São Paulo, domingo, 16 de maio de 2010

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+(L)ivros

De olho nos negócios

Em "O Ouro de Moscou", escritor argentino defende que foi o interesse comercial, mais do que a militância comunista, que aproximou Buenos Aires da União Soviética

OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A diplomacia e as relações comerciais entre países costumam passar ao largo das ideologias e ser pautadas pelo pragmatismo. Exemplo dessa realidade foi a estreita conexão entre a União Soviética e a Argentina, tema de "O Ouro de Moscou", de Isidoro Gilbert.
O fato de ter havido aproximação entre um regime comunista e um país governado pelo peronismo e pela ditadura militar não é novidade. O que não se conheciam eram os mecanismos que viabilizavam o intercâmbio e os interesses por trás da operação.
A ideia que se tinha era que o Partido Comunista Argentino fazia essa ponte. De um lado, o PCA era o partido latino-americano mais submisso a Moscou, um disciplinador bolchevique dos comunistas do continente. De outro, o partido era tolerado pelos militares.
Embora a explicação tenha lógica, está distante da realidade. Gilbert demonstra, com base em cartas, depoimentos e farta documentação, que os comunistas argentinos tiveram participação secundária nas relações com os soviéticos.
Desde o início dos contatos, em 1946, a cúpula comunista da Argentina ignorava o que acontecia entre Buenos Aires e Moscou. Naquela época, logo após a Segunda Guerra Mundial, os comunistas hostilizavam Juan Domingo Perón [1895-1974], o caudilho que, com sua política de neutralidade, não apoiara os Aliados, entre os quais a União Soviética.
Mas, enquanto Victorio Codovilla, um dos principais dirigentes do PCA, se referia a um "naziperonismo", o governo argentino dava os primeiros passos para estabelecer relações diplomáticas e comerciais com os soviéticos.
Codovilla era o "olho de Moscou" na América Latina. Stalinista a ponto de ter se envolvido no assassinato de Trótski -adversário do chefe comunista-, Codovilla chegou a tentar convencer o dirigente brasileiro Luís Carlos Prestes [1898-1990] de sua posição contra os caudilhos da região.
Em "Confesso que Vivi" [ed. Bertrand Brasil], o poeta chileno Pablo Neruda diz ter sido o intermediário de Codovilla nessa fracassada missão (Prestes acabaria apoiando Getúlio Vargas, o equivalente de Perón no Brasil).
O que Codovilla e seus companheiros nunca perceberam é que interesses comerciais falam mais alto do que lealdades ideológicas. No caso, a União Soviética estava mais preocupada em assegurar a necessária importação de grãos do que em vigiar a conduta dos comunistas argentinos.

Maior intercâmbio
Tateantes no começo, as relações entre os dois países se intensificaram a partir da volta de Perón ao governo, em 1973.
Gilbert revela que o canal entre os dois governos era José Ber Gelbard, ministro argentino da Economia. Gelbard era também membro secreto do PCA, o que fazia dele uma peça confiável para ambos os lados.
Apesar da militância de Gelbard, as decisões sobre as relações do governo argentino com Moscou não passavam pelo comunismo local. "O Estado soviético atuou mais guiado pelos informes de seus organismos de inteligência do que pelas apreciações do Departamento Internacional do Partido Comunista da União Soviética, instância que, em mais de uma ocasião, era quase uma correia de transmissão das análises do PCA", escreve Gilbert.
A conexão soviética rendeu os maiores frutos a partir do início dos anos 1980, quando a Argentina não aderiu ao embargo americano contra a União Soviética depois da invasão do Afeganistão. Os soviéticos compraram milho argentino por um preço 30% acima da cotação mundial -esse foi verdadeiramente o "ouro de Moscou", diz Gilbert, para quem os dois países só não foram sócios porque os produtos soviéticos não tinham qualidade de exportação.
Jornalista veterano de agências de notícias e publicações comunistas, Isidoro Gilbert teve acesso às fontes fundamentais para contar sua história. A densidade da informação não compromete a prosa fluente, enriquecida por casos curiosos, como o da Coca-Cola.
É irônico que a engarrafadora argentina da bebida, cuja abstinência significava compromisso ideológico das esquerdas, tenha ajudado involuntariamente a financiar o PCA ao contratar executivos ligados ao partido.


OSCAR PILAGALLO é jornalista e autor de "A História do Brasil no Século 20" e "A Aventura do Dinheiro" (ambos pela Publifolha).

O OURO DE MOSCOU

Autor: Isidoro Gilbert
Tradução: Léo Schlafman
Editora: Record (tel. 0/xx/21/2585-2000)
Quanto: R$ 62,90 (616 págs.)


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