São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 2005

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"Dialética trágica marca obra de Ésquilo"

CAIO LIUDVIK
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Uma das mais famosas lendas da Grécia Antiga, envolvendo personagens como o rei Agamêmnon, chefe grego na campanha contra Tróia, e seus filhos Orestes e Electra. Em foco, o adultério da rainha Clitemnestra, a vingança matricida de Orestes e a possibilidade de uma justiça humana. Tudo isso contado com a força poética do "pai da tragédia", Ésquilo (525-455 a.C.). Eis alguns dos atrativos da "Orestéia" -trilogia composta por "Agamêmnon", "Coéforas" e "Eumênides"- que ganha nova tradução, direta do original, por Jaa Torrano, professor de língua e literatura gregas na USP, que fala abaixo sobre seu trabalho.

 

Folha - Quanto tempo lhe tomou essa tradução?
Jaa Torrano -
Uns 20 anos, porque, quando defendi o doutorado, em 1987, já trabalhava nessa tradução. Depois continuei e a entreguei, como tese de livre-docência, em 2000.

Folha - O sr. tem uma afinidade maior com Ésquilo do que, por exemplo, com os outros dois grandes trágicos gregos, Sófocles e Eurípides?
Torrano -
Ésquilo me toca especialmente porque trabalha com categorias do pensamento mítico, que é aquilo com que trabalho. Mesmo estudando Platão, sinto interesse à medida que Platão é um herdeiro e intérprete do pensamento mítico. Existe uma estrutura comum entre a filosofia de Platão e o pensamento mítico. Platão elaborou a última filosofia criativamente mítica, ele trabalha com imagens, distingue o grau de verdade próprio da imagem.

Folha - O que o sr. entende por mito?
Torrano -
Para mim, o mito é uma forma de linguagem. Quando uso a palavras mito, estou me referindo ao mito grego, e estou pensando na concepção grega arcaica de linguagem, como uma forma divina do mundo, que é pensada com as imagens e a representação das musas. A linguagem interpela o homem através das aparências do mundo. Essa concepção de linguagem, e a atitude do homem determinada por essa concepção, é o que chamo de pensamento mítico.

Folha - Qual é a visão de mundo presente na obra de Ésquilo?
Torrano -
Trata-se da idéia da dialética trágica. Dialética porque reconhece que há graus diversos de participação no ser, na verdade e no conhecimento. São diversos pontos de vista, o dos deuses, numes (os deuses tais como se revelam no destino particular de alguém), heróis e homens, que se confundem e se distinguem, como em Platão. Essa dialética, de diferentes modos, perpassa todo o pensamento religioso grego, de Homero ao neoplatonismo.

Folha - Qual é a "teoria" política implícita no texto de Ésquilo?
Torrano -
Na minha leitura da tragédia de Ésquilo, o coro -independentemente da personalidade coletiva que ele tem e que determina a indumentária, a máscara etc.- é representante da comunidade política, porta-voz dos ideais da pólis. Tanto o coro dos anciãos, em "Agamêmnon", como o das coéforas ["portadoras de libações funerárias"], como o das Erínies, nas "Eumênides", são porta-vozes de ideais da pólis, elaboram como uma teoria política, calcada, no caso das Erínies, do temor que inspiram as instituições da pólis.

Folha - O que o leitor de hoje pode aprender com a "Orestéia", que o senhor designa como paradigma da tragédia grega?
Torrano -
Penso que a identificação pura e simples é o caminho do equívoco. A atualidade de Ésquilo é que ele é referência de um passado longínquo, e o futuro, como já disse o filósofo, se abre para nós a partir do passado. Trata-se, sem dúvida, de uma referência de algo que ultrapassa as limitações do presente, a penúria do presente, a imersão no imediatismo do presente com o que isso tem de cegueira e obtusidade.
Essa consciência histórica -ter uma referência longínqua e externa- é um alongamento da perspectiva, um exercício da acuidade do olhar, algo que nos mostra o outro e que permite, por contraste, revelar a nossa própria identidade e examinar o futuro, vendo-nos a nós mesmos com um olhar crítico.
Os jovens que têm cultura clássica estão menos sujeitos a se deixarem escravizar por seitas limitadoras, por religiões aprisionadoras. Eles têm uma liberdade espiritual trazida pela consciência de que a cultura tem sua história, seu desenvolvimento, sua diversidade. Há outros parâmetros com que o presente pode ser confrontado, examinado, perscrutado, investigado. O valor atemporal [desta obra] está ligada a seu valor histórico e, se já não tivesse valor histórico, não teria mais valor nenhum.

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