mariz Carneiro, de 1639


Distante 80 km de Hong Kong, do outro lado do estuário do rio Pearl, fica a antiga cidade de Macau. Ocupada pelos portugueses na década de 1550, ela foi devolvida à China em 20 de dezembro de 1999. O território de Macau consiste hoje de uma minúscula península, densamente povoada, com pouco mais de 5 km2, bem como de duas ilhas, Taipa, com 5,5 km2, e Coloano, com 7,7 km2. A população chega a 430 mil pessoas, 97% das quais são chinesas. Lisboa queria que a transferência à China acontecesse em 2007, marcando o 450º aniversário de sua presença na costa sul da China, mas os chineses prefeririam resolver o caso antes do final do milênio. Os mandarins britânicos de Whitehall, que não conseguiram se conformar com a idéia de que a bandeira portuguesa ficaria desfraldada sobre Macau depois que a britânica fosse substituída pela chinesa em Hong Kong e irritados com as acusações de que teriam se equivocado em sua leitura das intenções chinesas e "perdido" Hong Kong antes da hora, foram rápidos em alegar que os portugueses se tinham vendido aos chineses já há muito. Sir Percy Craddock, ex-embaixador britânico em Pequim e assessor de Margaret Thatcher quanto à China na época em que ela era primeira-ministra, classificou a autoridade portuguesa sobre Macau de "farsa fantasmagórica". No entanto, os portugueses de Macau estavam acostumados a ser esnobados pelos britânicos, que muitas vezes se esquecem de que chegaram à China como traficantes de drogas, não como democratas. Os habitantes britânicos de Hong Kong na década de 1850 chamavam Macau de "usucapião não autorizado e não reconhecido, mas não contestado, de uma parcela indefinida do solo chinês".

Ópio e chá
De muitas formas, é claro, estavam certos. Lisboa esteve sempre muito longe, e os chineses logo ali. No entanto, Macau foi muito conveniente aos britânicos no século anterior à sua anexação forçada de Hong Kong. Antes disso, os chineses negavam aos mercadores estrangeiros o direito de permanecer durante o ano inteiro na grande cidade comercial de Guangzhou (Cantão), e Macau era absolutamente essencial aos mercadores britânicos, ou a quaisquer outros comerciantes europeus ou americanos, aliás, que quisessem manter um entreposto do qual pudessem vender ópio indiano e adquirir chá chinês. A ambiguidade legal de Macau satisfazia a todas as partes.
Os portugueses chegaram ao estuário do rio Pearl já em 1513, ainda que Macau não tivesse sido fundada por eles até 1557. A iniciativa de fundação veio dos mercadores de Málaca, capturada por Afonso de Albuquerque, em 1511, o que deu aos portugueses um ponto forte na passagem essencial entre o mar do sul da China e a baía de Bengala. Inicialmente, a prosperidade de Macau dependia de sua localização estratégica na rota comercial que saía de Goa (Índia) e chegava ao Japão, passando por Málaca. Igualmente importante era o acesso a Guangzhou, o grande entreposto comercial para a seda, porcelana e produtos de laca do sul da China, localizada a cerca de 130 km do rio Pearl.
Os chineses viam os portugueses, a um só tempo, como temíveis e peculiares. "São brancos e pretos", escreveu um observador chinês. "Os rostos são rosados, e os cabelos, brancos. Mesmo os mais jovens têm cabelos que parecem brancos como a neve". Os chineses ficaram impressionados com os "narizes aduncos e olhos esverdeados, penetrantes, como os dos gatos", dos europeus. Os escravos africanos levados pelos portugueses à China, alegavam os chineses, "eram em geral semelhantes a seres humanos". Os chineses acreditavam que os portugueses fossem canibais, raptassem crianças e se deixassem rapidamente conduzir à ira e à violência, momentos em que deixavam de ser humanos e se tornavam animais selvagens. Os chineses também exibiam saudável respeito pelo poder de fogo e capacidade de combate dos portugueses e queriam confiná-los a um lugar remoto onde pudessem ser observados, vigiados e, se preciso, tomados por exemplos. As maravilhas e curiosidades tecnológicas disponíveis em Macau intrigavam especialmente os chineses. Um observador chinês viu um "aparelho particularmente obsceno", uma mulher inflável feita de couro e seda que alguns viajantes portugueses carregavam com eles para levar para a cama quando preciso.

