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Produções centrais da literatura da Antigüidade, o poema épico latino "Eneida", de Virgílio, e a tragédia grega "Orestéia", de Ésquilo, usam o mito para debater dilemas sociais e políticos
O regresso dos heróis
JOSÉ MARCOS MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A "Eneida", de Virgílio, é um
poema épico que conta o
passado -um passado remoto, o mundo dos heróis
de Homero- a fim de falar do presente e futuro da Roma de Augusto,
contemporânea do poeta. A "Orestéia", de Ésquilo, é uma trilogia trágica que usa o mundo lendário dos
heróis como microcosmo para examinar as instituições sociais e políticas da Atenas de meados do século
5º a.C., contemporânea do poeta.
Pouco ou nada há em comum entre o principado de Augusto e a democracia ateniense, a não ser talvez
o florescimento incomum da atividade artística e literária. Mas a opção
de Virgílio por um tema lendário, e
não-histórico, para seu épico lhe
oferece a distância e o espaço de reflexão que faltariam ao relato de
eventos contemporâneos -a mesma distância que, mais de quatro séculos antes, se abria a Ésquilo para
dramatizar o presente por meio do
passado. Ambos ganham assim em
perspectiva, criam palcos paralelos
para tratar dos dilemas de seus dias e
ao mesmo tempo lhes conferir um
valor e sentido que não se limitam a
nenhuma situação histórica.
No destino de Enéias, Virgílio faz
com que seu público veja na passagem da Tróia em ruínas para a terra
prometida da Itália um reflexo da
transição entre o caos da República
para a glória duradoura do que mais
tarde foi chamado de Império Romano. Nesse intervalo que separa
Enéias de Augusto, o poeta é capaz
de emprestar um significado cósmico às vitórias recentes do imperador,
assim como Ésquilo imprime uma
chancela divina ao tribunal do areópago, que resolve os conflitos de
sangue da casa dos Atridas no final
das "Eumênides", última peça da trilogia que inicia com "Agamêmnon"
e segue com as "Coéforas".
Futuro generoso
Se passado e presente se unem nas
obras de Ésquilo e Virgílio, o futuro,
este, foi generoso com os dois. A
"Orestéia" e a "Eneida" têm uma
história de mais de 2.000 anos de crítica e interpretação, para a qual não
contribuíram pouco as traduções,
de que saem agora duas edições em
português.
A da "Orestéia" é uma edição bilíngüe acompanhada, antes de cada
tragédia, de um estudo introdutório
do tradutor, Jaa Torrano [leia entrevista abaixo]; quanto à "Eneida",
não se trata na verdade de uma tradução nova -quem a assina é um
latinista português do século 19, José
Victorino Barreto Feio, que morreu
antes de terminá-la: seu amigo José
Maria da Costa e Silva encarregou-se
de levá-la a cabo e publicá-la.
A tradução dos portugueses está
impregnada de espírito camoniano,
seja no léxico, seja nas construções
gramaticais. Buscam dar feição nobilitante à linguagem com palavras
decalcadas do latim; procuram evitar a ordem rígida do português,
imitando a liberdade de colocação
dos diferentes casos permitida pelas
línguas clássicas.
Se dois substantivos unidos por
uma conjunção aditiva formam um
conjunto inseparável, Barreto Feio
não hesita em separá-los ao modo
camoniano: "O filho mata e o pai
junto aos altares" ou seja, "[Pirro]
mata o filho e o pai junto aos altares". Nos "Lusíadas": "Ramos não
conhecidos e ervas tinha" (4, 72).
Desmembrar conjuntos, procedimento freqüente em Camões, é método bastante imitado pelos tradutores: "Então Cassandra os fados/ Inda
anunciou futuros" ou seja, "Cassandra inda anunciou os fados futuros".
Camões: "Casos que Adamastor
contou futuros". Num e noutro
exemplo, o destaque dado ao adjetivo pretende resgatar o valor que "futuros" tem em latim como forma
verbal: fados ou casos que "haviam
de acontecer". Último exemplo de
alteração da ordem gramatical:
"Tem compaixão d'um triste, que
sofrendo/ Perseguições está não merecidas!". Nesse tipo de construção,
o verbo auxiliar ("está") nunca pode
ser separado do principal ("sofrendo"). Mas a inversão intensifica a expressão de desamparo, como em
Camões: "C'o pequeno poder oferecido/ Ao duro golpe está da maura
espada" (3, 104).
No geral, porém, o texto é fluente e
menos truncado que a versão de
Odorico Mendes. Fora um ou outro
verso que talvez soe um pouco estranho a ouvidos brasileiros, são vertidas em decassílabos conscienciosos
as desventuras de Enéias, um herói
marcado pelo destino a levar a termo a árdua e penosa tarefa de fundar o povo romano ("tantae molis
erat Romanam condere gentem"; na
tradução de Barreto Feio: "De tanta
mole era fundar o povo dos Romanos!"). Exilado de Tróia em chamas,
o herói parte para fundar a primeira
cidade troiana em solo italiano e enfrenta desafios que põem à prova
sua piedade.
Embora o poema celebre os feitos
do herói nacional, sua história é uma
seqüência de perdas. Forçado a
abandonar sua cidade natal, perde a
mulher, perde o pai, a contragosto é
instigado a abandonar Dido, a mulher que o ama. É um herói entre
dois mundos, entre a certeza de um
passado catastrófico e a insegurança
de um futuro de promessas. Os oráculos que pontuam a narrativa a intervalos regulares dão forças a ele,
herói pio, para seguir no caminho
traçado pelos deuses, mas a cada
passo encobrem a morte de um ente
querido. Chegando à Itália, vê-se impelido a mover guerra contra o povo
com o qual se unirá em aliança para
criar no futuro a grande Roma; vê-se
obrigado a matar Turno, herói nativo cujo viço representa a Itália intocada por estrangeiros.
