São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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+ sociedade

Aumento da oferta musical pelos avanços tecnológicos sacrifica a capacidade de escutar e isola o indivíduo

A atrofia virtual dos sentidos

LIVIO TRAGTENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vivemos hoje o paradoxo entre a exuberância na oferta de meios para ouvir música -e para se comunicar nos mais diferentes níveis hierárquicos- e uma atrofia na qualidade da experiência sonora e musical.
Digo isso constatando que cada vez se ouve um número menor de músicas e de uma forma pouco recomendada. À medida que as ofertas tecnológicas em comunicação se multiplicam num leque amplo de equipamentos, protocolos e linguagens codificadas, observa-se um movimento contrário, uma guetização, uma segmentação extrema que termina por apartar as diferenças e criar nichos praticamente secretos de acesso e fruição.
Ou seja, além das esferas facilitadoras de consumo, de simplificação prática das tarefas do dia-a-dia, em que medida a capacidade de comunicação está realmente se ampliando? À primeira vista, parece que toda essa facilitação traz um verdadeiro avanço e ganho na comunicação social, embora uma característica básica da linguagem digital seja a de operar por faixas, por grupos, por segmentação.


É uma ilusão achar que as pessoas navegam na internet em busca do desconhecido -muito pelo contrário


Até por sua própria natureza de sistema-árvore -que se amplia a partir de pontos de difusão, nódulos, que ordenadamente estabelecem hierarquias de organização e navegação, possibilitando que os mais diversificados usuários e consumidores possam encontrar o seu espaço de acolhimento e encontro-, a internet é uma representação palpável das democracias ocidentais, que caminham cada vez mais para a criação de guetos e a compartimentação dos grupos humanos.
As tecnologias de conversação dão acesso e vazão a um número nunca visto de usuários simultâneos e interconectados. Nunca se falou tanto e se disse tão pouco.
Ao invés de facilitar o contato entre as pessoas na cidade, ela o substitui. Onde a conversação se dá baseada apenas em conversação, as possibilidades de erros de comunicação, ruído e mesmo fofoca são gigantescas. Criam-se nuvens de mal-entendidos que, com a mesma velocidade com que se formam, se dissipam. Simulação de comunicação.

Compactação
Com relação à escuta, a multiplicação dos equipamentos que num primeiro momento ofereciam uma qualidade baixa na gravação e reprodução digital hoje oferece a qualidade que o dinheiro de cada um puder comprar, sem restrições. Essa miniaturização e compactação com que operam se reverteria em uma maior capacidade e qualidade na experiência musical do consumidor.
No entanto alguns aspectos de sua utilização chamam a atenção. O caso dos fones de ouvido, do tocador portátil, por exemplo. Além de nocivo ao aparelho auditivo, os fones isolam a pessoa do ambiente externo.
Assim, a atrofia da escuta se verifica em dois pontos: tomando os sites na internet como fonte provedora de informação musical, a experiência da descoberta de músicos, estilos, grupos por meio da própria presença em shows, apresentações, se restringe; sendo direcionada apenas para aqueles grupos bem cotados nos sites de download.
É uma ilusão achar que as pessoas, em sua grande maioria, navegam na internet em busca do desconhecido -muito pelo contrário.
O segundo ponto que gera atrofia na escuta é fisiológico mesmo. O massacrante número de horas em que o indivíduo passa colado aos fones de ouvido diminui a capacidade quantitativa e qualitativa da percepção sonora. O músculo do ouvido, literalmente, se enrijece.
Esses pontos são coabitantes de um ambiente que se renova em velocidade extrema. A reflexão sobre certos temas deve ser levantada, longe das arenas do marketing e do negócio. Seria ingênuo perguntar: não devíamos nos aproximar e apropriar das novas tecnologias com os olhos e ouvidos mirados na educação dos sentidos ?

Livio Tragtenberg é compositor, além de criador e diretor da Orquestra de Músicos das Ruas de São Paulo. É autor de "Música de Cena" (Perspectiva), entre outros.


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