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O professor Abel Barros Baptista, que organizou a edição portuguesa de ensaios de Antonio Candido, diz que ele é um dos grandes prosadores da língua e discute por que seu paradigma ainda é dominante na universidade brasileira
Formação continuada
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Mais importante crítico
literário brasileiro, Antonio Candido (1918) é
praticamente desconhecido em Portugal, apesar de ter
recebido em 1998 o Prêmio Camões.
Isso pode mudar um pouco, com o
lançamento neste mês da primeira
antologia de seus textos por lá, "O
Direto à Literatura e Outros Ensaios", que tem seleção e posfácio de
Abel Barros Baptista e traz peças
fundamentais, como "Dialética da
Malandragem", "Digressão Sentimental sobre Oswald de Andrade" e
"Inquietudes na Poesia de Drummond", além de um prefácio inédito
do próprio Candido.
Esse desconhecimento, argumenta Barros Baptista em seu texto ao final do volume, é de certa forma recíproco, pois o autor "tem escassa ou
até nenhuma relação crítica com a literatura e a cultura portuguesas". Ignorar Portugal, contudo, não foi, segundo o professor de literatura brasileira da Universidade Nova de Lisboa, uma mera circunstância, e sim
parte de um programa, estratégia de
um projeto que se confunde com o
projeto modernista do país e, ao
mesmo tempo, dá a ele um poderoso paradigma crítico, uma via de institucionalização universitária. O
desconhecimento seria um "resultado natural do processo de "formação" da literatura brasileira".
A discussão dessa relação às vezes
inexistente, às vezes tensa é o tema
principal do ensaio de Barros Baptista, "O Cânone como Formação".
É sobre as razões de seu texto e seus
possíveis efeitos que fala a seguir o
autor português.
Folha - Em seu posfácio, o sr. tenta
fazer uma análise do conjunto da produção crítica de Antonio Candido?
Abel Barros Baptista - Ressalvo que
naturalmente não me é possível resumir no espaço de uma resposta
uma argumentação demorada e, em
vários pontos, minuciosa. O objeto
do meu ensaio é o que chamo "teoria
da literatura brasileira de Antonio
Candido", e tento mostrar que corresponde ao "momento decisivo" da
"história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura brasileira",
ou seja, aquele que consuma a naturalização do processo brasileiro de
estipulação de um cânone literário
nacional. A literatura não foi componente acessória, mas essencial, da
definição da nacionalidade.
O cânone nacional é por isso uma
necessidade histórica inerente à
constituição da nação brasileira, a
necessidade de estipular um corpo
de obras para educação dos cidadãos e representação da nação. Trata-se de um processo que implica
projeto, estipulação, imposição, ou
seja, construção. O romantismo fundou o projeto, apoiado numa noção
naturalizadora -a literatura iria
inevitavelmente exprimir o Brasil-
e numa finalidade construtiva: a literatura deveria participar na construção do Brasil. A tensão entre essa
pressuposição e essa finalidade produziu impasses que se foram reiterando ao longo da história da literatura brasileira.
Mas nem por isso deixou de ser
também o legado de uma tradição
assente numa harmonia aparente: a
representação da realidade nacional
constitui o critério determinante de
inclusão na literatura brasileira, a
qual, por sua vez, ao mesmo tempo
se caracteriza pelo empenhamento
na construção da nação.
Dada a natureza da literatura moderna, que necessariamente excede
a determinação nacional, essa tradição é menos uma tradição separada
da portuguesa do que uma tradição
de separação da portuguesa. Ou, nos
termos que adoto no ensaio, a estipulação do cânone brasileiro está
desde sempre condenada ao fracasso, mas esse fracasso é paradoxalmente eficaz, porque tem sucesso
enquanto estipulação brasileira do
cânone literário.
Percebendo essa deslocação do
atributo "brasileiro" do cânone para
o processo de estipulação, percebe-se também a posição histórica da
teoria da "formação", isto é, o fato de
ser a que melhor dá conta dessa deslocação e simultaneamente a que
melhor contribui para a ocultar.
Desde logo ela se distingue pela perspectiva que, por um lado, permite a Antonio Candido deslocar a
questão do começo da literatura brasileira sem iludir o problema do desprendimento da portuguesa, enquanto, por outro, lhe permite afirmar que a literatura brasileira pertence às literaturas do Ocidente sem
também deixar de sublinhar nela a
condição particular, nacional e derivada. No primeiro ponto, a teoria da
"formação" faz depender a definição
da literatura brasileira não de uma
origem, mas de um estado final e
maduro de formação, definido pela
síntese do elemento local com o universal, do nacional com o europeu.