Faixa de areia
A hostilidade e suspeita dos chineses em relação aos ocidentais continuou forte durante o período Ming (1369-1644) e depois. O jesuíta italiano Matteo Ricci, que chegou à China em 1582, escreveu ao general da ordem jesuíta, Claudio Acquaviva, contando que as pessoas que queriam falar mal de alguém diziam: "Ele tem o hábito de ir a Macau". Para manter essas influências sob controle, o magistrado chinês do distrito ordenou a construção de uma barreira e de uma guarita na metade da faixa de areia que separa a península de Macau do continente. Soldados chineses ficavam de guarda ali para controlar o fluxo de produtos e pessoas através da fronteira.
Na verdade, Macau vivia sob jurisdição mista, portuguesa e chinesa, e os portugueses pagavam tributo ao imperador da China pelo direito de residir na cidade.
A ligação com Lisboa foi sempre tênue. A distância entre Portugal e Macau por mar era imensa, uma viagem de entre 16 mil e 24 mil km, que começava rumo ao sul e oeste, pelo Atlântico, até o Brasil, e depois rumo leste até o cabo da Boa Esperança, norte até Madagascar, atravessando o Oceano Índico até a costa de Malabar, passando por Goa e Cochin, Calcutá e em torno da Índia, chegando à costa do Coromandel e Málaca, e, depois de lá, passando por Java e pela península malaia até Macau. A cidade vivia do comércio e era um nódulo crucial da rede comercial ligando o Japão, o sul da China, o Sudeste Asiático e a Índia. Da década de 1550 até a de 1640, a cidade prosperou com as sedas exportadas da China ao Japão e com a prata trazida do Japão em pagamento. A prata era usada igualmente para adquirir produtos em Macau, reexportados para o Sudeste Asiático, Índia e Europa.

As ameaças a Macau vieram menos dos chineses do que de outros europeus, especialmente os holandeses


A prosperidade de Macau dependia, nos primeiros anos do território, de um comércio interasiático no qual os portugueses se haviam estabelecido como intermediários, em parte devido ao seu poder de fogo superior, mas também devido à decisão política chinesa de não participar do comércio e exploração marítimos, a despeito dos sucessos das viagens chinesas ao Oceano Índico no século precedente. Goa, o coração administrativo de todas as colônias portuguesas da África Oriental do Japão, era o extremo ocidental desse sistema comercial interoceânico. A cada dois ou três anos, o "navio do Japão" partia de Goa transportando tecidos de algodão da Índia, vidros, prata, marfim, veludo e tecido escarlate espanhol, azeitonas, azeite de oliva e vinho. Em Málaca, pimenta, cravo e madeiras aromáticas eram embarcados para venda no Japão e na China. Em Macau, a carraca às vezes permanecia por até um ano, antes de partir rumo a Nagasaki com uma carga de seda vermelha e branca, porcelana, almíscar, açúcar mascavo e branco e outras mercadorias preciosas. Os japoneses chamavam a esses navios "kuro-fune", ou "navios negros", um termo revivido para a frota do comodoro Perry três séculos depois. A partir de 1571, um comércio próspero, se bem que clandestino, foi estabelecido entre Manilha e Macau, financiado pela prata que fluía através do Pacífico, das minas no Peru e México. A administração portuguesa de Macau refletia esse comércio sazonal, oceânico e interasiático. A autoridade executiva cabia não a um funcionário português residente, mas ao capitão-mor da carraca destinada ao Japão, e ele só permanecia em Macau nas escalas a caminho da Índia ou enquanto estava à espera da monção para prosseguir viagem rumo ao Japão. O "Grande Navio do Amacon", como os ingleses o chamavam, era uma enorme embarcação de mais de 1,6 mil toneladas, a maior do mundo na época. Apenas o galeão de Manilha, que operava a rota Filipinas-Acapulco, transpacífico, lhe era comparável.

