São Paulo, domingo, 16 de abril de 2000


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+ saúde
Entre todos os médicos escritores da cultura brasileira, o que singulariza Silva Mello é que exerceu a literatura a partir de suas observações clínicas
A medicina descolonizada do doutor Silva Mello

por Gilberto Vasconcellos

Juiz-forano nato, formou-se médico no ano de 1914 em Berlim, Alemanha, exerceu clínica na Suíça e no Rio de Janeiro, onde foi professor na Universidade Federal, tido pelo seu amigo poeta Carlos Drummond de Andrade como a "imagem da sabedoria". O doutor Antônio da Silva Mello escreveu dezenas de livros notáveis, versando assuntos os mais variados, a exemplo das peculiaridades do Nordeste, da condição social do negro, da "filosofia do parto", da alimentação, da psicanálise, da superstição, da religião, da geografia dos trópicos, da hegemonia norte-americana depois das duas guerras mundiais. Foi traduzido em inglês e alemão durante as décadas de 50 e 60. Morreu na década de 70, enterrado no Rio de Janeiro. Provavelmente não existirá outro na cultura brasileira em que o médico e o escritor estejam orgânica e indissoluvelmente ligados. O clínico é um pensador, e vice-versa. Escreveu livros exclusivamente sobre assuntos científicos, focalizando questões de medicina, de saúde e de higiene, diferenciando-se nesse aspecto do também médico e mineiro Pedro Nava, cuja atividade literária não teve como matéria-prima os assuntos relacionados à medicina. É por isso que considero Silva Mello o pensador brasileiro da medicina.

Menino da roça
Estréia em meados da década de 30 com um livro intitulado "Problemas do Ensino Médico e de Educação". O ensino do saber médico permeia todos os seus livros direta ou indiretamente, um excepcional "médico prático" que se ocupou do aspecto epistemológico da medicina e sua influência na vida social e cultural. Um gigante do humanismo. Entre todos os médicos escritores que têm aparecido na cultura brasileira -de Afrânio Peixoto a João Guimarães Rosa-, o que singulariza Silva Mello é que ele exerceu a atividade literária a partir de suas observações e experiências clínicas, sempre por dentro da bibliografia médica publicada nos grandes centros do mundo, Alemanha, Estados Unidos, França, Espanha, Suíça, Inglaterra, Itália, México, Argentina, União Soviética. Essa preocupação científica de atualização bibliográfica está vinculada à circunstância de sua biografia, que lhe permitiu aprender muitos idiomas estrangeiros, tendo conhecido e vivido em vários países da Europa. Curiosamente se autodefinia como um "menino da roça", apaixonado pelas camadas da população menos cultas e afastadas dos centros citadinos. É visível seu interesse em conhecer e analisar os aspectos regionais particulares da cultura brasileira, inteirando-se profundamente das questões folclóricas e etnológicas, citando amiúde sua vivência familiar na Zona da Mata mineira, opinando a favor do coentro, do fubá, da farinha de mandioca, da rapadura, do berço, da cadeira de balanço e da rede de dormir. Presunções civilizadas Insurgindo-se contra as "presunções do homem civilizado", criticando severamente a industrialização moderna do açúcar refinado, dos pães de padaria, do arroz descorticado, do liquidificador e da privada com água dentro, que respiga até o ânus no momento da defecação. Em suas viagens pelos Estados Unidos, ficou apavorado com o desaparecimento puritano do bidê nos quartos dos hotéis e a extinção do alfaiate, assim como da cadeira de balanço. Através de uma abordagem farmacológica, denunciou a Coca-Cola, refrigerante venenoso cujo segredo comercial é devido ao seu alto teor de cafeína, ao qual as crianças são muito sensíveis.
Amigo e médico de Assis Chateaubriand, a quem dedicou um livro, companheiro de viagem de Gilberto Freyre em torno da tropicologia, recebido por Câmara Cascudo no Rio Grande do Norte, prefaciado por Roquete Pinto, Carlos Heitor Cony e o folclorista marxista Edison Carneiro. Considera o pícnico Assis Chateaubriand "um Siegfried wagneriano" e Cascudo um "gentleman". Quanto aos corpos grandes e pequenos, confessa: "Eu próprio nunca tive muito entusiasmo pelas mulheres grandes, aquele tipo chamado literariamente de Valquíria, cheio de carnes e gorduras, talvez lindo na primeira mocidade, mas que envelhece e desmorona precocemente". A altura do corpo não representa prova de melhoria do organismo. Os gênios frequentemente são pessoas de pequena estatura. É engano supor que os tipos grandalhões, repletos de carne e gordura, suecos, noruegueses, escandinavos, alemães, sejam dotados de cérebro mais desenvolvido. Segundo Silva Mello, o aparelho sexual deles é de pequenas dimensões (microgenitalismo) e também é pequeno o interesse que eles têm portal função. "Isso não é desconhecido", escreve Silva Mello, "e são as mulheres que o sabem melhor".

