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"Dialética trágica marca obra de Ésquilo"
CAIO LIUDVIK
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Uma das mais famosas lendas da Grécia Antiga, envolvendo personagens como o rei Agamêmnon,
chefe grego na campanha contra
Tróia, e seus filhos Orestes e Electra.
Em foco, o adultério da rainha Clitemnestra, a vingança matricida de
Orestes e a possibilidade de uma justiça humana. Tudo isso contado
com a força poética do "pai da tragédia", Ésquilo (525-455 a.C.). Eis alguns dos atrativos da "Orestéia"
-trilogia composta por "Agamêmnon", "Coéforas" e "Eumênides"-
que ganha nova tradução, direta do
original, por Jaa Torrano, professor
de língua e literatura gregas na USP,
que fala abaixo sobre seu trabalho.
Folha - Quanto tempo lhe tomou essa tradução?
Jaa Torrano - Uns 20 anos, porque,
quando defendi o doutorado, em
1987, já trabalhava nessa tradução.
Depois continuei e a entreguei, como tese de livre-docência, em 2000.
Folha - O sr. tem uma afinidade
maior com Ésquilo do que, por exemplo, com os outros dois grandes trágicos gregos, Sófocles e Eurípides?
Torrano - Ésquilo me toca especialmente porque trabalha com categorias do pensamento mítico, que
é aquilo com que trabalho. Mesmo
estudando Platão, sinto interesse à
medida que Platão é um herdeiro e
intérprete do pensamento mítico.
Existe uma estrutura comum entre a
filosofia de Platão e o pensamento
mítico. Platão elaborou a última filosofia criativamente mítica, ele trabalha com imagens, distingue o grau
de verdade próprio da imagem.
Folha - O que o sr. entende por mito?
Torrano - Para mim, o mito é uma
forma de linguagem. Quando uso a
palavras mito, estou me referindo ao
mito grego, e estou pensando na
concepção grega arcaica de linguagem, como uma forma divina do
mundo, que é pensada com as imagens e a representação das musas. A
linguagem interpela o homem através das aparências do mundo. Essa
concepção de linguagem, e a atitude
do homem determinada por essa
concepção, é o que chamo de pensamento mítico.
Folha - Qual é a visão de mundo presente na obra de Ésquilo?
Torrano - Trata-se da idéia da dialética trágica. Dialética porque reconhece que há graus diversos de participação no ser, na verdade e no conhecimento. São diversos pontos de
vista, o dos deuses, numes (os deuses tais como se revelam no destino
particular de alguém), heróis e homens, que se confundem e se distinguem, como em Platão. Essa dialética, de diferentes modos, perpassa
todo o pensamento religioso grego,
de Homero ao neoplatonismo.
Folha - Qual é a "teoria" política implícita no texto de Ésquilo?
Torrano - Na minha leitura da tragédia de Ésquilo, o coro -independentemente da personalidade coletiva que ele tem e que determina a indumentária, a máscara etc.- é representante da comunidade política,
porta-voz dos ideais da pólis. Tanto
o coro dos anciãos, em "Agamêmnon", como o das coéforas ["portadoras de libações funerárias"], como
o das Erínies, nas "Eumênides", são
porta-vozes de ideais da pólis, elaboram como uma teoria política, calcada, no caso das Erínies, do temor
que inspiram as instituições da pólis.
Folha - O que o leitor de hoje pode
aprender com a "Orestéia", que o senhor designa como paradigma da tragédia grega?
Torrano - Penso que a identificação
pura e simples é o caminho do equívoco. A atualidade de Ésquilo é que
ele é referência de um passado longínquo, e o futuro, como já disse o filósofo, se abre para nós a partir do
passado. Trata-se, sem dúvida, de
uma referência de algo que ultrapassa as limitações do presente, a penúria do presente, a imersão no imediatismo do presente com o que isso
tem de cegueira e obtusidade.
Essa consciência histórica -ter
uma referência longínqua e externa- é um alongamento da perspectiva, um exercício da acuidade do
olhar, algo que nos mostra o outro e
que permite, por contraste, revelar a
nossa própria identidade e examinar
o futuro, vendo-nos a nós mesmos
com um olhar crítico.
Os jovens que têm cultura clássica
estão menos sujeitos a se deixarem
escravizar por seitas limitadoras, por
religiões aprisionadoras. Eles têm
uma liberdade espiritual trazida pela
consciência de que a cultura tem sua
história, seu desenvolvimento, sua
diversidade. Há outros parâmetros
com que o presente pode ser confrontado, examinado, perscrutado,
investigado. O valor atemporal [desta obra] está ligada a seu valor histórico e, se já não tivesse valor histórico, não teria mais valor nenhum.
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