São Paulo, Domingo, 16 de Janeiro de 2000


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Ponto de fuga

Quando os homens eram deuses

Jorge Coli
especial para a Folha

Na ponta da bota, onde a Itália dá um pontapé na Sicília, fica Reggio Calabria, cidade de uma feiúra triste. Os modernos, indiferentes ao azul absoluto do céu e do mar, aos sítios solares de Homero, amesquinharam tudo. Não é cidade que se visite. Nela, um museu parece ir se desagregando no esculacho: fichas amareladas, jogadas, aqui e ali, nas vitrinas cheias de poeira, ao lado de objetos dispostos de qualquer jeito. Como a frequentação é rara, talvez não valha mesmo a pena arrumar-se muito. Esse museu, porém, contém duas obras de beleza inigualável.
Duas estátuas, dois heróis em tamanho maior que o natural. São conhecidas como os "bronzes de Riace", nome da cidadezinha onde foram descobertas, em 1972, no fundo do mar. Restauradas, expostas em Florença e Roma, causaram sensação 20 anos atrás. De tão admiráveis, muitos logo sugeriram a autoria de Fídias. Originais gregos do período clássico, como esses, ainda mais em bronze, são raríssimos. Os mármores helenísticos ou romanos não possuem esse perfeito equilíbrio entre a observação mais humana dos detalhes anatômicos e o abstrato despojamento de um corpo que, nu, pulsando uma vida superior, acede à divindade. Depois do impacto inicial, instaladas num museu de província, essas estátuas se subtraíram, discretamente, aos olhos de um público mais vasto. Foram seus 15 minutos de fama. Teriam alterado a arte do Ocidente se descobertas durante o Renascimento.

Lenço - Nítidos e secos, os sons se espalham pela sala harmoniosa, de luxo discreto. O Teatro Massimo de Palermo, edifício dos fins do século passado, é referência mítica dentro da cultura siciliana. Ele caracteriza uma sociabilidade calorosa em volta da ópera. Seu interior expressivo serviu como cenário para as cenas da "Cavalleria Rusticana", presentes no terceiro "O Poderoso Chefão", de Coppola. Do lado de fora, impõe uma presença urbana notável, espécie de grande palácio austero, dominando uma praça em declive. É construído com um calcário em tom de ouro envelhecido, o mesmo empregado nos templos de Agrigento ou Selinunte, há 2.500 anos. Fechado para reformas durante duas décadas, reabriu não faz muito. A última ópera ali apresentada foi um "Otello", de Verdi, memorável, na esplêndida interpretação de José Cura. Ao lado dele, uma jovem Desdêmona, em começo de carreira. Ela se chama Norma Fantini e é capaz dos pianíssimos mais suaves, lembrando Magda Olivero. Obteve uma ovação como só é possível na Itália, com urros de "divina!", "sublime Norma!", "benedetta Fantini!". A ópera é a "gospel music" dos italianos.

Geometria - "Porque, severo e nu, desdenhas o supérfluo". Murilo Mendes comenta, em poesia elevada, o templo de Segesta. Parece simples: são frontões triangulares, são sustentações horizontais e verticais. Mas as construções deixadas pelos gregos da Sicília expandem, na paisagem magnífica, uma harmonia que não se explica. "Propício ao ritmo é o deus do número", diz ainda o poeta. Pitágoras não estava longe. Foi logo do outro lado do estreito de Messina que ele havia fundado sua escola.

Heroísmo - Ao longo da orla, sucedem-se refinarias de petróleo, auto-estradas retalhando montanhas e praias, subúrbios infames. Nos últimos 50 anos, os projetos modernos de desenvolvimento da Sicília, autoritários e brutais, tiveram incidência terrível sobre os meios físico e humano. Murilo Mendes percebeu a luta dos antigos templos contra a deterioração que os envolve hoje: "Sustentas a solidão, manténs o espaço/Que o homem bárbaro constrange/ Em torno de tuas colunas".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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