São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 2005

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"Enterro Celestial", de Xinran, e "Levo Você até Lá", de Joyce Carol Oates, colocam em discussão o estatuto da mulher na China e nos EUA

Colapso dos sentidos

BEATRIZ RESENDE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há duas maneiras de ler os romances escritos por mulheres que vêm de ser publicados entre nós, "Enterro Celestial", da chinesa Xinran, e "Levo Você até Lá", da norte-americana Joyce Carol Oates. A primeira é acompanhar as narrativas de amor e sofrimento da jovem médica Shu Wen ou da universitária sem nome do interior do Estados Unidos. São belas histórias.
A segunda, é debruçar-se sobre os romances como dois exemplos de "bildungsroman", "romance de formação", gênero de narrativa que acompanha o percurso de vida do herói que, à medida que amadurece, conhece a si mesmo e busca resolver suas contradições, vai percebendo em que consiste a realidade social, o tempo e o espaço em que está imerso. A análise do "bildungsroman" tem sido, freqüentemente, fio condutor para o estudo do realismo, da construção da realidade no espaço do ficcional. Georg Lukács ocupou-se do "romance de formação" desde a "Teoria do Romance", de 1914, onde vê nele o processo de reconciliação do "homem problemático", por meio da experiência vivida, com a realidade concreta e social.
No último volume de sua "Estética", de 1964, ainda se ocupa do "bildungsroman" ao analisar os romances de Thomas de Mann [1875-1955], especialmente os considerados dessa espécie, como "Os Buddenbrooks" e "A Montanha Mágica" [ambos pela Nova Fronteira].
[O lingüista Mikhail] Bakhtin, em "O "Bildungsroman" e sua Significação na História do Realismo", que faz parte do último de seus livros, dá um sopro novo à questão ao aproximar a obra de Rabelais à de Goethe, autor do mais tradicional dos "romances de formação", o "Wilhelm Meister".
A verdade, porém, é que os "romances de formação", onde o processo de autoconhecimento se dá paralelamente à compreensão da realidade, especialmente a social e política, que cerca o herói, é uma espécie literária escrita por homens, sobre homens. Por maiores que sejam os esforços por enxergar em obras de Jane Austen [1775-1817] e outras autoras manifestações do "bildungsroman", parece-me que é só com Simone de Beauvoir [1908-86] que a narrativa da formação de um eu condutor da narrativa, simultaneamente à observação e compreensão do mundo, vai se ocupar de uma mulher.
Isso já ocorre com "Os Mandarins" e continua em romances do tipo a que Bakhtin chama de "forma biográfica do romance de formação", como "Memórias de Uma Moça Bem Comportada" e "Na Força da Idade".
Em "Enterro Celestial", a narradora reproduz o relato de uma jovem estudante de medicina [na China], Shu Wen, que, menos um ano depois de casada, é separada do marido, que parte para o Tibete quando os comunistas iniciam a ocupação do território, nos anos 1950. Pouco depois o médico idealista é dado como desaparecido. Inconformada, Wen parte em busca do companheiro, junta-se ao Exército Libertador, perde-se nas guerras, torna-se amiga da tibetana Zhuoma, mulher de origem urbana, de camadas abastadas, que conhecia chinês e separam-se nas montanhas do Tibete. Passa, assim, 30 anos entre os nômades.

Morte do amado
O exílio só terminará quando comprovar que o companheiro morreu após ter interferido no ritual de um "enterro celestial", sacrificando-se, ao tentar mediar a paz entre tibetanos e chineses e terminar merecendo, ele também, um "enterro celestial". Depois de realizar a morte do amado, conhecerá as modificações políticas e sociais que haviam ocorrido na China e buscará o que sobrou de sua família. Xinran, que foi jornalista em Nanquim e hoje mora em Londres, afirma que a história lhe foi contada pela própria Wen, que depois disso desapareceu.
Joyce Carol Oates fala de "Levo Você até Lá" como "ficção autobiográfica". O romance divide-se em três partes, entremeadas por preciosas citações de Espinosa, Wittgenstein, Nietzsche. Na primeira parte, uma jovem de família pobre, órfã de mãe desde pequena, recebe bolsa de estudos, por seu mérito escolar, para uma universidade e vai morar na residência de uma das "irmandades universitárias" de Strykersville, no Estado de Nova York. Lá sofre todo tipo de discriminação e humilhações, até ter um colapso nervoso e terminar deixando o lugar.
Na segunda, estudante de destaque, mas vivendo em condições miseráveis, apaixona-se por um brilhante estudante negro de pós-graduação em filosofia, nos difíceis anos 1960, no início do movimento pelos direitos humanos. Tornam-se amantes, e a jovem, em cujo nome ninguém presta atenção, submete-se de todas as formas ao objeto de sua paixão. Apenas quando a relação chega aos limites da violência, separam-se.
Na terceira e breve parte, Anellia, como a chamava o rapaz, embora não fosse esse seu nome, viaja para despedir-se do pai, à morte, desfigurado pelo câncer. É quando o pai morre que a jovem comete o "primeiro ato inteiramente adulto" de sua vida, ao levar o corpo para ser enterrado ao lado da mãe, no cemitério de sua pequena cidade.
Joyce Carol Oates é uma escritora polêmica. Alguns críticos a consideram expressão importante da literatura americana da pós-modernidade, ao lado de [Don] DeLillo [1936] e Thomas Pynchon [1937], autores onde o que já foi chamado de "realismo histérico" se mesclaria a um realismo quase jornalístico. Outros a censuram, especialmente por publicar muito. Na verdade, Oates já publicou 32 romances e 26 coleções de narrativas curtas. Apesar disso, pouco aparece em público, raramente se deixa fotografar e há 40 anos é professora universitária, ensinando em Princeton desde 1978, onde edita a "Ontario Review".