Retratos de senadores
Para governar a cidade na ausência do capitão-mor, os cidadãos de Macau formaram um corpo eletivo, o Senado de Câmara, em 1586. Ele incluía um juiz chefe, um secretário e um procurador, cujo trabalho era representar o governo da cidade junto às autoridades chinesas, que reconheciam seu direito de fazê-lo. O Senado de Macau assim se tornou a primeira instituição representativa estabelecida na Ásia, e algumas vezes removia funcionários portugueses cujo desempenho desaprovava, além de dirigir as atividades cotidianas da idade.
O impressionante edifício sede do Leal Senado continua a dominar a praça central de Macau. As paredes de sua sala do conselho estão decoradas com os retratos de senadores que exerceram seus mandatos desde o século 16; recentemente, uniu-se a eles o retrato de Ho Yin, o rico senador chinês que presidia a Câmara Chinesa de Comércio em Macau e representava a ligação extra-oficial entre os chineses da cidade e Pequim nos anos 60 e 70. Seu filho, Edmund Ho Hau Wah, se tornou o primeiro executivo chefe de Macau quando da devolução do território à China.
As ameaças a Macau, ao longo da maior parte da história da cidade, vieram menos dos chineses, na verdade, do que de outros europeus, especialmente os holandeses. Os jesuítas construíram as primeiras fortificações no Monte, o ponto forte central da península, e os jesuítas e fortes ajudaram a defender Macau contra ataques navais dos holandeses em 1622, quando estes fizeram cerco à cidade com uma frota de 13 navios e 1,3 mil soldados. Um grande canhão montado na igreja de São Paulo e operado pelo padre Jeronimo Rho, um jesuíta de origem italiana e matemático, disparou um tiro que explodiu diretamente no paiol de munições dos holandeses. Era o dia de São João Batista, e por isso ele foi escolhido como santo padroeiro da cidade. Conta-se que os escravos africanos dos portugueses interpretaram literalmente demais a referência a São João Batista e celebraram seu dia decapitando os infelizes prisioneiros holandeses.
Em 1641, porém, um elo vital na cadeia comercial que sustentava a prosperidade da cidade foi rompido quando Málaca foi tomada pelos holandeses. Ainda mais catastrófica para Macau foi a expulsão dos portugueses do Japão, em 1639, e o fim do lucrativo comércio japonês. O senado de Macau enviou uma delegação para pedir aos japoneses que revertessem sua decisão. Como declaração final de que estavam falando sério, os japoneses executaram 61 dos delegados; só os criados foram poupados para levar a mensagem de volta a Macau.
A reafirmação da soberania portuguesa na revolta contra o domínio espanhol em 1640 também pôs fim ao lucrativo comércio entre Macau e Manilha. Na China, os manchus haviam derrubado a dinastia Ming e estavam consolidando seu poder. Com a perda das conexões com as Filipinas e o Japão, os mercadores de Macau já não dispunham de prata com a qual financiar seu comércio externo. "Somos prova viva da fábula de Midas, que morreu de fome em uma mesa coberta de pratos de ouro", escreveu um mercador de Macau, João Marques Moreira, em 1644. "Isso nos está acontecendo agora, pois, tendo visto nossas mesas repletas de ouro, prata, diamantes, rubis e pérolas, estamos morrendo aos poucos."
Depois de 1640, Macau se voltou à Indochina, Macassar e Timor, e muitos de seus mercadores se tornaram representantes de empresários de Cantão que queriam continuar a negociar com os japoneses usando navios chineses. De fato, os mercadores de Cantão eram muitas vezes intermediários ou compradores para comerciantes chineses ricos, e rapidamente se deram bem nesse papel, vendendo seus nomes a chineses e europeus para permitir que negociassem em Macau. A fundação de Hong Kong, porém, prejudicou Macau tanto quanto a perda de Málaca e a destruição da presença portuguesa no Japão, dois séculos antes. Macau deixou de ser necessária como alojamento dos mercadores que comerciavam com Cantão. O porto raso e frequentemente obstruído da cidade não era páreo para os ancoradouros de águas profundas de Hong Kong, do outro lado do estuário do rio Pearl. Os mercadores de Macau por isso se voltaram a empreendimentos menos lícitos, criando um submundo especializado em drogas, escravidão e prostituição. Da década de 1850 à de 1870, o notório "tráfico de coolies" para o Peru e Cuba floresceu em Macau; as condições sob as quais esses camponeses chineses eram transportados como trabalhadores servis muitas vezes se mostravam tão ruins quanto as do tráfico de escravos africanos, proibido pouco antes. Consequências políticas não tardaram. O estabelecimento de Hong Kong inspirou os portugueses a procurar estatuto semelhante para Macau. Até a década de 1840, a dupla soberania exercida sobre Macau era conveniente para chineses e portugueses. Mas o balanço de poder estava por mudar dramaticamente. Encorajado pelo exemplo britânico, um agressivo governador português, João Ferreira do Amaral, decidiu imitá-los. Impôs tributos aos pescadores chineses, expulsou os agentes alfandegários da China, suspendeu o pagamento do tributo anual ao imperador chinês e assumiu o controle do portão para a cidade, até então sob domínio chinês. Os chineses reagiram furiosamente. O governador Amaral, enquanto inspecionava a construção de um novo portão, foi derrubado de seu cavalo e assassinado, sua cabeça e mão esquerda decepados e enviados à China. Quando os chineses enviaram tropas adicionais para guarnecer seus fortes perto de Macau, um jovem tenente da cidade, chamado Mesquita, partiu liderando 36 soldados e os derrotou. Tornou-se instantaneamente um herói para os cidadãos locais, e uma estátua em sua homenagem foi colocada na praça em frente ao Leal Senado, onde foi destruída pelos estudantes maoístas rebelados em 1966. Mas a avenida que hoje corta o que no passado era a aldeia chinesa de Wang Xia continua a portar seu nome, e o governador Amaral é relembrado (ou pelo menos era até o dia 20 de dezembro) na avenida que conduz ao velho portão da cidade. Os chineses devolveram a cabeça e a mão do governador assassinado aos portugueses em 1850, e seus restos mortais foram mais tarde despachados para Lisboa, onde foram enterrados no estranhamente batizado "Cemitério dos Prazeres". Mas os símbolos continuam potentes nesse mundo de sombras. A estátua do governador Amaral na cidade foi removida em 1991 e enviada a Lisboa por insistência do diretor do departamento de assuntos de Macau e Hong Kong, em Pequim. No século 16, os portugueses chamavam Macau de "Cidade de Deus na China". Mais tarde, acrescentaram a frase "não há outra mais leal", em reconhecimento, diz-se, do apoio de Macau à independência portuguesa da Espanha em 1640, a despeito do fato de que a cidade estava sob ameaça de tropas espanholas vindas de Manilha, cidade com a qual desfrutava um lucrativo comércio. De fato, o título foi dado no começo do século 19, quando Macau resistiu às tentativas britânicas de "protegê-la" contra os franceses por meio do envio de uma força de ocupação no curso das guerras napoleônicas. Os portugueses tinham por hábito batizar seus territórios ultramarinos de maneira grandiloquente, mas esses nomes raramente "pegavam" com o público. "Macau" é uma versão abastardada de um nome chinês, que se referia à baía da deusa A-Ma (A-Ma-Gao). Seu templo, o mais antigo em Macau, está voltado para o mar no extremo da península. Fica abrigado contra a encosta rochosa da colina, como é comum no caso dos templos chineses, para aplacar o dragão que vive dentro da elevação. A-Ma é um local sagrado para os pescadores e fica lotado de fiéis a cada dia, diferentemente das igrejas católicas da cidade, sempre vazias.

