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Estudo de Wolfgang Iser explica o que acontece quando se lê um texto literário
O esclarecimento da leitura
Abel Barros Baptista
especial para a Folha
Admitindo que a designação (ainda)
significa alguma coisa, "O Ato da
Leitura", de Wolfgang Iser, é uma das
obras decisivas do pós-estruturalismo
nos estudos literários. Na verdade, quando a teoria literária, pelo começo dos
anos 80, galgou a cerca do estruturalismo
episodicamente francês, beneficiou-se
de dois fatores: o da divulgação dos escritos do teórico russo Mikhail Bakhtin (datam de 1981 o livro de Tzevtan Todorov,
"O Princípio Dialógico", e o de Michael
Holquist, "A Imaginação Dialógica"),
que, aliás, continua a alimentar multidões de estudiosos e a influenciar uma
pletora de estudos, de Machado de Assis
a Saramago; e o da divulgação, fora da
Alemanha, dos trabalhos de um grupo
de teóricos que compunham a Escola de
Constança, também chamado grupo da
"Poetik und Hermeneutik", em que se
incluíam os nomes de Hans-Robert
Jauss, Wolfagang Iser, Karlheinz Stierle
ou Dieter Henrich e que viria a ser mais
correntemente designado pela fórmula
Estética da Recepção.
Uma ilusão
Não cabe no curto espaço desta nota a explicitação, muito menos o questionamento, dos possíveis laços de solidariedade entre esses dois fatores. Mas, se ambos reagem (e permitem reagir) contra a ilusão do "texto em
si mesmo", é hoje sobretudo óbvio que,
cada um a seu modo, possibilitaram um
conjunto de lugares-comuns do discurso
da teoria e da crítica literária: diálogo ou
dialogismo, leitor e leitura, recepção,
"reader-response criticism", "não há
texto sem leitor", "há tantas leituras
quantos os leitores" etc. são termos e fórmulas que, se no efeito superficial oferecem ao primeiro que chega uma espécie
de "schibbolet" do pós-estruturalismo,
no essencial denotam um
campo disciplinar crescentemente dominado
pela leitura colocada enquanto problema teórico.
O livro de Iser, publicado em 1976, prosseguindo
e alargando uma reflexão
teórica cujos primeiros
trabalhos publicados datam do começo dos anos 70, é um dos estudos que pretendem analisar o que realmente acontece quando lemos uma obra
literária. E permanece, cumpre dizer, um
trabalho de referência, a vários títulos indispensável.
Ainda adianta sublinhar que a posição
de Iser na dita estética da recepção está
de fato longe da facilidade classificativa
que a divulgação impôs. Iser distingue
cuidadosamente uma "Rezeptionstheorie", que, "no sentido estrito da palavra,
diz respeito à assimilação documentada
de textos", de uma "Wirkungstheorie", a
teoria do efeito estético em subtítulo do
livro, a qual lida com o leitor implicado
no texto e que pode ser compreendida
pela análise do texto. Assim, o problema
teórico de Iser é a interação de uma estrutura textual com o processo da leitura,
e todo o seu projeto se baseia na convicção de que a atenção exclusiva ou à estrutura ou à resposta do leitor pouco ou nada pode esclarecer sobre o próprio processo da leitura.
Novela complicada
Iser debate-se
com o problema difícil -para não dizer
insolúvel- da leitura enquanto problema: é o texto que determina a leitura ou o
leitor que constrói a leitura? A sua resposta é bem sintetizada por Luiz Costa
Lima no excelente texto da orelha deste
segundo volume: "A carência de sentido
que a obra literária traz consigo se atualiza em um paradoxo: a atualização do
efeito nem está previamente dada, nem é
arbitrária. Por isso, a interpretação, a
doação de sentido, tanto varia historicamente, como mantém, em cada momento histórico, uma certa semelhança
interna". Aqui está dado o cerne da teoria da leitura de Iser: a atividade do leitor
está sujeita a um controle, controle pelo
texto que não está no texto. Em suma: o
leitor da obra literária "recebe" o sentido
à medida que o compõe.
Essa idéia é ilustrada pela leitura da famosa e complicada novela de Henry James "The
Figure in the Carpet", que
Iser leva a cabo "em lugar
de uma introdução". Trata-se de um momento
particularmente curioso
do livro, quer porque
apresenta as grandes linhas do projeto teórico,
quer porque lhe revela os limites quando
mostra algumas consequências do fato
de a leitura não poder deixar de ser o
principal instrumento de uma teoria da
leitura. Iser lê a novela de James sublinhando o fracasso do narrador que procurou o segredo, concluindo que nela se
tematizam dois modos de ler, um que
procura extrair um sentido enquanto dado do texto dele separável, outro entendido como efeito que deve ser experimentado.
Mas, para tanto, Iser tem que dizer que
a personagem Corvick representa uma
posição perante a leitura oposta à do narrador que fracassa, o que é muitíssimo
discutível: Iser sustenta que o leitor só
pode começar a construir o sentido do
texto se rejeitar a perspectiva do narrador que lhe escamoteia a de Corvick, mas
justamente esse escamoteamento impede qualquer leitor de decidir com plena
segurança que a perspectiva de Corvick é
de fato oposta à do narrador. O repúdio
do modo de leitura que procura arrancar
à obra o seu segredo assenta afinal na suposição de que o próprio Iser descobriu
o segredo da novela de James. Mas é
muito difícil imaginar como poderia ser
de outro modo.
O Ato da Leitura (Vols. 1 e 2)
200 págs., R$ 26,00 cada
Wolfgang Iser
Tradução de Johannes
Kretshmer
Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP
01455-000, SP, tel. 0/xx/11/
816-6777).
Abel Barros Baptista é crítico e ensaísta, professor da
Universidade Nova de Lisboa e diretor-adjunto da revista portuguesa "Colóquio-Letras". É autor, entre outros, de "Em Nome do Apelo do Nome" (Litoral Edições, Lisboa) e "Autobibliografias" (Relógio d'Água),
sobre a obra de Machado de Assis.
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