Vantagem sexual
Roquete Pinto alude à evocação memorialística feita por Silva Mello: "Quando estudante, e depois jovem médico em hospitais europeus, surpreendi-me muitas vezes vendo a vantagem que, relativamente aos órgãos sexuais, levava um pequeno homem do mediterrâneo a um gigante escandinavo. Depois, soube que a diferença não era só anatômica, mas principalmente funcional. Também no Instituto Anatômico havia uma relação de membros viris de negros africanos, em ereção devido à substância injetada para a conservação, que eram objeto de admiração e inveja por parte de meus colegas alemães. Os próprios latinos e outros povos do sul da Europa, de pele morena ou mesmo mais escura, de estatura não avantajada, parecem gozar as regalias de uma tal superioridade, que provavelmente deve ter contribuído para criar a condição excepcional dos nordestinos". Em sua longa estada pelas cortes européias, privou com alguns dos mais célebres psicanalistas da primeira geração freudiana, sendo íntimo amigo de Stekel, hospedando-o no Rio de janeiro durante a década de 20, trabalhando juntos na condução clínica de seus pacientes. Em seu livro "As Ilusões da Psicanálise" ironiza o traumatismo do nascimento, a idéia do castigo originário como absurdo biológico, defendendo a necessidade de um verbo analgésico em que a dor não seja obrigatória no ato do parto. Silva Mello vivia na Alemanha estudando medicina quando o saber psicanalítico estava sendo elaborado na Europa, de modo que um dos vetores fundamentais de sua obra é a presença das teorias de Freud, ressaltando, porém, o fato de que o médico juiz-forano não aceitou a hipótese do criador da psicanálise sobre o mal-estar na cultura. Reconheceu, no entanto, que o homem moderno, sujeito a placebos e ilusões medicamentosas, é um oxímoro nervoso no meio de tranquilizantes e alucinógenos.

Confiança nos instintos
Sabendo dos segredos e manhas do movimento psicanalítico que nascia em Viena, Berlim e Paris, Silva Mello (irritado com Hitler e Stálin por banirem a psicanálise), lembra que o Brasil foi um dos primeiros países a aceitar a ciência do inconsciente. Bastante curioso o fato de Freud ter se interessado em arrumar uma gramática do português para aprender a "última flor do Lácio", como poetou Olavo Bilac. Em seu último livro, "Superioridade do Homem Tropical", no qual se observam muitas afinidades com a sociologia de Gilberto Freyre, elabora Antônio da Silva Mello uma crítica cultural em que aparece a confiança nos instintos, ou seja, a formulação de que os instintos devem comandar a ciência e a vida social. Com isso ele se afasta da afirmativa de Freud segundo a qual a civilização deixaria de existir caso o homem fizesse tudo aquilo que lhe agrada. Eis o que ele condenou no criador da psicanálise: o menosprezo dos instintos. "O homem", escreve Antônio da Silva Mello, "não é um criminoso que só procura o mal e a destruição. Esse pensamento é por demais consciente, havendo sido explorado até como direção filosófica. Mas deve estar completamente errado, porque o que comanda os instintos é muito diferente, sendo eles que têm permitido a vida e a felicidade dos homens e dos animais. São os instintos que devem ser levados em consideração, devendo ser calcados sobre eles as exigências da nossa existência". Silva Mello foi o crítico da ideologia do colonialismo na esfera da medicina, ideologia essa que calunia o sol, o trópico e o homem mestiço. Ele negou peremptoriamente a tese equivocada de que o calor ou o clima quente seja um fator desfavorável à cultura e ao desenvolvimento da inteligência.

