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+ saúde
Entre todos os médicos escritores da cultura brasileira, o que singulariza
Silva Mello é que exerceu a literatura a partir de suas observações clínicas
A medicina descolonizada do doutor Silva Mello
por Gilberto Vasconcellos
Juiz-forano nato, formou-se médico
no ano de 1914 em Berlim, Alemanha,
exerceu clínica na Suíça e no Rio de Janeiro, onde foi professor na Universidade Federal, tido pelo seu amigo poeta
Carlos Drummond de Andrade como a
"imagem da sabedoria".
O doutor Antônio da Silva Mello escreveu dezenas de livros notáveis, versando
assuntos os mais variados, a exemplo das
peculiaridades do Nordeste, da condição
social do negro, da "filosofia do parto",
da alimentação, da psicanálise, da superstição, da religião, da geografia dos
trópicos, da hegemonia norte-americana
depois das duas guerras mundiais.
Foi traduzido em inglês e alemão durante as décadas de 50 e 60. Morreu na
década de 70, enterrado no Rio de Janeiro. Provavelmente não existirá outro na
cultura brasileira em que o médico e o escritor estejam orgânica e indissoluvelmente ligados. O clínico é um pensador,
e vice-versa.
Escreveu livros exclusivamente sobre
assuntos científicos, focalizando questões de medicina, de saúde e de higiene,
diferenciando-se nesse aspecto do também médico e mineiro Pedro Nava, cuja
atividade literária não teve como matéria-prima os assuntos relacionados à
medicina. É por isso que considero Silva
Mello o pensador brasileiro da medicina.
Menino da roça
Estréia em meados
da década de 30 com um livro intitulado
"Problemas do Ensino Médico e de Educação". O ensino do saber médico permeia todos os seus livros direta ou indiretamente, um excepcional "médico prático" que se ocupou do aspecto epistemológico da medicina e sua influência
na vida social e cultural. Um gigante do
humanismo.
Entre todos os médicos escritores que
têm aparecido na cultura brasileira -de
Afrânio Peixoto a João Guimarães Rosa-, o que singulariza Silva Mello é que
ele exerceu a atividade literária a partir
de suas observações e experiências clínicas, sempre por dentro da bibliografia
médica publicada nos grandes centros
do mundo, Alemanha, Estados Unidos,
França, Espanha, Suíça, Inglaterra, Itália,
México, Argentina, União Soviética. Essa
preocupação científica de atualização bibliográfica está vinculada à circunstância
de sua biografia, que lhe permitiu aprender muitos idiomas estrangeiros, tendo
conhecido e vivido em vários países da
Europa. Curiosamente se autodefinia como um "menino da roça", apaixonado
pelas camadas da população menos cultas e afastadas dos centros citadinos.
É visível seu interesse em conhecer e
analisar os aspectos regionais particulares da cultura brasileira, inteirando-se
profundamente das questões folclóricas
e etnológicas, citando amiúde sua vivência familiar na Zona da Mata mineira,
opinando a favor do coentro, do fubá, da
farinha de mandioca, da rapadura, do
berço, da cadeira de balanço e da rede de
dormir.
Presunções civilizadas
Insurgindo-se contra as "presunções do homem
civilizado", criticando severamente a industrialização moderna do açúcar refinado, dos pães de padaria, do arroz descorticado, do liquidificador e da privada
com água dentro, que respiga até o ânus
no momento da defecação. Em suas viagens pelos Estados Unidos, ficou apavorado com o desaparecimento puritano
do bidê nos quartos dos hotéis e a extinção do alfaiate, assim como da cadeira de
balanço. Através de uma abordagem farmacológica, denunciou a Coca-Cola, refrigerante venenoso cujo segredo comercial é devido ao seu alto teor de cafeína,
ao qual as crianças são muito sensíveis.
Amigo e médico de Assis Chateaubriand, a quem dedicou um livro, companheiro de viagem de Gilberto Freyre
em torno da tropicologia, recebido por
Câmara Cascudo no Rio Grande do Norte, prefaciado por Roquete Pinto, Carlos
Heitor Cony e o folclorista marxista Edison Carneiro. Considera o pícnico Assis
Chateaubriand "um Siegfried wagneriano" e Cascudo um "gentleman". Quanto
aos corpos grandes e pequenos, confessa: "Eu próprio nunca tive muito entusiasmo pelas mulheres grandes, aquele
tipo chamado literariamente de Valquíria, cheio de carnes e gorduras, talvez lindo na primeira mocidade, mas que envelhece e desmorona precocemente".