Explosões de fogos
Estive em Macau na época do festival de A-Ma, e durante todo o dia o templo foi ocupado pelas explosões ruidosas dos fogos, aos quais os juncos e sampanas de pesca e transporte respondiam ao rodear a ponta do promontório, entrando ou saindo do porto interno de Macau e apontando suas proas em direção ao templo da deusa para prestar-lhe um ruidoso cumprimento. Um museu marítimo moderno, construído em uma área aterrada em frente dos portões do templo para celebrar as explorações marítimas portuguesas e chinesas, fechou no dia da festa em honra de uma presença mais antiga, completamente oculta por trás da intrincada cerca de bambu e das bandeiras coloridas de uma ópera chinesa itinerante.
Houve momentos em que Macau com certeza foi "a cidade de Deus na China", lar de muitos jesuítas zelosos e futuros santos. Francisco Xavier, nascido na Espanha, morreu na ilha de Shangchuan, perto de Macau, esperando um chamado de Pequim que nunca chegou, e a capela batizada em homenagem a ele, na ilha Coloano, abriga parte de seu braço, bem como os venerados ossos de mártires cristãos vietnamitas e japoneses. Por volta do século 17, dizia-se que Macau tinha mais conventos e mosteiros do que o Vaticano.
No século 18, essa notável paisagem urbana muitas vezes lembrava aos marinheiros que a viam de alto-mar a baía de Nápoles. Parte dessa atmosfera ainda existe, perto do final da Praia Grande, onde o velho e grandioso Hotel Boa Vista, cenário de muitas intrigas ao longo das décadas, continua a ocupar o topo de sua colina. Para o desagrado de muitos, o hotel tornou-se o consulado português com a devolução de Macau à China.
continua



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