São Paulo, Domingo, 16 de Janeiro de 2000


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As tríades, sociedades secretas e organizações criminosas chinesas, estão uma vez mais em guerra em Macau


Essa área de Macau, com sua alameda costeira curvilínea e velhas árvores frondosas, e os palácios que ainda restam dos grandes mercadores de Macau no século 19, se assemelha ao bairro da Urca, sob o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro, ou ao porto de Cannes nos anos 50. A Praia Grande é tradicionalmente conhecida como o bairro "europeu" ou "cristão" de Macau. O bairro chinês fica do outro lado da colina, perto do porto interno, para além das muralhas da cidade velha. A pedra fundamental da mais famosa igreja jesuíta de Macau, a igreja de São Paulo, foi deitada em 1601. Só resta sua fachada, no topo de uma ampla escadaria ao lado da grande fortaleza do Monte, do século 17, também construída pelos jesuítas, um bastião crucial para a defesa de Macau. Os primeiros jesuítas se fixaram permanentemente em Macau em 1563. Pelo final da década de 1570, uma espaçosa residência havia sido construída entre o Monte e o jardim no qual fica a gruta batizada em homenagem ao poeta épico português Luís de Camões, que pode ou não ter vivido em Macau (os dois principais especialistas na história da cidade, o padre Teixeira e Charles R. Boxer, ambos muito velhos e doentes, discordam vigorosamente quanto ao tema). O jardim continua a ser um lugar muito bonito, e um busto de Camões, sob o qual estão inscritos os três primeiros versos do primeiro canto de "Os Lusíadas", foi colocado na gruta. Aqui, à sombra das árvores, velhos chineses trazem seus pássaros engaiolados a cada manhã para que cantem e chilreiem. Por sorte, apenas 2% da população de Macau lê português, e pouca gente é capaz de entender a referência pouco lisonjeira no verso de Camões às "terras viciosas de África e Ásia". A famosa igreja de São Paulo foi financiada pela cidade de Macau, da qual os jesuítas haviam obtido uma comissão fixa dos lucros do comércio com o Japão. Uma narrativa chinesa do século 17 descreve a "mãe dos céus" no altar como uma deusa que "usa roupas curiosas e um véu feito de contas de vidro; o cabelo dela parece natural". Fiquei impressionado com a relativa simplicidade das igrejas católicas em Macau, quase calvinistas em sua falta de ornamentação e surpreendentemente austeras se comparadas à efervescência barroca das igrejas no Brasil ou na América espanhola do mesmo período. Mas, tendo visitado o interior rescendente a incenso do templo de Kum Iam, isso começou a fazer mais sentido, da mesma forma que as referências chinesas do século 17 à virgem postada no altar de São Paulo. A grande fachada da igreja de São Paulo continua a ser um dos marcos da paisagem de Macau e reflete a visão dos artesãos chineses e japoneses que a construíram. Um lance de degraus largos conduz à frente da igreja, onde a fachada se eleva em quatro frisos: o primeiro contém os quatro santos jesuítas, com Inácio de Loiola e Francisco Xavier no centro; um dragão e um navio português com pleno velame ocupam o terceiro, à esquerda e à direita do qual encontramos inscrições em chinês; o quarto friso mostra Jesus e os instrumentos da crucificação e, em seu topo, uma pomba de bronze está representada entre o sol e a lua. Os degraus da São Paulo estão sempre lotados de turistas japoneses admirados diante do trabalho de seus ancestrais do século 17. Na extrema esquerda da fachada, há duas pedras maciças que no passado ostentavam as bandeiras indicativas de que o imperador da China havia conferido aos jesuítas a patente de mandarins. Os jesuítas, a despeito de seu papel dominante, não foram a primeira ordem católica a operar na China e nem eram a única operando em Macau. Os agostinianos, dominicanos e franciscanos não apreciavam muito os jesuítas, ou uns aos outros, mas também estiveram lá. Em 