São Paulo, Domingo, 16 de Maio de 1999
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Uma coisa que se chamava política

JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha

"A Guerra do Golfo não terá lugar", previu no início de 1991 um intelectual francês. Segundo ele, a máquina militar de dissuasão obedeceria, dali em diante, à lei genérica de um mundo em que a realidade cederia lugar à simulação. Em matéria de guerra, assim como em toda outra matéria, a lógica do poder consistia em simular os acontecimentos para impedir que eles se realizassem. Uma guerra "real" não poderia eclodir porque contradiria o exercício dissuasivo do poderio militar. Os acontecimentos empíricos pareceram contradizer essa bela dedução. O pensador apressou-se em mostrar que pouco importava: a Guerra do Golfo, reafirmou, não poderia ter lugar. E, de fato, ela não teve lugar. Suas operações não foram decididas senão por cálculos de computadores, e seus efeitos não nos foram transmitidos senão por telas de televisão. Entre uma tela de computador e uma tela de televisão, o único espaço em que os acontecimentos em geral e a guerra em particular podem alojar-se é nas quatro linhas de uma tela, o espaço da realidade virtual. O que não poderia ter lugar não teve lugar senão nas telas da simulação.
Afirmar que o não-ser não pode ser sempre foi o passatempo favorito dos sofistas. Porém não se deve ter demasiada pressa em imputar esse tipo de raciocínio à incorrigível propensão dos intelectuais a negar a realidade por amor às palavras. Os intelectuais são mais observadores e mais realistas do que se diz. Eles sabem que as palavras não são o oposto da realidade. Elas são, ao contrário, o que lhe dá consistência. Se os sofistas têm hoje tanta facilidade em declarar o não-ser de qualquer realidade, é porque, de fato, os artífices dessa "realidade" a abandonam a eles, incapazes de dar um nome ao que fazem. Aqui os computadores e o mundo virtual são de pouca ajuda. Hoje ninguém mais se arrisca a dizer que a guerra em Kosovo não terá, não tem ou não teve lugar. Mas quem será capaz de dar nome às operações militares comandadas pela Otan? Intervenção numa guerra? Que tipo de guerra, afinal? Não uma guerra externa: as potências aliadas não reconhecem a Kosovo a realidade de uma nação agredida por outra. Guerra civil, então? Mas quem poderia outorgar às nações aliadas o mandado para intervir nos assuntos internos, por mais violentos que sejam, de uma outra nação? Resta assim um terceiro tipo de guerra, na qual os termos antagônicos não são mais duas nações ou dois partidos de uma nação, mas a humanidade e a anti-humanidade.
Em linhas gerais, reteve-se o esquema: a intervenção foi realizada para segurança da humanidade, sob a efígie dos albaneses de Kosovo, vítimas de uma empreitada genocida, contra o fautor desse genocídio, a anti-humanidade encarnada por um ditador sanguinário. Entre a anti-humanidade e a humanidade não há fronteira territorial, não há limite ao direito de ingerência. Mas a contradição só é eliminada do princípio da guerra por ser radicalizada em sua conduta. A guerra movida em nome de uma humanidade a ser salva é por definição uma guerra total, uma guerra inteiramente determinada por seu objetivo de fazer respeitar os direitos da humanidade e que não reconhece nenhuma limitação quanto aos meios de assegurar tal propósito. Como pensar, então, uma guerra humanitária restrita, uma guerra em que os bombardeios seletivos devem levar o criminoso anti-humanitário à mesa de negociações, enquanto o terreno é deixado livre para as operações de suas tropas, livre para a empreitada de liquidação em massa do povo representativo da humanidade ferida em seus direitos? Tudo ocorre como se a guerra humanitária se cindisse em duas operações, situadas aquém e além do território abandonado à purificação étnica: de um lado, operações militares que, a um só tempo, visam a dissuadir e a punir o mentor do crime; de outro, operações humanitárias de amparo a centenas de milhares de vítimas do crime.