A teoria é teleológica, a teleologia
naturalizadora está inscrita na própria metáfora da "formação". Por
outro lado, Antonio Candido percebe que nunca seria possível fundar o
cânone nacional num critério de
grandeza literária, não porque a literatura brasileira seja menor, mas
porque nenhum cânone se constitui,
se estipula e impõe sem recurso a
um critério exterior ao literário; mas
vai fundá-lo na idéia do empenhamento na construção da nação, prolongando o projeto romântico e de
tal modo que, no limite, o estudo da
literatura brasileira se torna inerente
à condição de cidadão brasileiro.
Daí que a teoria de Candido preveja necessariamente a institucionalização. O movimento modernista e a
universidade são os dois principais
fatores a marcar a eficácia histórica
da teoria da literatura brasileira de
Antonio Candido, permitindo-lhe
sustentar um paradigma crítico, ou
seja, uma rede de pressupostos partilháveis, um programa de pesquisa,
uma promessa de sucesso nessa pesquisa, e um sentido, a um tempo crítico, cívico e político, para essa pesquisa. Isso certamente deixa muito
pouco espaço para teorias concorrentes e sobretudo para uma prática
crítica alternativa.
Folha - Conhecendo os protagonistas do universo acadêmico brasileiro
em literatura, o sr. acredita que um
ensaio como "O Cânone como Formação" só poderia ter sido escrito por
um estrangeiro?
Barros Baptista - Não diria que conheço os protagonistas do universo
acadêmico brasileiro; conheço decerto as tendências dominantes, que
sobrevivem aos protagonistas e aliás
se estendem além do universo acadêmico brasileiro. Isso explica, por
um lado, que não me ocorra nenhum brasilianista estrangeiro que
subscrevesse, pelo menos no essencial, as análises que levo a cabo nesse
ensaio. A razão parece-me evidente:
o paradigma crítico assente na teoria
e no trabalho de Antonio Candido
persiste dominante na interpretação
da literatura brasileira dentro e fora
do Brasil. Até sobretudo para um estrangeiro o trabalho de Candido é
mais do que a melhor porta de entrada na literatura brasileira: articulando uma teoria da literatura brasileira com a leitura das suas obras decisivas, constitui todo um programa
de "formação" do brasilianista.
De resto, sei disso por experiência
pessoal: a minha aprendizagem da
literatura brasileira fez-se em boa
parte em diálogo com os estudos de
Antonio Candido.
Por outro lado, conheço vários
acadêmicos brasileiros que partilham as minhas análises e poderiam
ter escrito um ensaio como este.
Nem é necessário, portanto, ser estrangeiro, nem chega ser estrangeiro: mas é preciso estar colocado no
exterior do paradigma crítico assente na teoria e no trabalho de Antonio Candido para se poder analisar-lhe os fundamentos e o vocabulário,
descrever a sua posição histórica,
delimitar os problemas a que respondeu e avaliar a eficácia e os limites da resposta construída.
Tudo isso pretendo fazer no meu
ensaio, examinando passagens estratégicas de alguns textos de Candido. Por exemplo, o termo "formação": que função tem na teoria de
Candido? O que vem a ser, afinal,
um processo de "formação" aplicado a uma literatura nacional? A reiteração persistente do termo fez esquecer que se trata de fato de uma
metáfora, aliás com forte peso na
tradição ocidental: por que essa e
não outra?
Essas perguntas, que não podem
ser feitas no interior do paradigma
candidiano, permitem perceber o
que, creio, os opositores de Candido
nunca perceberam, o caráter teleológico da sua teoria da literatura
brasileira. No essencial, é esse o tópico do meu ensaio.
É possível, entretanto, que a sua
pergunta tenha um outro sentido
implicado: que apenas um estrangeiro conseguiria escapar à reverência ou à unanimidade em torno da
figura e da obra de Antonio Candido. Custa-me aceitar que assim seja,
mas não tenho noção precisa do que
possa ser, no próprio terreno acadêmico brasileiro, essa reverência ou
de quais sejam os seus efeitos.
Folha - O seu artigo busca mostrar
como o trabalho de Antonio Candido
é fundamental na consolidação do
projeto modernista e, ao mesmo tempo, como determinadas contradições
e "feridas" surgem ao longo desse
processo. O sr. não estaria de certa
forma adotando o mesmo instrumental crítico que provoca tais contradições e "feridas"?
Barros Baptista - Não sei se entendo bem o sentido da pergunta: quererá sugerir que me oponho a um
nacionalismo brasileiro a partir de
um nacionalismo português? Se é isso, tenho que responder com veemente negativa. Devo confessar que
não tenho com a literatura portuguesa nenhum laço que me faça orgulhar dela ou me sentir obrigado a
defendê-la. Na célebre imagem de
Candido, que a diz "arbusto secundário no jardim das musas", o que
repudio não é o qualificativo "secundário", mas a metáfora do arbusto,
que contém pressuposições para
mim inaceitáveis.