1613, jesuítas e dominicanos, e seus respectivos partidários, combateram abertamente nas ruas, com armas de fogo e espadas, para grande consternação das autoridades chinesas, que colocaram em alerta as forças armadas em Cantão e proibiram a venda de alimentos aos portugueses. Não foram os chineses que terminaram por solapar a posição dos jesuítas em seu país e por impossibilitar suas experiências de adaptação cultural; o problema foi uma disputa interna da Igreja Católica sobre até que ponto se deveria ir para acomodar as tradições chinesas. A amarga controvérsia sobre o ritual chinês terminou por ser resolvida contra os jesuítas por um decreto papal de 1742. A ordem jesuítica foi expulsa pelos portugueses de suas colônias em 1759 (1762 em Macau) e suprimida pelo papado em 1770. Portugal aboliu as ordens monásticas na década de 1830, convertendo conventos e mosteiros a outros usos. Quando em 1835 um incêndio destruiu o velho colégio jesuíta que no passado abrigara um dos grandes centros ocidentais de estudos chineses, ele já não era um local de culto, mas a cozinha da guarnição local. Pelo início do século 19, Macau se tornara a base dos sérios missionários protestantes, muitos deles norte-americanos, que realizavam obras de caridade e construíam hospitais, ansiosos por converter as massas chinesas. Eles evidentemente abrigavam sérias suspeitas quanto aos seus anfitriões católicos -suspeitas reciprocadas pelo grande número de sacerdotes católicos de Macau. O enorme palácio do bispo de Macau, hoje vazio, fica no topo de uma colina na base da península da Penha, da qual o templo de A-Ma marca a extremidade marinha, bem no ponto em que se poderia supor vivo o dragão chinês. O atual bispo de Macau, dom Domingos Lam, o primeiro chinês a comandar a diocese desde o seu estabelecimento em 1576, está transformando o palácio em uma escola universitária de administração de empresas, e prefere viver em outro local. O bispo Lam é um sacerdote baixinho, enérgico, que fuma sem parar. Sua porta "está aberta para todos", disse-me, quando o procurei em seu escritório ao lado da catedral, no centro de Macau. Ele é um entusiasta da Internet e de seu potencial para o trabalho que realiza em Macau, bem como em termos de comunicação com o mundo exterior. A posição de Lam é sensível, dado o que ele classifica como "a má relação entre o governo chinês e o Vaticano". De forma elíptica, o bispo está dizendo algo importante sobre Macau: estude os atos, não as palavras. O bispo Lam caminhava diante dos retratos desbotados de seus predecessores, enquanto eu saía de sua residência. Eles remontam ao século 16. Mas, como o erudito jesuíta Antonio Vieira disse na década de 1640, "os pregadores tomaram o Evangelho, e os mercadores tomaram os pregadores". A razão de ser de Macau, afinal, era o comércio, e continua a sê-lo: a única coisa que mudou ao longo dos séculos foram as mercadorias.

Cidade do pecado
Macau, a despeito de suas aspirações pias, foi com igual frequência uma cidade do pecado, uma zona de sombras de concubinas e prostitutas, um mundo opaco de negócios escusos e salões de ópio, muito conhecida por sua corrupção. Um visitante chocado dos anos 30 viu Macau como "o parque de diversões da escumalha do mundo, os capitães bêbados, os destroços do mar, os derruídos, e mais mulheres lindas, desavergonhadas e selvagens do que em qualquer outra parte do mundo". W.H. Auden, em frase memorável, disse que Macau era "uma erva daninha da Europa Católica".
Essa é a Macau pela qual milhares de residentes ávidos de Hong Kong esperam, quando lotam os hidrofólios a jato que ligam as duas cidades via estuário do rio Pearl. Controlados pelo rei dos cassinos de Macau, Stanley Ho, esses velozes barcos trazem jogadores ao Hotel Lisboa e às "salas VIP" do cassino, onde eles se posicionam junto a quadros comunistas da China continental, perdendo seu dinheiro sujo nas mesas de jogo.