A altura do corpo não representa prova
de melhoria do organismo. Os gênios
frequentemente são pessoas de pequena
estatura. É engano supor que os tipos
grandalhões, repletos de carne e gordura, suecos, noruegueses, escandinavos,
alemães, sejam dotados de cérebro mais
desenvolvido. Segundo Silva Mello, o
aparelho sexual deles é de pequenas dimensões (microgenitalismo) e também é
pequeno o interesse que eles têm portal
função. "Isso não é desconhecido", escreve Silva Mello, "e são as mulheres que
o sabem melhor".
Vantagem sexual
Roquete Pinto
alude à evocação memorialística feita
por Silva Mello: "Quando estudante, e
depois jovem médico em hospitais europeus, surpreendi-me muitas vezes vendo
a vantagem que, relativamente aos órgãos sexuais, levava um pequeno homem do mediterrâneo a um gigante escandinavo. Depois, soube que a diferença não era só anatômica, mas principalmente funcional.
Também no Instituto Anatômico havia uma relação de membros viris de negros africanos, em ereção devido à substância injetada para a conservação, que
eram objeto de admiração e inveja por
parte de meus colegas alemães. Os próprios latinos e outros povos do sul da Europa, de pele morena ou mesmo mais escura, de estatura não avantajada, parecem gozar as regalias de uma tal superioridade, que provavelmente deve ter contribuído para criar a condição excepcional dos nordestinos".
Em sua longa estada pelas cortes européias, privou com alguns dos mais célebres psicanalistas da primeira geração
freudiana, sendo íntimo amigo de Stekel,
hospedando-o no Rio de janeiro durante
a década de 20, trabalhando juntos na
condução clínica de seus pacientes. Em
seu livro "As Ilusões da Psicanálise" ironiza o traumatismo do nascimento, a
idéia do castigo originário como absurdo
biológico, defendendo a necessidade de
um verbo analgésico em que a dor não
seja obrigatória no ato do parto.
Silva Mello vivia na Alemanha estudando medicina quando o saber psicanalítico estava sendo elaborado na Europa, de modo que um dos vetores fundamentais de sua obra é a presença das teorias de Freud, ressaltando, porém, o fato
de que o médico juiz-forano não aceitou
a hipótese do criador da psicanálise sobre o mal-estar na cultura. Reconheceu,
no entanto, que o homem moderno, sujeito a placebos e ilusões medicamentosas, é um oxímoro nervoso no meio de
tranquilizantes e alucinógenos.
Confiança nos instintos
Sabendo
dos segredos e manhas do movimento
psicanalítico que nascia em Viena, Berlim e Paris, Silva Mello (irritado com Hitler e Stálin por banirem a psicanálise),
lembra que o Brasil foi um dos primeiros
países a aceitar a ciência do inconsciente.
Bastante curioso o fato de Freud ter se interessado em arrumar uma gramática do
português para aprender a "última flor
do Lácio", como poetou Olavo Bilac.
Em seu último livro, "Superioridade
do Homem Tropical", no qual se observam muitas afinidades com a sociologia
de Gilberto Freyre, elabora Antônio da
Silva Mello uma crítica cultural em que
aparece a confiança nos instintos, ou seja, a formulação de que os instintos devem comandar a ciência e a vida social.
Com isso ele se afasta da afirmativa de
Freud segundo a qual a civilização deixaria de existir caso o homem fizesse tudo
aquilo que lhe agrada.
Eis o que ele condenou no criador da
psicanálise: o menosprezo dos instintos.
"O homem", escreve Antônio da Silva
Mello, "não é um criminoso que só procura o mal e a destruição. Esse pensamento é por demais consciente, havendo
sido explorado até como direção filosófica. Mas deve estar completamente errado, porque o que comanda os instintos é
muito diferente, sendo eles que têm permitido a vida e a felicidade dos homens e
dos animais. São os instintos que devem
ser levados em consideração, devendo
ser calcados sobre eles as exigências da
nossa existência".
