São Paulo, Domingo, 16 de Janeiro de 2000


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Estudo de Wolfgang Iser explica o que acontece quando se lê um texto literário
O esclarecimento da leitura

Abel Barros Baptista
especial para a Folha

Admitindo que a designação (ainda) significa alguma coisa, "O Ato da Leitura", de Wolfgang Iser, é uma das obras decisivas do pós-estruturalismo nos estudos literários. Na verdade, quando a teoria literária, pelo começo dos anos 80, galgou a cerca do estruturalismo episodicamente francês, beneficiou-se de dois fatores: o da divulgação dos escritos do teórico russo Mikhail Bakhtin (datam de 1981 o livro de Tzevtan Todorov, "O Princípio Dialógico", e o de Michael Holquist, "A Imaginação Dialógica"), que, aliás, continua a alimentar multidões de estudiosos e a influenciar uma pletora de estudos, de Machado de Assis a Saramago; e o da divulgação, fora da Alemanha, dos trabalhos de um grupo de teóricos que compunham a Escola de Constança, também chamado grupo da "Poetik und Hermeneutik", em que se incluíam os nomes de Hans-Robert Jauss, Wolfagang Iser, Karlheinz Stierle ou Dieter Henrich e que viria a ser mais correntemente designado pela fórmula Estética da Recepção.

Uma ilusão
Não cabe no curto espaço desta nota a explicitação, muito menos o questionamento, dos possíveis laços de solidariedade entre esses dois fatores. Mas, se ambos reagem (e permitem reagir) contra a ilusão do "texto em si mesmo", é hoje sobretudo óbvio que, cada um a seu modo, possibilitaram um conjunto de lugares-comuns do discurso da teoria e da crítica literária: diálogo ou dialogismo, leitor e leitura, recepção, "reader-response criticism", "não há texto sem leitor", "há tantas leituras quantos os leitores" etc. são termos e fórmulas que, se no efeito superficial oferecem ao primeiro que chega uma espécie de "schibbolet" do pós-estruturalismo, no essencial denotam um campo disciplinar crescentemente dominado pela leitura colocada enquanto problema teórico. O livro de Iser, publicado em 1976, prosseguindo e alargando uma reflexão teórica cujos primeiros trabalhos publicados datam do começo dos anos 70, é um dos estudos que pretendem analisar o que realmente acontece quando lemos uma obra literária. E permanece, cumpre dizer, um trabalho de referência, a vários títulos indispensável. Ainda adianta sublinhar que a posição de Iser na dita estética da recepção está de fato longe da facilidade classificativa que a divulgação impôs. Iser distingue cuidadosamente uma "Rezeptionstheorie", que, "no sentido estrito da palavra, diz respeito à assimilação documentada de textos", de uma "Wirkungstheorie", a teoria do efeito estético em subtítulo do livro, a qual lida com o leitor implicado no texto e que pode ser compreendida pela análise do texto. Assim, o problema teórico de Iser é a interação de uma estrutura textual com o processo da leitura, e todo o seu projeto se baseia na convicção de que a atenção exclusiva ou à estrutura ou à resposta do leitor pouco ou nada pode esclarecer sobre o próprio processo da leitura.

Novela complicada
Iser debate-se com o problema difícil -para não dizer insolúvel- da leitura enquanto problema: é o texto que determina a leitura ou o leitor que constrói a leitura? A sua resposta é bem sintetizada por Luiz Costa Lima no excelente texto da orelha deste segundo volume: "A carência de sentido que a obra literária traz consigo se atualiza em um paradoxo: a atualização do efeito nem está previamente dada, nem é arbitrária. Por isso, a interpretação, a doação de sentido, tanto varia historicamente, como mantém, em cada momento histórico, uma certa semelhança interna". Aqui está dado o cerne da teoria da leitura de Iser: a atividade do leitor está sujeita a um controle, controle pelo texto que não está no texto. Em suma: o leitor da obra literária "recebe" o sentido à medida que o compõe.
Essa idéia é ilustrada pela leitura da famosa e complicada novela de Henry James "The Figure in the Carpet", que Iser leva a cabo "em lugar de uma introdução". Trata-se de um momento particularmente curioso do livro, quer porque apresenta as grandes linhas do projeto teórico, quer porque lhe revela os limites quando mostra algumas consequências do fato de a leitura não poder deixar de ser o principal instrumento de uma teoria da leitura. Iser lê a novela de James sublinhando o fracasso do narrador que procurou o segredo, concluindo que nela se tematizam dois modos de ler, um que procura extrair um sentido enquanto dado do texto dele separável, outro entendido como efeito que deve ser experimentado.
Mas, para tanto, Iser tem que dizer que a personagem Corvick representa uma posição perante a leitura oposta à do narrador que fracassa, o que é muitíssimo discutível: Iser sustenta que o leitor só pode começar a construir o sentido do texto se rejeitar a perspectiva do narrador que lhe escamoteia a de Corvick, mas justamente esse escamoteamento impede qualquer leitor de decidir com plena segurança que a perspectiva de Corvick é de fato oposta à do narrador. O repúdio do modo de leitura que procura arrancar à obra o seu segredo assenta afinal na suposição de que o próprio Iser descobriu o segredo da novela de James. Mas é muito difícil imaginar como poderia ser de outro modo.



O Ato da Leitura (Vols. 1 e 2)
200 págs., R$ 26,00 cada
Wolfgang Iser
Tradução de Johannes
Kretshmer
Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/ 816-6777).



Abel Barros Baptista é crítico e ensaísta, professor da Universidade Nova de Lisboa e diretor-adjunto da revista portuguesa "Colóquio-Letras". É autor, entre outros, de "Em Nome do Apelo do Nome" (Litoral Edições, Lisboa) e "Autobibliografias" (Relógio d'Água), sobre a obra de Machado de Assis.


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