Seis milhões de visitantes chegam a Macau a cada ano; 80% deles são chineses de Hong Kong, a maior parte dos quais vai direto para as casas de jogo. Os ganhos imensos dos cassinos de Macau são reinvestidos rapidamente na China, Europa e Nova York, em empresas de Hong Kong e imóveis em Lisboa, bem como em subornos a funcionários do PC chinês, administradores locais e burocratas portugueses e em contribuições para as campanhas políticas de Portugal -e, em 1996, ao que parece, também em doações a políticos norte-americanos-, em troca de favores. Os cassinos respondem por mais de 60% das receitas do governo de Macau. Stanley Ho detém o monopólio do jogo na cidade desde 1962, por meio de sua Sociedade de Turismo e Divertimento de Macau, na qual sua participação pessoal é de 25% das ações. O monopólio do jogo está garantido até 2001. O patrimônio líquido de Ho foi estimado em 1992 como sendo superior a US$ 1 bilhão, e seus negócios de jogo agora se estendem à Europa por meio do grupo Sol Estoril, sediado em Portugal. Ele preside a companhia de navegação Shun Tak, que domina as rotas de transporte entre Macau e Hong Kong. Há muito poucas empresas ou empreendimentos em Macau dos quais Stanley Ho não seja participante importante. Ho, que tem perto de 80 anos, nasceu em Hong Kong, filho de uma próspera família eurasiática, e estudou na Universidade de Hong Kong. Fez fortuna durante a ocupação japonesa de Hong Kong. Macau, como território português, se manteve neutra durante a Segunda Guerra e se tornou o refúgio de muitas pessoas vindas da colônia britânica vizinha. Ho desenvolveu um comércio lucrativo entre o Japão, Macau e a Hong Kong ocupada. Após a tomada do poder na China pelos comunistas, e durante a guerra da Coréia, ele forneceu aos chineses ouro, aviões e outros materiais sob embargo. Às vezes diz-se de Macau, e de Stanley Ho, que se trata do único lugar em que "o rei dos cassinos" é o dono de sua colônia. Como era de esperar, o rei dos cassinos de Macau não joga; não tem "paciência para isso", diz. Os anos finais da administração portuguesa têm presenciado violência cada vez maior por parte das gangues, nos limites do império de Ho. As tríades, sociedades secretas e organizações criminosas chinesas, desempenharam um papel crucial no submundo da China por séculos e estão uma vez mais em guerra em Macau, com duas gangues sediadas em Hong Kong, a 14K e a Wo On Lok (esta última por intermédio de sua afiliada em Macau, a Shui Fong). Acredita-se que essas tríades tenham 400 mil empregados em todo o mundo, de executivos corporativos a bandidos de rua. As tríades não são sutis quando vão à guerra. Uma das primeiras vítimas, o gerente-geral do Macao Holiday Inn tentou impedir que prostitutas e cafetões ficassem no saguão de seu hotel. Foi emboscado por três agressores, que o esfaquearam. Cutelos de açougueiro são a arma favorita das tríades em seus acertos de contas. E elas levaram suas disputas à elegante avenida Praia Grande.

Militantes maoístas
A autoridade portuguesa em Macau foi essencialmente demolida em 1966, quando o equilíbrio do poder entre portugueses e chineses na cidade mudou dramaticamente durante os tumultos causados pela Revolução Cultural. Militantes maoístas realizaram manifestações violentas nas ruas de Macau, e o governo português, depois de alguns confrontos armados iniciais, cedeu às suas exigências, que incluíam o fechamento dos escritórios do Kuomintang (partido nacionalista chinês) na cidade e o fim do uso de Macau como ponto de saída para dissidentes fugindo da China.
O governador português foi obrigado a assinar o acordo no escritório da Câmara Chinesa de Comércio, sob um imenso retrato de Mao Tsé-Tung, com Ho Yin presidindo a cerimônia. Mas Pequim não queria a destruição da fachada portuguesa. Ela era útil para os comunistas chineses, a fim de preservar um local em que a aparência de separação de regimes oferecia uma zona cinzenta para transações e contatos; um lugar com ambiguidade suficiente para permitir certo grau de separação e negativa de responsabilidade.
