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Ponto de fuga
Quando os homens eram deuses
Jorge Coli
especial para a Folha
Na ponta da bota, onde a Itália dá
um pontapé na Sicília, fica Reggio
Calabria, cidade de uma feiúra triste.
Os modernos, indiferentes ao azul
absoluto do céu e do mar, aos sítios
solares de Homero, amesquinharam tudo. Não é cidade que se visite.
Nela, um museu parece ir se desagregando no esculacho: fichas amareladas, jogadas, aqui e ali, nas vitrinas cheias de poeira, ao lado de objetos dispostos de qualquer jeito. Como a frequentação é rara, talvez não
valha mesmo a pena arrumar-se
muito. Esse museu, porém, contém
duas obras de beleza inigualável.
Duas estátuas, dois heróis em tamanho maior que o natural. São conhecidas como os "bronzes de Riace", nome da cidadezinha onde foram descobertas, em 1972, no fundo
do mar. Restauradas, expostas em
Florença e Roma, causaram sensação 20 anos atrás. De tão admiráveis,
muitos logo sugeriram a autoria de
Fídias. Originais gregos do período
clássico, como esses, ainda mais em
bronze, são raríssimos. Os mármores helenísticos ou romanos não
possuem esse perfeito equilíbrio entre a observação mais humana dos
detalhes anatômicos e o abstrato
despojamento de um corpo que, nu,
pulsando uma vida superior, acede à
divindade. Depois do impacto inicial, instaladas num museu de província, essas estátuas se subtraíram,
discretamente, aos olhos de um público mais vasto. Foram seus 15 minutos de fama. Teriam alterado a arte do Ocidente se descobertas durante o Renascimento.
Lenço - Nítidos e secos, os sons se
espalham pela sala harmoniosa, de
luxo discreto. O Teatro Massimo de
Palermo, edifício dos fins do século
passado, é referência mítica dentro
da cultura siciliana. Ele caracteriza
uma sociabilidade calorosa em volta
da ópera. Seu interior expressivo
serviu como cenário para as cenas
da "Cavalleria Rusticana", presentes
no terceiro "O Poderoso Chefão", de
Coppola. Do lado de fora, impõe
uma presença urbana notável, espécie de grande palácio austero, dominando uma praça em declive. É
construído com um calcário em tom
de ouro envelhecido, o mesmo empregado nos templos de Agrigento
ou Selinunte, há 2.500 anos. Fechado
para reformas durante duas décadas, reabriu não faz muito. A última
ópera ali apresentada foi um "Otello", de Verdi, memorável, na esplêndida interpretação de José Cura.
Ao lado dele, uma jovem Desdêmona, em começo de carreira. Ela se
chama Norma Fantini e é capaz dos
pianíssimos mais suaves, lembrando Magda Olivero. Obteve uma ovação como só é possível na Itália, com
urros de "divina!", "sublime Norma!", "benedetta Fantini!". A ópera
é a "gospel music" dos italianos.
Geometria - "Porque, severo e nu,
desdenhas o supérfluo". Murilo
Mendes comenta, em poesia elevada, o templo de Segesta. Parece simples: são frontões triangulares, são
sustentações horizontais e verticais.
Mas as construções deixadas pelos
gregos da Sicília expandem, na paisagem magnífica, uma harmonia
que não se explica. "Propício ao ritmo é o deus do número", diz ainda o
poeta. Pitágoras não estava longe.
Foi logo do outro lado do estreito de
Messina que ele havia fundado sua
escola.
Heroísmo - Ao longo da orla, sucedem-se refinarias de petróleo, auto-estradas retalhando montanhas e
praias, subúrbios infames. Nos últimos 50 anos, os projetos modernos
de desenvolvimento da Sicília, autoritários e brutais, tiveram incidência
terrível sobre os meios físico e humano. Murilo Mendes percebeu a
luta dos antigos templos contra a deterioração que os envolve hoje:
"Sustentas a solidão, manténs o espaço/Que o homem bárbaro constrange/ Em torno de tuas colunas".
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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