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"Enterro Celestial", de Xinran, e "Levo Você até Lá", de Joyce Carol Oates, colocam em discussão o estatuto da mulher na China e nos EUA
Colapso dos sentidos
BEATRIZ RESENDE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Há duas maneiras de ler os
romances escritos por mulheres que vêm de ser publicados entre nós, "Enterro Celestial", da chinesa Xinran, e
"Levo Você até Lá", da norte-americana Joyce Carol Oates. A primeira é
acompanhar as narrativas de amor e
sofrimento da jovem médica Shu
Wen ou da universitária sem nome
do interior do Estados Unidos. São
belas histórias.
A segunda, é debruçar-se sobre os
romances como dois exemplos de
"bildungsroman", "romance de formação", gênero de narrativa que
acompanha o percurso de vida do
herói que, à medida que amadurece,
conhece a si mesmo e busca resolver
suas contradições, vai percebendo
em que consiste a realidade social, o
tempo e o espaço em que está imerso. A análise do "bildungsroman"
tem sido, freqüentemente, fio condutor para o estudo do realismo, da
construção da realidade no espaço
do ficcional. Georg Lukács ocupou-se do "romance de formação" desde
a "Teoria do Romance", de 1914, onde vê nele o processo de reconciliação do "homem problemático", por
meio da experiência vivida, com a
realidade concreta e social.
No último volume de sua "Estética", de 1964, ainda se ocupa do "bildungsroman" ao analisar os romances de Thomas de Mann [1875-1955], especialmente os considerados dessa espécie, como "Os Buddenbrooks" e "A Montanha Mágica" [ambos pela Nova Fronteira].
[O lingüista Mikhail] Bakhtin, em
"O "Bildungsroman" e sua Significação na História do Realismo", que
faz parte do último de seus livros, dá
um sopro novo à questão ao aproximar a obra de Rabelais à de Goethe,
autor do mais tradicional dos "romances de formação", o "Wilhelm
Meister".
A verdade, porém, é que os "romances de formação", onde o processo de autoconhecimento se dá
paralelamente à compreensão da
realidade, especialmente a social e
política, que cerca o herói, é uma espécie literária escrita por homens,
sobre homens. Por maiores que sejam os esforços por enxergar em
obras de Jane Austen [1775-1817] e
outras autoras manifestações do
"bildungsroman", parece-me que é
só com Simone de Beauvoir [1908-86] que a narrativa da formação de
um eu condutor da narrativa, simultaneamente à observação e compreensão do mundo, vai se ocupar
de uma mulher.
Isso já ocorre com "Os Mandarins" e continua em romances do tipo a que Bakhtin chama de "forma
biográfica do romance de formação", como "Memórias de Uma Moça Bem Comportada" e "Na Força
da Idade".
Em "Enterro Celestial", a narradora reproduz o relato de uma jovem
estudante de medicina [na China],
Shu Wen, que, menos um ano depois de casada, é separada do marido, que parte para o Tibete quando
os comunistas iniciam a ocupação
do território, nos anos 1950. Pouco
depois o médico idealista é dado como desaparecido. Inconformada,
Wen parte em busca do companheiro, junta-se ao Exército Libertador,
perde-se nas guerras, torna-se amiga da tibetana Zhuoma, mulher de
origem urbana, de camadas abastadas, que conhecia chinês e separam-se nas montanhas do Tibete. Passa,
assim, 30 anos entre os nômades.
Morte do amado
O exílio só terminará quando
comprovar que o companheiro
morreu após ter interferido no ritual
de um "enterro celestial", sacrificando-se, ao tentar mediar a paz entre
tibetanos e chineses e terminar merecendo, ele também, um "enterro
celestial". Depois de realizar a morte
do amado, conhecerá as modificações políticas e sociais que haviam
ocorrido na China e buscará o que
sobrou de sua família. Xinran, que
foi jornalista em Nanquim e hoje
mora em Londres, afirma que a história lhe foi contada pela própria
Wen, que depois disso desapareceu.
Joyce Carol Oates fala de "Levo
Você até Lá" como "ficção autobiográfica". O romance divide-se em
três partes, entremeadas por preciosas citações de Espinosa, Wittgenstein, Nietzsche. Na primeira parte,
uma jovem de família pobre, órfã de
mãe desde pequena, recebe bolsa de
estudos, por seu mérito escolar, para
uma universidade e vai morar na residência de uma das "irmandades
universitárias" de Strykersville, no
Estado de Nova York. Lá sofre todo
tipo de discriminação e humilhações, até ter um colapso nervoso e
terminar deixando o lugar.
Na segunda, estudante de destaque, mas vivendo em condições miseráveis, apaixona-se por um brilhante estudante negro de pós-graduação em filosofia, nos difíceis
anos 1960, no início do movimento
pelos direitos humanos. Tornam-se
amantes, e a jovem, em cujo nome
ninguém presta atenção, submete-se de todas as formas ao objeto de
sua paixão. Apenas quando a relação chega aos limites da violência,
separam-se.