A melhor imagem de Enéias talvez
seja a que encerra o livro oitavo,
quando Vênus, sua mãe, lhe traz o
escudo confeccionado por Vulcano.
Nele estão lavrados adornos com cenas da história romana, de Rômulo à
batalha de Ácio, na qual Augusto
(então Otaviano) venceu Marco Antônio e Cleópatra. Enéias contempla
a obra estupefato; tem no máximo
um vislumbre do futuro; os fatos lhe
são desconhecidos; seu gesto, "levando aos ombros os destinos e a fama de seus netos", é um resumo de
sua carreira heróica.
Tantas perdas num poema tido
como panegírico ao principado de
Augusto levou alguns críticos a supor que, por trás do Virgílio propagandista imperial, havia um Virgílio
crítico do regime. Melhor talvez seja
dizer que o poeta, numa obra cuja
essência é o louvor às conquistas, inclui as sombras do caminho áspero
que conduziram até elas.
Sombras, aliás, é a última palavra
da "Eneida", última obra do autor,
de quem a primeira delas, as "Éclogas", iniciam com Títiro recostado
tranqüilamente à sombra de uma
faia (a correlação talvez não seja fortuita: Virgílio traçou com sistematicidade sua carreira poética). Se as
sombras abrem e fecham a primeira
e a última obra de Virgílio, na "Orestéia" são os archotes com seu clarão
que iniciam e concluem a trilogia.
São eles que anunciam o regresso do
rei Agamêmnon -um regresso fatídico- e são eles que conduzem as
Erínias, divindades infernais, a seu
posto de honra na cidade de Atenas,
transformadas agora em entidades
benéficas.
O movimento alternado de luz e
trevas estende-se por toda a trilogia
e, juntamente com outras imagens
marcantes (a púrpura do sangue e
das vestes, a rede com que Agamêmnon vence Tróia e por sua vez é vencido, o tema do sacrifício corrompido, o jargão de litígio judicial etc.),
compõe um esquema de referências
cruzadas que faz o sentido trágico
das peças ganhar corpo.
Lágrima da morte
Um único exemplo, prova de que
todos os detalhes importam: ao relatar o sacrifício de Ifigênia em Áulis
perpetrado pelo pai Agamêmnon, o
coro descreve a imagem da filha que,
como numa pintura, é levada ao altar como se fosse uma cabra. Amordaçada, Ifigênia deixa cair no chão
suas "vestes açafroadas" ("krókou
baphás"). Cerca de 900 versos mais
tarde, na cena magnífica (uma das
maiores de toda tragédia grega) em
que Cassandra dialoga com o coro
antes de partir para a própria morte,
de que ela, uma adivinha, tem plena
consciência, o coro pressente a desgraça iminente nas palavras da cativa e faz notar que lhe correu ao coração uma gota "açafroada" ("krokobaphês") -"pálida" na tradução de
Jaa Torrano- que coincide com os
raios do ocaso da vida. Nesse único
pormenor deposita-se todo o peso
do destino que habita a casa dos
Atridas.
Num detalhe de forte apelo visual,
unem-se o sacrifício de Ifigênia e a
morte iminente de Agamêmnon e
Cassandra, e são prefiguradas as demais mortes de Egisto e Clitemnestra pela mão do filho Orestes, numa
seqüência de retaliações -todas
elas a princípio justas- que parece
não ter fim. Junto com a justiça faz-se violência, e perpetua-se o mal no
processo de sua punição.
Somente com a absolvição final de
Orestes pelo tribunal ateniense dissipam-se as sombras sob a luz dos archotes e funda-se a lei para crimes de
sangue -base de toda lei e ordem,
aquelas mesmas sombras que Virgílio decidiu projetar na conclusão de
sua "Eneida".
José Marcos Macedo é tradutor.
Eneida
466 págs., R$ 48,50
de Virgílio. Trad. José Victorino Barreto Feio
e José Maria da Costa e Silva. Ed. Martins
Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330, CEP
01325-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3241-3677).
Orestéia
530 págs., R$ 80,00 (a caixa)
de Ésquilo. Trad. Jaa Torrano. Ed. Fapesp/Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, CEP 01426-001, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/ 3068-9433).
Meditações
142 págs., R$ 22,90
de Marco Aurélio. Trad. Caroline Kazue Furukawa. Ed. Madras (r. Paulo
Gonçalves, 88, CEP 02403-020, São
Paulo, SP, tel 0/xx/11/6959-1127).
Reunião dos pensamentos do "imperador-filósofo" (121-180), que se
inspira no estoicismo (na busca pelo
equilíbrio) em reflexões sobre a vida,
a sociedade, entre outros temas.
Dionisismo, Poder e Sociedade
294 págs., R$ 38,00
de José Antonio Dabdab Trabulsi.
Ed. UFMG (av. Antônio Carlos, 6.627,
campus Pampulha, CEP 31270-901,
Belo Horizonte, MG, tel.0/xx/31/
3499-4650).
O historiador analisa o culto a Dioniso, deus do vinho, como fenômeno
humano e político, estudando suas
origens e conflitos de interesses.
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