Para surpresa do regime de Salazar, a China não tentou expulsar Portugal de Macau em 1966; e quando, na metade dos anos 70, os portugueses por duas vezes tentaram devolver a região aos chineses, a oferta foi polidamente recusada, com Ho Yin dizendo a eles que ainda não era a hora. Mas esse é de muitas maneiras o uso tradicional que os chineses fazem do enclave português. O professor Fok Kai Cheong, historiador que estudou nos Estados Unidos e leciona na Universidade de Macau, chama o arranjo de "fórmula de Macau", uma espécie de aquiescência implícita quanto às alegações mútuas de soberania sobreposta. O sagaz ministro do Exterior do primeiro-ministro Antônio de Oliveira Salazar, Franco Nogueira, disse que, depois de 1967, os portugueses permaneciam em Macau como "zeladores de um condomínio sob supervisão estrangeira".
De fato, o "modus vivendi", atingido depois dos tumultos maoístas, restabeleceu o velho e prático sistema de autoridade sobreposta, com o diretor da sucursal da agência de notícias Xinhua representando os interesses do governo central, da mesma forma que os mandarins locais costumavam fazer antes da década de 1840. E, embora continue a ser verdade que, a qualquer momento desde o século 16, a China poderia ter cortado o suprimento de alimentos de Macau e imposto sua vontade à força, ela nunca o fez.

Charlie Trie visitou a Casa Branca pelo menos 23 vezes, entre 93 e 96, levando com ele barões dos cassinos de Macau


Hoje, a China é o principal investidor em Macau, com 200 empresas no território controlando 50% do setor financeiro e de seguros e 70% do setor turístico. A participação paralela em instituições chinesas e portuguesas é típica de Macau, da mesma forma que a continuidade dentro da liderança da comunidade chinesa em Macau. A venerável Câmara Chinesa de Comércio, fundada em 1913, tornou-se a principal mediadora entre a China e Portugal de 1949 a 1979. De 1950 até sua morte, o presidente da organização e líder indisputável dos chineses de Macau era o já citado Ho Yin, um empresário muito rico, com interesses em hotéis, restaurantes, bancos, ônibus e empresas de infra-estrutura. Dois terços dos membros chineses da assembléia são também membros do conselho diretivo da Câmara de Comércio. O atual presidente da organização é membro, igualmente, do comitê permanente do Congresso Popular da China, em Pequim . O filho de Ho Yin, Edmund Ho Hau Wah, 44, diretor-executivo e sócio responsável pelo Tai Fung Bank, metade do qual controlada pelo Banco da China, se tornou o executivo chefe da Região Administrativa Especial de Macau em 20 de dezembro de 1999. O Tai Fung Bank é o segundo maior banco do território, e Edmund Ho preside a Associação Bancária e foi membro do comitê que rascunhou a lei básica, bem como do Grupo de Ligação Sino-Português. Ele é também vice-presidente da Federação Pan-Chinesa da Indústria e Comércio. Encontrei-me com Edmund Ho -que estudou no Canadá- em seu escritório apainelado em madeira do edifício do Tai Fung Bank, na movimentada avenida Central de Macau. Sua principal preocupação, disse, é como Macau se posicionará para enfrentar os desafios do novo século por meio da diversificação de sua base econômica, a fim de permitir que mantenha uma autonomia real, especialmente quanto às áreas de desenvolvimento vizinhas no continente chinês. Ele acredita que haja urgente necessidade de aperfeiçoar a educação técnica e científica, e que a cidade é pequena demais para ser viável. Quando me encontrei com ele, acabava de voltar do Brasil, onde acompanhou o governador Rocha Vieira em missão para promover Macau como porta de entrada na China para as empresas brasileiras.

Quem governa Macau
A população chinesa de Macau tem origens bastante diversificadas. Os Tanka, uma etnia que vive em barcos, respondem pelo elemento mais antigo da população, embora a maioria deles tenha abandonado suas embarcações e more hoje em apartamentos na cidade. No passado, havia um forte componente de chineses de Fukien, mas agora 50% dos chineses que vivem em Macau têm suas origens na área rural da província de Guangdong. Os residentes mais antigos nunca viveram sob o regime comunista e mantêm muitas das práticas da velha China, há muito destruídas no continente pela guerra e pela revolução. Muitos deles têm passaportes portugueses.
