São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 2005

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Produções centrais da literatura da Antigüidade, o poema épico latino "Eneida", de Virgílio, e a tragédia grega "Orestéia", de Ésquilo, usam o mito para debater dilemas sociais e políticos

O regresso dos heróis

JOSÉ MARCOS MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A "Eneida", de Virgílio, é um poema épico que conta o passado -um passado remoto, o mundo dos heróis de Homero- a fim de falar do presente e futuro da Roma de Augusto, contemporânea do poeta. A "Orestéia", de Ésquilo, é uma trilogia trágica que usa o mundo lendário dos heróis como microcosmo para examinar as instituições sociais e políticas da Atenas de meados do século 5º a.C., contemporânea do poeta.
Pouco ou nada há em comum entre o principado de Augusto e a democracia ateniense, a não ser talvez o florescimento incomum da atividade artística e literária. Mas a opção de Virgílio por um tema lendário, e não-histórico, para seu épico lhe oferece a distância e o espaço de reflexão que faltariam ao relato de eventos contemporâneos -a mesma distância que, mais de quatro séculos antes, se abria a Ésquilo para dramatizar o presente por meio do passado. Ambos ganham assim em perspectiva, criam palcos paralelos para tratar dos dilemas de seus dias e ao mesmo tempo lhes conferir um valor e sentido que não se limitam a nenhuma situação histórica.
No destino de Enéias, Virgílio faz com que seu público veja na passagem da Tróia em ruínas para a terra prometida da Itália um reflexo da transição entre o caos da República para a glória duradoura do que mais tarde foi chamado de Império Romano. Nesse intervalo que separa Enéias de Augusto, o poeta é capaz de emprestar um significado cósmico às vitórias recentes do imperador, assim como Ésquilo imprime uma chancela divina ao tribunal do areópago, que resolve os conflitos de sangue da casa dos Atridas no final das "Eumênides", última peça da trilogia que inicia com "Agamêmnon" e segue com as "Coéforas".

Futuro generoso
Se passado e presente se unem nas obras de Ésquilo e Virgílio, o futuro, este, foi generoso com os dois. A "Orestéia" e a "Eneida" têm uma história de mais de 2.000 anos de crítica e interpretação, para a qual não contribuíram pouco as traduções, de que saem agora duas edições em português.
A da "Orestéia" é uma edição bilíngüe acompanhada, antes de cada tragédia, de um estudo introdutório do tradutor, Jaa Torrano [leia entrevista abaixo]; quanto à "Eneida", não se trata na verdade de uma tradução nova -quem a assina é um latinista português do século 19, José Victorino Barreto Feio, que morreu antes de terminá-la: seu amigo José Maria da Costa e Silva encarregou-se de levá-la a cabo e publicá-la.
A tradução dos portugueses está impregnada de espírito camoniano, seja no léxico, seja nas construções gramaticais. Buscam dar feição nobilitante à linguagem com palavras decalcadas do latim; procuram evitar a ordem rígida do português, imitando a liberdade de colocação dos diferentes casos permitida pelas línguas clássicas.
Se dois substantivos unidos por uma conjunção aditiva formam um conjunto inseparável, Barreto Feio não hesita em separá-los ao modo camoniano: "O filho mata e o pai junto aos altares" ou seja, "[Pirro] mata o filho e o pai junto aos altares". Nos "Lusíadas": "Ramos não conhecidos e ervas tinha" (4, 72).
Desmembrar conjuntos, procedimento freqüente em Camões, é método bastante imitado pelos tradutores: "Então Cassandra os fados/ Inda anunciou futuros" ou seja, "Cassandra inda anunciou os fados futuros". Camões: "Casos que Adamastor contou futuros". Num e noutro exemplo, o destaque dado ao adjetivo pretende resgatar o valor que "futuros" tem em latim como forma verbal: fados ou casos que "haviam de acontecer". Último exemplo de alteração da ordem gramatical: "Tem compaixão d'um triste, que sofrendo/ Perseguições está não merecidas!". Nesse tipo de construção, o verbo auxiliar ("está") nunca pode ser separado do principal ("sofrendo"). Mas a inversão intensifica a expressão de desamparo, como em Camões: "C'o pequeno poder oferecido/ Ao duro golpe está da maura espada" (3, 104).
No geral, porém, o texto é fluente e menos truncado que a versão de Odorico Mendes. Fora um ou outro verso que talvez soe um pouco estranho a ouvidos brasileiros, são vertidas em decassílabos conscienciosos as desventuras de Enéias, um herói marcado pelo destino a levar a termo a árdua e penosa tarefa de fundar o povo romano ("tantae molis erat Romanam condere gentem"; na tradução de Barreto Feio: "De tanta mole era fundar o povo dos Romanos!"). Exilado de Tróia em chamas, o herói parte para fundar a primeira cidade troiana em solo italiano e enfrenta desafios que põem à prova sua piedade.
Embora o poema celebre os feitos do herói nacional, sua história é uma seqüência de perdas. Forçado a abandonar sua cidade natal, perde a mulher, perde o pai, a contragosto é instigado a abandonar Dido, a mulher que o ama. É um herói entre dois mundos, entre a certeza de um passado catastrófico e a insegurança de um futuro de promessas. Os oráculos que pontuam a narrativa a intervalos regulares dão forças a ele, herói pio, para seguir no caminho traçado pelos deuses, mas a cada passo encobrem a morte de um ente querido. Chegando à Itália, vê-se impelido a mover guerra contra o povo com o qual se unirá em aliança para criar no futuro a grande Roma; vê-se obrigado a matar Turno, herói nativo cujo viço representa a Itália intocada por estrangeiros.
A melhor imagem de Enéias talvez seja a que encerra o livro oitavo, quando Vênus, sua mãe, lhe traz o escudo confeccionado por Vulcano. Nele estão lavrados adornos com cenas da história romana, de Rômulo à batalha de Ácio, na qual Augusto (então Otaviano) venceu Marco Antônio e Cleópatra. Enéias contempla a obra estupefato; tem no máximo um vislumbre do futuro; os fatos lhe são desconhecidos; seu gesto, "levando aos ombros os destinos e a fama de seus netos", é um resumo de sua carreira heróica.
Tantas perdas num poema tido como panegírico ao principado de Augusto levou alguns críticos a supor que, por trás do Virgílio propagandista imperial, havia um Virgílio crítico do regime. Melhor talvez seja dizer que o poeta, numa obra cuja essência é o louvor às conquistas, inclui as sombras do caminho áspero que conduziram até elas.
Sombras, aliás, é a última palavra da "Eneida", última obra do autor, de quem a primeira delas, as "Éclogas", iniciam com Títiro recostado tranqüilamente à sombra de uma faia (a correlação talvez não seja fortuita: Virgílio traçou com sistematicidade sua carreira poética). Se as sombras abrem e fecham a primeira e a última obra de Virgílio, na "Orestéia" são os archotes com seu clarão que iniciam e concluem a trilogia. São eles que anunciam o regresso do rei Agamêmnon -um regresso fatídico- e são eles que conduzem as Erínias, divindades infernais, a seu posto de honra na cidade de Atenas, transformadas agora em entidades benéficas.
O movimento alternado de luz e trevas estende-se por toda a trilogia e, juntamente com outras imagens marcantes (a púrpura do sangue e das vestes, a rede com que Agamêmnon vence Tróia e por sua vez é vencido, o tema do sacrifício corrompido, o jargão de litígio judicial etc.), compõe um esquema de referências cruzadas que faz o sentido trágico das peças ganhar corpo.