Acresce o ponto essencial: o que
chama progressiva "exclusão" de
Portugal da literatura brasileira não
é um fenômeno exclusivamente brasileiro que os portugueses lamentam
ou devessem lamentar. Trata-se de
um fenômeno luso-brasileiro, no
campo literário provavelmente o
mais forte traço de união das duas literaturas. Abordei esse problema
noutro ensaio, tentando mostrar
que a separação da literatura brasileira da portuguesa foi um projeto
também da portuguesa e que esta,
no processo histórico do romantismo, precisou ser excluída, digamos
assim, para se defender das consequências da emergência da literatura brasileira. E precisou também excluir a literatura brasileira.
No caso do meu ensaio sobre Candido, o ponto de partida deve alguma coisa às circunstâncias: no posfácio de um livro de um dos maiores
ensaístas de língua portuguesa, ademais Prêmio Camões, eu precisava
explicar por que a produção dele é
escassíssima na matéria portuguesa
(o último livro de Candido, publicado já depois de pronto o livro dele
aqui, inclui quatro ensaios de matéria portuguesa ["O Albatroz e o Chinês", editora Ouro sobre Azul]).
Mas essa explicação, por outro lado, interessava-me não por complacência com eventuais preconceitos
nacionalistas do leitor português,
mas para situar o trabalho de Candido na sua época e apresentar o problema literário a que ele responde: a
constituição de uma tradição literária brasileira, una e contínua.
A "progressiva "exclusão" de Portugal da literatura brasileira" corresponde à progressiva constituição
dessa tradição. Seria impossível analisar a teoria da "formação" sem
considerar o problema da literatura
portuguesa: como seria impossível
avaliar a contribuição do modernismo para a constituição dessa tradição literária una e contínua sem ter
em conta, e decisivamente, o problema português.
Que é fácil cair em reações nacionalistas, sem dúvida; que há em Portugal a tendência a ressentir o caminho literário brasileiro, supondo-o
uma perda ou falta de respeito pela
tradição lusitana, também é verdade: mas isso é muito diverso do que
faço, pois pretendo tão-só descrever
a emergência de um problema e a
forma histórica de o encarar. Digamos que o meu interesse pela literatura brasileira, que me leva ao interesse de debater as teorias dela, nasce de uma pergunta, para a qual não
há resposta única nem estável: o que
significa pertencer à mesma língua?
Folha - Qual será, o sr. imagina, a repercussão do livro de Antonio Candido e de seu posfácio no mundo universitário e na imprensa de Portugal?
Barros Baptista - Francamente,
acho que não vai haver repercussão
nenhuma. Em parte porque são raros os livros e autores brasileiros que
aqui conseguem provocar alguma
reação: o último deve ter sido Jorge
Amado. Mas sobretudo porque o
mundo universitário português permanece abúlico, como sempre deve
ter sido, enquanto a imprensa apenas se interessa por livros que vendam muito, agora esoterismo de algibeira e livros ligados de alguma
maneira à televisão. A esfera pública
portuguesa não existe propriamente, resume-se a um simulacro povoado por colunistas medíocres.
Não creio, por isso, que haja algum
interesse significativo no debate dos
problemas que a simples publicação
deste livro envolve. Terá decerto boa
repercussão entre os professores de
literatura brasileira, mas são muito
poucos (menos de uma dezena...). E,
quem sabe, alguma entre as poucas
pessoas que aqui se interessam pelos
problemas teóricos da literatura. Pode bem ser que, numa perspectiva
otimista, a movimentação de poucas
pessoas em volta deste livro não signifique necessariamente menor
qualidade de repercussão.
Adriano Schwartz é doutor em teoria literária pela USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em "O Ano da Morte de Ricardo Reis'"
(editora Globo).
O Direito à Literatura
e Outros Ensaios
288 págs., preço não definido,
org Abel Barros Baptista, ed.
Angelus Novus. Portugal.
Literatur und Geselschaft
[Literatura e Sociedade]
25o págs., preço não definido,
org. de Ligia Chiappini, trad.
de Marcel Vejmelka. Ed. Vervuert. Alemanha.
Onde encomendar
Livros portugueses podem ser
encomendados na livraria Cultura (tel. 0/xx/11/ 3170-4033) e,
em alemão, na livraria Bücherstube (tel. 0/ xx/11/ 5044-3735),
ambas em São Paulo.
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