Cerca de 40% da população chinesa de Macau é composta de imigrantes mais recentes, muitos tendo vindo clandestinamente do continente dos anos 80 em diante. Há um grupo menor, mas muito importante, que veio da diáspora chinesa e voltou do Sudeste Asiático para Macau nos anos 60. Tendem a ser pessoas de classe média, com alto nível educacional. A liderança da comunidade chinesa repousa principalmente sobre o primeiro grupo, famílias que vivem em Macau há mais de duas gerações, influentes no mundo dos negócios e das sociedades secretas. Extremamente conservadores no plano social -e pró-Pequim no plano político-, seus filhos, muitas vezes educados no exterior, tendem a falar preferencialmente inglês e são fortemente influenciados pelos acontecimentos em Hong Kong. Mostram-se também mais liberais do que os pais.
Diversas figuras significativas em Macau vieram da China após 1979, incluindo intelectuais e figuras do submundo, bem como um contingente de chineses do Sudeste Asiático que desempenharam papéis importantes em Pequim no passado e agora detêm posições de destaque nos círculos financeiros e intelectuais de Macau, assumindo uma posição mais independente.
A população eurasiana da cidade, conhecida como "os macaneses", é um grupo estreitamente unido que até há pouco incluía de 10 mil a 15 mil componentes.
Mas a emigração extensa indica que hoje há mais macaneses espalhados pelo mundo do que em Macau. A comunidade macanesa integra elementos genéticos de toda a Ásia, e seus ancestrais incluem, principalmente, malaios, japoneses, indianos, timorenses, chineses e coreanos, bem como os portugueses. Na gíria cantonesa local, eles são conhecidos como "filhos e filhas da terra", ou seja, pessoas "nascidas na terra", e não "estrangeiros" em relação aos chineses, como os portugueses sempre foram e continuam a ser. A cultura macanesa é uma rica mistura mestiça, e eles escrevem e falam um idioma misto local. O Leal Senado, na prática o governo de Macau durante os três primeiros séculos de existência da cidade, era dominado por representantes eletivos macaneses. Os distúrbios maoístas de 1966 foram um choque profundo para esse grupo. Os macaneses sempre se identificaram com os portugueses dominantes, e seu senso de traição diante da capitulação portuguesa às exigências da China foi profundo. Os macaneses anteriormente se haviam distanciado das elites chinesas em Macau em todos os aspectos, exceto nos negócios; depois de 1966 isso mudou, especialmente no que tange aos casamentos, religião e política. O distanciamento entre os macaneses e portugueses foi também agravado pelo fato de que a burocracia de Macau se tornou mais, e não menos, "colonial" -nos anos 80, suas fileiras de comando começaram a ser preenchidas cada vez mais por funcionários portugueses servindo curtos períodos na cidade, algo que desagradou profundamente aos macaneses. Mas, em uma economia alimentada por vastos fluxos de dinheiro, por cassinos e por sexo; um lugar ambíguo, onde mãos podiam ser molhadas e favores comprados, onde dinheiro podia ser lavado e mercadorias e pessoas contrabandeadas para dentro e para fora sem grande supervisão; onde os empresários viviam oferecendo o que era proibido em outros locais da região, surpreende que Macau, como outras cidades livres com soberanias múltiplas e sobrepostas, seja um lugar ideal para espionagem e transferências de fundos para propósitos políticos mais amplos -porém clandestinos- das grandes potências que escolheram manter a cidade nessa posição, para começar. Assim, quando Ron Brown, secretário do Comércio dos Estados Unidos, deu um jantar íntimo no Shangri-la Hotel, em Hong Kong, em outubro de 1995, para o qual "um empresário imobiliário de Macau e sua mulher, um banqueiro e conselheiro legislativo de Macau, um magnata do entretenimento de Macau e membros de diversas famílias ilustres de Hong Kong" foram convidados, eles foram recebidos pelo sino-americano Yah Lin Trie, co-proprietário de um restaurante chinês a poucos quarteirões da Assembléia Estadual do Arkansas, um dos locais de reunião prediletos de Bill Clinton quando era governador, e por Ernest Green, um amigo de Clinton e encarregado de recolher fundos de campanha para o