Lágrima da morte
Um único exemplo, prova de que todos os detalhes importam: ao relatar o sacrifício de Ifigênia em Áulis perpetrado pelo pai Agamêmnon, o coro descreve a imagem da filha que, como numa pintura, é levada ao altar como se fosse uma cabra. Amordaçada, Ifigênia deixa cair no chão suas "vestes açafroadas" ("krókou baphás"). Cerca de 900 versos mais tarde, na cena magnífica (uma das maiores de toda tragédia grega) em que Cassandra dialoga com o coro antes de partir para a própria morte, de que ela, uma adivinha, tem plena consciência, o coro pressente a desgraça iminente nas palavras da cativa e faz notar que lhe correu ao coração uma gota "açafroada" ("krokobaphês") -"pálida" na tradução de Jaa Torrano- que coincide com os raios do ocaso da vida. Nesse único pormenor deposita-se todo o peso do destino que habita a casa dos Atridas.
Num detalhe de forte apelo visual, unem-se o sacrifício de Ifigênia e a morte iminente de Agamêmnon e Cassandra, e são prefiguradas as demais mortes de Egisto e Clitemnestra pela mão do filho Orestes, numa seqüência de retaliações -todas elas a princípio justas- que parece não ter fim. Junto com a justiça faz-se violência, e perpetua-se o mal no processo de sua punição.
Somente com a absolvição final de Orestes pelo tribunal ateniense dissipam-se as sombras sob a luz dos archotes e funda-se a lei para crimes de sangue -base de toda lei e ordem, aquelas mesmas sombras que Virgílio decidiu projetar na conclusão de sua "Eneida".


José Marcos Macedo é tradutor.

Eneida
466 págs., R$ 48,50 de Virgílio. Trad. José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330, CEP 01325-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3241-3677).

Orestéia
530 págs., R$ 80,00 (a caixa) de Ésquilo. Trad. Jaa Torrano. Ed. Fapesp/Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, CEP 01426-001, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/ 3068-9433).

Meditações
142 págs., R$ 22,90 de Marco Aurélio. Trad. Caroline Kazue Furukawa. Ed. Madras (r. Paulo Gonçalves, 88, CEP 02403-020, São Paulo, SP, tel 0/xx/11/6959-1127).
Reunião dos pensamentos do "imperador-filósofo" (121-180), que se inspira no estoicismo (na busca pelo equilíbrio) em reflexões sobre a vida, a sociedade, entre outros temas.

Dionisismo, Poder e Sociedade
294 págs., R$ 38,00 de José Antonio Dabdab Trabulsi. Ed. UFMG (av. Antônio Carlos, 6.627, campus Pampulha, CEP 31270-901, Belo Horizonte, MG, tel.0/xx/31/ 3499-4650).

O historiador analisa o culto a Dioniso, deus do vinho, como fenômeno humano e político, estudando suas origens e conflitos de interesses.


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