Gene tropical
Interessante reparar que a descolonização do saber médico mantém um caráter simbiótico com a sua biografia, pois ele assinala que, sexto filho de uma família de nove irmãos, filho de pai e avô analfabetos, foi o "gene tropical" que o dominou biologicamente: "Devo repetir que me julgo um autêntico produto tropical, tão autêntico quanto é possível sê-lo ainda dentro das normas da nossa civilização".
Em seu livro de 1958, "Estudo sobre o Negro", Silva Mello levanta a hipótese de que Beethoven e Goethe, gênios da humanidade, eram do tipo essencialmente tropical, com pigmentação acentuada e de tipo físico negróide.
Uma das cabeças mais livres que este país já teve, o médico Silva Mello defende a tese, provocante e logicamente irrefutável, de que o primeiro homem adâmico criado por Deus era um ser tropical. O maravilhoso jardim deveria ter sido de clima quente, pois Adão e Eva viveram pelados no paraíso terrestre e só passaram a usar roupas quando cometeram o pecado original.
Em Silva Mello a noção de trópico é essencialmente geográfica, determinada por dois círculos terrestres: ao norte, câncer, e ao sul, capricórnio. E se o deserto do Saara já esteve coberto por águas dos oceanos? E se a Suíça teve clima tropical? A idade da terra e a do homem, eis o objeto de todos os seus livros, mostrando quão grave erro na antropologia é o de admitir que as migrações humanas desceram das regiões frias para as quentes. Em seu consultório médico, constatou várias vezes que os homens eunucos nunca se tornam carecas.
Sempre atento à realidade física dos trópicos úmidos, condenou o moderno abandono da botânica pela medicina química, porém não embarcou na viagem psicodélica, tipo "cientista maluco", místico, esotérico, macrobiótico. Ópio. Casca de quina. Digitalis. De olho na riqueza calórica e energética dos vegetais, ele sugere que a descoberta da América foi devida menos à procura de especiarias do que à de plantas medicinais. Aos niilistas crônicos e profissionais, manda um recado engraçado, à Oswald de Andrade: muitas vezes o indivíduo é pessimista porque não foi amamentado no seio da mãe, mas sim com mamadeira! Impossível não evocar aqui o exemplo do badalado filósofo Nietzsche, dispéptico, estômago sensível, atormentado com permanentes dietas, sem provar do vinho e da cerveja, nenhum álcool, tampouco um bom charutão depois do rango. Um infeliz. De resto, Câmara Cascudo, o Brillat-Savarin potiguar, assegurava que uma boa feijoada é mais importante do que a posse da lua. Discípulo de Silva Mello na crítica literária, o polígrafo belo-horizontino Eduardo Frieiro, outro brasileiro injustamente esquecido, autor do clássico "Feijão, Angu e Couve", percebeu a importância transcendental da boca: o mal é quando o paladar já não distingue os sabores. "Toda a natureza é uma conjugação do verbo comer no ativo e no passivo. Comer e ser comido, eis a lei da vida. Panfagia universal."

Resgate no mar
Ao dizer-se ateu, relata sua conduta calma, serena, consciente e tranquila diante da própria morte, quando, logo depois de formado em medicina na Alemanha, voltando ao Brasil durante a Primeira Guerra, o navio em que se encontrava a bordo foi torpedeado. Foi salvo por um barco, depois colocado em um cargueiro de volta ao cais de Amsterdã. "Achei que era estúpido acabar devorado pelos peixes, depois de uma vida de extremo labor, de uma dedicação inexcedível ao estudo. Tive pena dos meus parentes que me haviam auxiliado e esperavam tudo de mim." Aí está a bela e plena justificação do talento e da vocação realizadas por aquele que se tornaria o maior médico brasileiro e que conseguiu a proeza de descolonizar-se de corpo e alma.


Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "As Ruínas do Pós-Real" e "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.


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