Partido Democrata. Os convidados logo entenderam a mensagem. Afinal, estavam todos acostumados a pedidos semelhantes dos candidatos à Presidência de Portugal. O próprio Brown, aliás, fora o principal responsável pelas verbas de campanha democratas antes de se tornar secretário do Comércio. No começo de 1996, a despeito de objeções do Departamento de Estado, novas regras permitindo a exportação de computadores de alta velocidade a empresas chinesas entraram em vigor. De acordo com uma reportagem de Jeff Gerth e Eric Schmitt, publicada pelo "New York Times" em 1998, "a Agência Central de Inteligência (CIA) e outras agências federais concluíram que pelo menos alguns desses computadores estavam sendo usados pelas forças armadas chinesas...". "Charlie" Trie se tornaria uma figura central, se bem que misteriosa, na investigação do Senado norte-americano sobre abusos no financiamento de campanhas eleitorais, que não chegou a conclusões definitivas, bem como no relatório do comitê seleto da Câmara de Deputados sobre "o roubo de segredos nucleares" pela China, e também em processos e condenações federais nos Estados Unidos relacionados a supostas contribuições chinesas aos fundos de campanha presidencial em 1996. E a maior parte dessas contribuições foi "lavada" via Macau. Charlie Trie visitou a Casa Branca 23 vezes, pelo menos, entre 1993 e 1996, levando com ele diversos barões dos cassinos de Macau, mais vezes do que o principal negociador dos Estados Unidos para o tratado sino-americano na década de 1840.

Uma mistura especial
Macau, além de sua rica pátina da velha Europa, também perpetua muito da China tradicional, por ter ficado isolada dos tumultos que devastaram a China nas últimas décadas. Muitas práticas religiosas antigas sobrevivem em Macau, onde dificilmente se encontra uma esquina sem um pequeno santuário, vela, incenso ou oferenda a uma rica variedade de divindades. Uma ampla gama de grupos civis e religiosos têm convivido por muito tempo com grande tolerância mútua.
Os intelectuais chineses e macaneses da cidade também estão começando a compreender que a mistura especial de Europa e Ásia que Macau abriga corre o risco de ser engolfado pelo crescimento econômico do delta do rio Pearl e pela cobiça de uma estranha coalizão de magnatas comunistas, comissários do Partido Comunista e burocratas portugueses de serviço curto que, juntos, estabeleceram a agenda urbana de construção de imóveis nos últimos anos.
Como me disse Gary Ngai, diretor-executivo da Fundação Sino-Latina, transformar Macau "de cidade do jogo em cidade da cultura é a melhor forma para que ela sobreviva no futuro, transformando-a de sombra turística de Hong Kong à cabeça de um dragão de turismo cultural no delta do rio Pearl".
Preservar a "Cidade de Deus na China", assim, em uma estranha reversão histórica, agora cabe aos chineses de Macau, e não mais aos portugueses, que logo terão partido. O poder da elite local chinesa e sua influência dependem em grau considerável de persuadir Pequim de que a preservação cultural, nesse caso, é uma vantagem para a China, e de convencer as "nacionalidades" locais de que essa herança não é um "lixo colonial" a ser jogado fora depois de 1999.
Só se pode desejar-lhes sorte, lembrando sempre a nota cautelar do bispo Lam de que nada em Macau é o que parece ser, e a astuta observação do velho e sábio historiador C.R. Boxer, de que é essencial lembrar, para o melhor e para o pior, que "em Macau, se é que isso acontece em algum lugar, Ocidente e Oriente se encontraram". Portanto, é apropriado que nesse pequeno, ambíguo e opaco local, a grande aventura que 500 anos atrás levou os europeus à Ásia em busca das riquezas de Cathay seja encerrada da maneira que os chineses escolheram e em larga medida nos termos que determinaram.


Kenneth Maxwell é historiador inglês, autor, entre outros, de "A Devassa da Devassa" e "Pombal - Paradoxos do Iluminismo" (ambos pela Paz e Terra). Lançou também "The Making of Portuguese Democracy" (A Formação da Democracia Portuguesa, Cambridge University Press). O texto acima foi extraído de um artigo publicado no "World Policy Journal".
Tradução de Paulo Migliacci.


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