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O melhor romance da década?
"Seu Rosto Amanhã", do escritor espanhol Javier Marías, abriu novas possibilidades para a ficção ao enriquecer técnicas narrativas e dialogar com a filosofia e a história
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
Agora que já adentramos dez anos no
novo século, pode
ser um bom momento para rever as
realizações culturais do período e procurar discernir novos
rumos. Poderíamos perguntar,
por exemplo, quais foram os
melhores ou mais notáveis romances publicados desde o começo do milênio.
Muitos leitores terão suas
listas próprias de "finalistas"; a
minha inclui "O Xará" (2003,
lançado no Brasil pela Companhia das Letras), da escritora
bengalesa-americana Jhumpa
Lahiri; "A Hora Azul" (2005,
Objetiva), do peruano Alonso
Cueto; "Testimone Inconsapevole" (Testemunha Inconsciente, 2002), do magistrado
italiano Gianrico Carofiglio, seguido por duas outras histórias
policiais da mesma alta qualidade; "Chicago" (2007), do
egípcio Alaa al Aswany, uma
história de biografias entremeadas que tem minha preferência sobre "O Edifício Yacubian" (2002, Companhia das
Letras), do mesmo autor.
Todas essas obras são comoventes e bem escritas. Mas minha primeira escolha não é nenhuma delas, e sim o ambicioso
romance em três volumes do
escritor espanhol Javier Marías, "Seu Rosto Amanhã" [tradução de Eduardo Brandão, cujos volumes 1º e 2º foram publicados no Brasil pela Companhia das Letras, que prevê lançar o volume 3º no segundo semestre].
Suponho que eu possa ser
acusado de viés nacional por
essa escolha, já que Marías é
um anglófilo que chegou a lecionar espanhol em Oxford,
minha antiga universidade, e
gosta de citar Shakespeare com
ainda mais frequência do que
cita Cervantes (o título do romance é uma citação de "Henrique 4º", de Shakespeare).
O cenário de boa parte da
história é Londres. Além disso,
tive o prazer, em mais de uma
ocasião, de encontrar dois personagens do livro, o professor
de Oxford e ex-agente secreto
sir Peter Russell (1913-2006),
que aparece no livro transparentemente disfarçado como
"Peter Wheeler", e o professor
espanhol Francisco Rico, que
aparece brevemente no volume 3 sob seu próprio nome.
Mesmo assim, escolhi "Seu
Rosto Amanhã" por uma razão
diferente: por suas técnicas
narrativas, que -como as de
Cueto, mas de modo ainda
mais notável- ampliaram as
possibilidades do romance.
Não estou pensando tanto no
uso feito no livro de fotos de
pessoas reais, à maneira de
W.G. Sebald, para conferir uma
ilusão mais forte de realidade,
mas em outras técnicas.
Thriller subjetivo
O romance é uma espécie de
thriller. Embora seja espanhol,
o protagonista tem um emprego temporário trabalhando para o serviço secreto britânico, e
lemos que Wheeler foi amigo
de Ian Fleming [1908-64], o inventor de James Bond. Mesmo
assim, o leitor não deve esperar
uma narrativa movimentada.
No início de sua carreira, Marías traduziu para o espanhol
um romance inglês do século
18, "A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy", de
Laurence Sterne, e aprendeu
com Sterne, como já admitiu a
um entrevistador, a escrever
muitas páginas sobre um momento breve.
Boa parte do espaço em "Seu
Rosto Amanhã" é dedicado a
reflexões sobre a vida tecidas
pelo protagonista, Jacques, Jaime ou Jack Deza, e a longas
conversas entre Deza e seu
amigo Wheeler ou entre Deza e
seu pai -uma figura baseada no
pai do autor, o filósofo Julián
Marías (1914-2005). Algumas
das conversas são "traduzidas"
pelo autor do inglês ao espanhol, permitindo a ele refletir
sobre as diferenças entre as
duas línguas.
O leitor pode muito bem ter a
impressão de que essas reflexões e conversas sejam digressões da história -devo admitir
que, inicialmente, eu ficava um
tanto quanto impaciente com
elas-, mas essas sempre acabam revelando-se partes essenciais da história, como as aparentes digressões de Peter
Wheeler.
Com a exceção de duas descrições vívidas e por momentos
grotescos de violência física,
minuto a minuto, como se estivessem acontecendo diante do
leitor, a maior parte da ação de
"Seu Rosto Amanhã" acontece
nos bastidores, sob a forma de
anedotas relatadas por Deza
ou, mais frequentemente, histórias contadas a Deza por outros personagens no romance.
Outro aspecto incomum do
romance é seu tema autodestrutivo. As primeiras seis palavras do livro são "No debería
uno contar nunca nada" [Ninguém deveria nunca contar nada] -seguidas, é claro, por uma
história que dura cerca de 1.500
páginas.
O romance retorna repetidas
vezes ao tema das consequências desastrosas que podem advir de falar, já que as palavras
escapam do controle de quem
as proferiu assim que são ditas,
no caso de falas impensadas
não menos que no de conversas
traiçoeiras, incluindo as denúncias de antigos amigos que
se seguiram à vitória de Franco
na Guerra Civil Espanhola
[1936-39], tema que ocupa bastante espaço nessas páginas.
O sofrimento causado às vítimas desse tipo de conversa
nunca poderá ser cancelado,
mas pode, pelo menos, ser aliviado, quando se conversa sobre ele. Nesse sentido, pode-se
dizer que o romance seja freudiano, apesar de o nome de
Freud nunca ser mencionado.
Tema e variações
A repetição controlada é um
dos segredos do estilo do autor,
convertendo este longo romance em uma espécie de sinfonia
na qual o leitor aprende a prestar atenção para captar o reaparecimento de um "leitmotiv"
(como a traição ou o poder das
histórias), de uma citação de
Shakespeare ou de uma das palavras-chave do romance -febre, lança, baile, sonho, veneno
e sombra.
Descrições de incidentes
que, à primeira vista, pareciam
ser triviais ou irrelevantes revelam, quando são repetidas,
empurrar a história para a frente ou ajudar o protagonista -e,
por meio dele, o leitor- a compreender seu significado.
Existem maneiras diferentes
de descrever o que Javier Marías realizou neste romance impressionante, com certeza sua
obra-prima, além de ser um dos
trabalhos de ficção mais importantes escritas na década passada. Um crítico literário poderia dizer que "Seu Rosto Amanhã" enriqueceu o repertório
de técnicas narrativas e prever
que não demorará muito a ser
imitado por outros romancistas. Um filósofo poderia afirmar que Marías encontrou
uma maneira nova de fazer filosofia, especialmente ética.
Um historiador pode impressionar-se sobretudo com a maneira como o autor trouxe os
anos 1930 e 1940 de volta à vida. Todos teriam razão, já que
"Seu Rosto Amanhã" é um livro
híbrido, espanhol e inglês, literário e filosófico, apropriado
para nossa era de hibridez cultural, em que tantos escritores
sentem-se atraídos a explorar o
terreno fronteiriço entre ficção
e história.
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "A
Tradução Cultural" (ed. Unesp) e "O Historiador
como Colunista" (ed. Civilização Brasileira).
Tradução de Clara Allain.
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