Na terceira e breve parte, Anellia,
como a chamava o rapaz, embora
não fosse esse seu nome, viaja para
despedir-se do pai, à morte, desfigurado pelo câncer. É quando o pai
morre que a jovem comete o "primeiro ato inteiramente adulto" de
sua vida, ao levar o corpo para ser
enterrado ao lado da mãe, no cemitério de sua pequena cidade.
Joyce Carol Oates é uma escritora
polêmica. Alguns críticos a consideram expressão importante da literatura americana da pós-modernidade, ao lado de [Don] DeLillo [1936] e
Thomas Pynchon [1937], autores
onde o que já foi chamado de "realismo histérico" se mesclaria a um
realismo quase jornalístico. Outros a
censuram, especialmente por publicar muito. Na verdade, Oates já publicou 32 romances e 26 coleções de
narrativas curtas. Apesar disso, pouco aparece em público, raramente se
deixa fotografar e há 40 anos é professora universitária, ensinando em
Princeton desde 1978, onde edita a
"Ontario Review".
Autobiografia
Oates realmente tem uma origem
semelhante à personagem, estudou
na Universidade de Syracuse e viveu
em residência de estudantes como a
descrita.
As histórias de romances entre homens negros e mulheres brancas são
freqüentes em sua obra. Apesar da
discrição sobre sua vida privada,
não parece ser difícil encontrar traços biográficos na narrativa. Não me
parece, porém, estar aí o mais interessante da relação entre ficção e
realidade que o romance propõe.
Como teórica da literatura, Oates é
uma estudiosa da poeta americana
Sylvia Plath [1932-63], sobre cuja
obra já escreveu ensaios dos mais citados, especialmente analisando os
poemas sobre a morte e o romance
"The Bell Jar". Essa novela de Sylvia,
apresentada como "ficção autobiográfica", conta a história uma jovem
universitária que, como Sylvia e como a Anellia de "Levo Você até Lá",
ganha uma bolsa, mora numa residência e sofre com a rejeição sentida,
até ter uma crise psiquiátrica. As três
encontram refúgio na literatura e começam a carreira publicando uma
"short story" na revista "Mademoiselle". Como também Carol Oates.
Em 2000, a romancista publicou
longa resenha crítica dos diários de
Sylvia Plath, redigidos de 1950 a
1962, reeditados com a inclusão de
partes que tinham sido censuradas
pelo viúvo, Ted Hughes.
Caracterizando Sylvia como uma
"infatigável grafomaníaca", Oates
apresenta os "Unabridged Journals"
como "um "bildungsroman" em
fragmentos", contendo "descobertas maravilhosas". Nas partes inéditas, Sylvia Plath registra sua submissão ao marido, a quem admirava extraordinariamente pelas qualidades
intelectuais, mas também descreve a
mistura de atração e repulsa que
sentia pelos cabelos "escuros e gordurosos" de Hughes, mesma sensação que experimentará Anellia ao
deitar-se na cama do namorado.
Comentando essa espécie de "romance de formação" que vê na narrativa dos diários, Oates aponta a
importância do poema "Daddy", escrito meses antes do suicídio, texto
atravessado por violência. Cabe aqui
lembrar que é nesse poema que
Plath escreve: "Daddy, I have had to
kill you" [Papai, tive que matá-lo].
Esquecemos de Shu Wen? Não,
pois é justamente ao aceitar o enterro celestial que completa sua tardia
formação, o terrível ritual onde um
corpo é oferecido aos abutres como
forma de homenagem e busca de libertação. "O mestre do enterro celestial toca trompa, acende o fogo de
amoreira para atrair os abutres e
desmembra o corpo, partindo os ossos numa ordem prescrita no ritual". Lamas vêm do mosteiro e enviam o espírito para seu caminho.
"Como os abutres preferem carne
aos ossos, primeiro alimentamos as
aves com os ossos". Para os tibetanos, é fundamental que o corpo inteiro seja comido, "do contrário os
demônios virão roubar o espírito".
Quando o marido de Wen decide
sacrificar-se, o faz para mostrar que
"a carne e os sentimentos do chineses e dos tibetanos eram idênticos".
Talvez como o entendimento entre
as mulheres, a necessidade de conhecer a realidade de outras mulheres para conhecer-se e, sobretudo, a
importância de uma mulher narrar a
história de outra mulher.
Walter Benjamin, falando brevemente sobre o "romance de formação" no célebre ensaio "O Narrador", mostra que este não se afasta
da estrutura fundamental do romance, onde a experiência que passa
de uma pessoa a outra é a fonte de
todos os narradores. No "romance
de formação", mostra ainda, ao integrar o processo de vida social na vida
de uma pessoa, a narrativa justifica
apenas fragilmente as leis que determinam a realidade, mas é nessa fragilidade mesma que se baseia a ação.
Beatriz Resende é professora da UniRio e
pesquisadora da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. É autora de "Apontamentos
de Crítica Cultural" (DNL/Aeroplano).
Enterro Celestial
160 págs., R$ 33,00
de Xinran. Trad. Tuca Magalhães. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702,
conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/
11/3707-3500).
Levo Você até Lá
304 págs., R$ 42,00
de Joyce Carol Oates. Trad. Luiz Antonio
Aguiar. Ed. Globo (av. Jaguaré, 1.485, CEP
05346-902, SP, tel. 0/ xx/11/ 3457-1545).
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