Silva Mello foi o crítico da ideologia do
colonialismo na esfera da medicina,
ideologia essa que calunia o sol, o trópico
e o homem mestiço. Ele negou peremptoriamente a tese equivocada de que o
calor ou o clima quente seja um fator
desfavorável à cultura e ao desenvolvimento da inteligência.
Gene tropical
Interessante reparar
que a descolonização do saber médico
mantém um caráter simbiótico com a
sua biografia, pois ele assinala que, sexto
filho de uma família de nove irmãos, filho de pai e avô analfabetos, foi o "gene
tropical" que o dominou biologicamente: "Devo repetir que me julgo um autêntico produto tropical, tão autêntico
quanto é possível sê-lo ainda dentro das
normas da nossa civilização".
Em seu livro de 1958, "Estudo sobre o
Negro", Silva Mello levanta a hipótese de
que Beethoven e Goethe, gênios da humanidade, eram do tipo essencialmente
tropical, com pigmentação acentuada e
de tipo físico negróide.
Uma das cabeças mais livres que este
país já teve, o médico Silva Mello defende
a tese, provocante e logicamente irrefutável, de que o primeiro homem adâmico criado por Deus era um ser tropical. O
maravilhoso jardim deveria ter sido de
clima quente, pois Adão e Eva viveram
pelados no paraíso terrestre e só passaram a usar roupas quando cometeram o
pecado original.
Em Silva Mello a noção de trópico é essencialmente geográfica, determinada
por dois círculos terrestres: ao norte,
câncer, e ao sul, capricórnio. E se o deserto do Saara já esteve coberto por águas
dos oceanos? E se a Suíça teve clima tropical? A idade da terra e a do homem, eis
o objeto de todos os seus livros, mostrando quão grave erro na antropologia é o
de admitir que as migrações humanas
desceram das regiões frias para as quentes. Em seu consultório médico, constatou várias vezes que os homens eunucos
nunca se tornam carecas.
Sempre atento à realidade física dos
trópicos úmidos, condenou o moderno
abandono da botânica pela medicina
química, porém não embarcou na viagem psicodélica, tipo "cientista maluco",
místico, esotérico, macrobiótico. Ópio.
Casca de quina. Digitalis. De olho na riqueza calórica e energética dos vegetais,
ele sugere que a descoberta da América
foi devida menos à procura de especiarias do que à de plantas medicinais. Aos
niilistas crônicos e profissionais, manda
um recado engraçado, à Oswald de Andrade: muitas vezes o indivíduo é pessimista porque não foi amamentado no
seio da mãe, mas sim com mamadeira!
Impossível não evocar aqui o exemplo
do badalado filósofo Nietzsche, dispéptico, estômago sensível, atormentado com
permanentes dietas, sem provar do vinho e da cerveja, nenhum álcool, tampouco um bom charutão depois do rango. Um infeliz. De resto, Câmara Cascudo, o Brillat-Savarin potiguar, assegurava que uma boa feijoada é mais importante do que a posse da lua. Discípulo de
Silva Mello na crítica literária, o polígrafo
belo-horizontino Eduardo Frieiro, outro
brasileiro injustamente esquecido, autor
do clássico "Feijão, Angu e Couve", percebeu a importância transcendental da
boca: o mal é quando o paladar já não
distingue os sabores. "Toda a natureza é
uma conjugação do verbo comer no ativo e no passivo. Comer e ser comido, eis
a lei da vida. Panfagia universal."
Resgate no mar
Ao dizer-se ateu,
relata sua conduta calma, serena, consciente e tranquila diante da própria morte, quando, logo depois de formado em
medicina na Alemanha, voltando ao
Brasil durante a Primeira Guerra, o navio
em que se encontrava a bordo foi torpedeado. Foi salvo por um barco, depois
colocado em um cargueiro de volta ao
cais de Amsterdã. "Achei que era estúpido acabar devorado pelos peixes, depois
de uma vida de extremo labor, de uma
dedicação inexcedível ao estudo. Tive
pena dos meus parentes que me haviam
auxiliado e esperavam tudo de mim." Aí
está a bela e plena justificação do talento
e da vocação realizadas por aquele que se
tornaria o maior médico brasileiro e que
conseguiu a proeza de descolonizar-se
de corpo e alma.
Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais
da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor
de "As Ruínas do Pós-Real" e "O Príncipe da Moeda"
(Ed. Espaço e Tempo), entre outros.
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