São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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Confronto épico entre o negro norte-americano Joe Louis e o alemão de origem humilde Max Schmeling, às vésperas da eclosão da 2ª Guerra, sintetizou as tensões raciais e geopolíticas que levariam ao conflito

Punhos da discórdia

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Desde que se converteram em fenômeno de massa, ao longo do século 20, as façanhas esportivas passaram a simbolizar muito mais do que a literalidade de uma disputa, servindo, às vezes, para expressar traços relevantes da vida social e política.
Os casos do esporte mais popular do nosso tempo são conhecidos. Para ficar num exemplo, é sabido que um jogo entre Barcelona e Real Madrid vai além da rivalidade circunscrita às quatro linhas do gramado. E isso acontece há muitas décadas. O Barcelona foi o time de todas as oposições, catalãs ou não, durante a ditadura do general Franco; o Real Madrid teve seu nome associado ao franquismo, até por ser o clube de preferência do "generalíssimo". Hoje, a divisão se relaciona com a busca de crescente autonomia da Catalunha diante do governo central.
Aqui, vou me concentrar nos embates do esporte em que se projetam ideologias racistas, tomando o caso extremo dos anos 30, quando os nazistas se encontravam no poder na Alemanha. Conhece-se a tentativa de Hitler de converter a Olimpíada de 1936 em espetáculo de afirmação da superioridade da raça ariana assim como seu fracasso diante da façanha do atleta negro americano Jesse Owens, ganhador de quatro medalhas de ouro.


Louis nocauteou Schmeling, provocando uma explosão de alegria nos EUA, enquanto na Alemanha o resultado foi considerado "um fato impossível"


Menos lembrado é um caso do boxe, esporte que, mais do que qualquer outro, foi associado à masculinidade, característica enfatizada pelos regimes totalitários. Desse modo, Mussolini exaltou a virilidade da Itália fascista, associando-a ao Império Romano, em contraste com países "efeminados", como a França.
Ele mesmo, como Mao Tse-tung décadas depois, foi filmado e exibido com as dimensões de um fantástico esportista.
O caso do boxe a que faço referência é o das lutas de pesos-pesados entre o negro americano Joe Louis -o demolidor de Detroit- e Max Schmeling, lutador alemão que veio a simbolizar a raça ariana. Os dois confrontos que ambos travaram são o tema do livro "Beyond the Glory -Joe Louis vs. Max Schmeling and a World on the Brink" (Para Além da Glória - Joe Louis Contra Max Schmeling e um Mundo à Beira do Precipício, ed. Knopf, 423 págs., US$ 26,95, R$ 58), de David Margolick, resenhado no "New York Review of Books" de 12/1 por Ian Buruma.

A luta
Schmeling, de origem modesta, gozava de prestígio antes do advento do nazismo em 1933, e, entre seus admiradores intelectuais e boêmios, encontrava-se nada mais nada menos do que Bertolt Brecht, fã de boxe. Mas ele foi apropriado pelos nazistas, tornando-se convidado freqüente de jantares promovidos por membros da cúpula do regime.
Como se veio a saber mais tarde, isso não o impediu de esconder dois rapazes judeus, filhos de um amigo, na suíte de um hotel em que residia, durante a Noite dos Cristais, uma das primeiras grandes razias contra os judeus alemães.
Joe Louis -o "Joe Luís" como era designado no Brasil da época-, filho de um meeiro muito pobre do Alabama que se mudou com a família para Detroit, abriu literalmente com os punhos o caminho da ascensão social.
A primeira luta entre Schmeling e Louis foi realizada em Nova York em 1936, ano em que as tensões que desembocariam na Segunda Guerra Mundial já eram evidentes. A derrota de Louis, por nocaute no 12º assalto, provocou profunda tristeza entre os negros, em primeiro lugar, mas também entre os judeus e liberais brancos americanos, numa época em que negros e judeus estavam muito próximos, alvos do racismo da elite e de boa parte da população branca dos Estados Unidos.
Na Alemanha, a vitória de Schmeling foi celebrada como um triunfo racial contra um membro de uma raça inferior, e o lutador recebeu congratulações de Hitler, o que não é surpreendente. Surpreendentes foram os telegramas enviados pelo famoso pintor George Grosz, por Marlene Dietrich -pouco mais tarde fervorosa inimiga do nazismo- e pelo diretor de cinema Ernst Lubitsch, alemão de origem judaica, todos vivendo nos Estados Unidos já naquela altura.
Entre a primeira e a segunda luta com Schmeling, Louis conquistou o título de campeão dos pesos-pesados contra James Braddock, e a revanche envolveu assim a disputa do título. Ela se realizou também em Nova York, em junho de 1938, despertando imensa expectativa dos dois lados do Atlântico.
Nos Estados Unidos, além dos que puderam assistir à luta, milhões a ouviram pelo rádio, e o Harlem se encheu de gente vestida com suas melhores roupas na esperança de comemorar uma grande vitória.
E foi mesmo uma grande vitória: no primeiro assalto, em pouco mais de dois minutos, Louis nocauteou Schmeling, provocando uma explosão de alegria, enquanto na Alemanha o resultado da luta foi considerado, com consternação, "um fato impossível", a ser esquecido o quanto antes.
Todavia os dois lutadores não foram esquecidos, de um lado e de outro, e se encontraram após a guerra, numa entrevista cordial.
A vitória de Louis no esporte não se estendeu, posteriormente, em sua vida. Gastou quase todo o dinheiro que tinha ganho, foi acossado pelo IRS (a Receita Federal americana) para pagar impostos vencidos e morreu em 1981, depois de ficar paralisado por um derrame. Schmeling enriqueceu, tornou-se proprietário de uma franquia alemã da Coca-Cola, vindo a morrer em 2005, aos 99 anos de idade.
Diz Ian Buruma que fatos como os narrados têm um impacto reduzido no mundo material, embora vitórias simbólicas possam fazer algum bem, lembrando a circunstância obviamente verdadeira de que nem o triunfo de Louis nem episódios análogos poderiam evitar a Segunda Guerra ou mudar seu curso.
De outra perspectiva, entretanto, a vitória do Demolidor de Detroit pode ser encarada como um elo na cadeia de acontecimentos materiais e simbólicos que fortaleceram a consciência negra, ao longo do tempo.
Mas certamente Louis -um rapaz de boas maneiras, ao contrário, por exemplo, de Muhammad Ali- não teve a mesma importância de um Martin Luther King ou das pessoas, quase sempre anônimas, que desafiaram a discriminação racial, sobretudo, mas não apenas, no sul dos Estados Unidos.

Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Cia. das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Autores".


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