Autobiografia
Oates realmente tem uma origem semelhante à personagem, estudou na Universidade de Syracuse e viveu em residência de estudantes como a descrita.
As histórias de romances entre homens negros e mulheres brancas são freqüentes em sua obra. Apesar da discrição sobre sua vida privada, não parece ser difícil encontrar traços biográficos na narrativa. Não me parece, porém, estar aí o mais interessante da relação entre ficção e realidade que o romance propõe.
Como teórica da literatura, Oates é uma estudiosa da poeta americana Sylvia Plath [1932-63], sobre cuja obra já escreveu ensaios dos mais citados, especialmente analisando os poemas sobre a morte e o romance "The Bell Jar". Essa novela de Sylvia, apresentada como "ficção autobiográfica", conta a história uma jovem universitária que, como Sylvia e como a Anellia de "Levo Você até Lá", ganha uma bolsa, mora numa residência e sofre com a rejeição sentida, até ter uma crise psiquiátrica. As três encontram refúgio na literatura e começam a carreira publicando uma "short story" na revista "Mademoiselle". Como também Carol Oates.
Em 2000, a romancista publicou longa resenha crítica dos diários de Sylvia Plath, redigidos de 1950 a 1962, reeditados com a inclusão de partes que tinham sido censuradas pelo viúvo, Ted Hughes.
Caracterizando Sylvia como uma "infatigável grafomaníaca", Oates apresenta os "Unabridged Journals" como "um "bildungsroman" em fragmentos", contendo "descobertas maravilhosas". Nas partes inéditas, Sylvia Plath registra sua submissão ao marido, a quem admirava extraordinariamente pelas qualidades intelectuais, mas também descreve a mistura de atração e repulsa que sentia pelos cabelos "escuros e gordurosos" de Hughes, mesma sensação que experimentará Anellia ao deitar-se na cama do namorado.
Comentando essa espécie de "romance de formação" que vê na narrativa dos diários, Oates aponta a importância do poema "Daddy", escrito meses antes do suicídio, texto atravessado por violência. Cabe aqui lembrar que é nesse poema que Plath escreve: "Daddy, I have had to kill you" [Papai, tive que matá-lo].
Esquecemos de Shu Wen? Não, pois é justamente ao aceitar o enterro celestial que completa sua tardia formação, o terrível ritual onde um corpo é oferecido aos abutres como forma de homenagem e busca de libertação. "O mestre do enterro celestial toca trompa, acende o fogo de amoreira para atrair os abutres e desmembra o corpo, partindo os ossos numa ordem prescrita no ritual". Lamas vêm do mosteiro e enviam o espírito para seu caminho. "Como os abutres preferem carne aos ossos, primeiro alimentamos as aves com os ossos". Para os tibetanos, é fundamental que o corpo inteiro seja comido, "do contrário os demônios virão roubar o espírito".
Quando o marido de Wen decide sacrificar-se, o faz para mostrar que "a carne e os sentimentos do chineses e dos tibetanos eram idênticos". Talvez como o entendimento entre as mulheres, a necessidade de conhecer a realidade de outras mulheres para conhecer-se e, sobretudo, a importância de uma mulher narrar a história de outra mulher.
Walter Benjamin, falando brevemente sobre o "romance de formação" no célebre ensaio "O Narrador", mostra que este não se afasta da estrutura fundamental do romance, onde a experiência que passa de uma pessoa a outra é a fonte de todos os narradores. No "romance de formação", mostra ainda, ao integrar o processo de vida social na vida de uma pessoa, a narrativa justifica apenas fragilmente as leis que determinam a realidade, mas é nessa fragilidade mesma que se baseia a ação.


Beatriz Resende é professora da UniRio e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora de "Apontamentos de Crítica Cultural" (DNL/Aeroplano).

Enterro Celestial
160 págs., R$ 33,00 de Xinran. Trad. Tuca Magalhães. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).

Levo Você até Lá
304 págs., R$ 42,00 de Joyce Carol Oates. Trad. Luiz Antonio Aguiar. Ed. Globo (av. Jaguaré, 1.485, CEP 05346-902, SP, tel. 0/ xx/11/ 3457-1545).


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