Essas aparentes contradições levaram alguns a suspeitar de desígnios obscuros ou de transações secretas, ocultas por trás da ostentação humanitária. Mas é possível que não haja contradição, que haja uma convergência, mais profunda e inquietante do que todas as tratativas camufladas, entre a lógica da purificação étnica e a da guerra humanitária. Uma e outra têm o mesmo princípio, a negação da política. O etnicismo revoga o próprio espaço da política ao identificar o povo à raça e o território de exercício da cidadania à terra dos ancestrais. A purificação étnica não consiste simplesmente em expulsar de um território a etnia indesejável, mas em torná-la um rebanho indiferenciado, negando tanto a realidade coletiva de um povo dotado de vida pública quanto a singularidade dos indivíduos que a compõem. A guerra humanitária pretende opor a esse processo de dupla eliminação o respeito aos direitos humanos. Mas o ser humano que ela defende possui traços bem específicos. Ele tem, precisamente, o rosto do produto da empreitada purificadora, o rosto da vítima. É o núcleo dessa estranha configuração, o "humanitarismo", que não pára de proliferar nos "no man's lands" que se estendem entre a política que deixou de sê-lo e a guerra que não é mais guerra. A guerra, dizia-se outrora, é a continuação da política por outros meios. A guerra humanitária é a continuação da supressão da política.
Há duas formas de supressão da política. Há a identificação própria do governo do povo à auto-regulação das populações pelos automatismos da distribuição das riquezas: trata-se da supressão indolor da política que se pratica onde as riquezas o permitem, onde reina o que se chama de consenso. E há a supressão ao alcance dos pobres, supressão violenta que identifica o governo do povo à lei do sangue, da terra e dos ancestrais. O "humanitarismo" é então esse duplo sistema, indissociavelmente militar e assistencial, por meio do qual o consenso dos ricos contém os excessos da guerra dos pobres. Os povos desfeitos, os indivíduos negados são tratados pelo humanitarismo tal como o etnicismo os constituíra, como vítimas, como massa. Que os kosovares ou os bósnios (mas também os sérvios) sejam a um tempo indivíduos tão singulares e diferentes entre si como nós supomos sê-lo, participantes de uma vida intelectual e artística capaz de tanta sofisticação quanto a nossa e atores de uma vida pública marcada por antagonismos análogos, é isso que ele não se preocupa em saber. Há uma lógica de anonimato comum à purificação étnica, à guerra dissuasiva e à assistência humanitária.
Essa lógica é ilustrada pelos chamados "erros de cálculo" que causaram a morte de viajantes sérvios ou de refugiados albaneses, igualmente confundidos com alvos militares. Vistos do avião e do computador, uns e outros, de fato, distinguem-se a custo. Mas o problema não diz respeito às relações entre o real e o virtual. Diz respeito às relações entre duas humanidades, entre duas maneiras de perceber e de contar, por indivíduos ou por massas. A guerra de cunho aéreo é a guerra que pretende não pôr em risco a vida daqueles que a movem. Que nenhuma vida de soldado americano seja posta em perigo. Esse é o contrato implícito que, supostamente, torna a guerra americana nos Bálcãs aceitável para o povo americano.
A obediência a esse contrato, do lado em que as bombas são lançadas, pode provocar alguns erros de cálculo do lado em que elas são recebidas. Mas isso, precisamente, porque o cálculo não é o mesmo: a vida de um militar americano e a de 20 civis, sérvios ou albaneses, não se comparam. A guerra humanitária que "os democratas", como se denominam nossos Estados, movem nos Bálcãs é uma guerra na fronteira de duas humanidades: uma humanidade de indivíduos e uma humanidade de massas. Combater pela humanidade dos kosovares de etnia albanesa contra a desumanidade dos genocidas sérvios é também separar essas duas humanidades. E, desse ponto de vista, a lógica por vezes cega dos bombardeios tem um olhar aguçado: do céu dos indivíduos ocidentais, confundem-se as massas de soldados de Milosevic, os civis sérvios e as colônias de refugiados. Agressor e agredidos estão do mesmo lado (mau) da fronteira: no mundo terrestre de bandos arcaicos, aos quais se opõe o mundo celeste moderno, rico e democrático das populações de indivíduos. Se a guerra aérea da Otan não é de fato uma guerra, isso é porque ela nega aquilo que toda a guerra pressupõe, a existência de um terreno comum às duas partes.
É por isso que os erros de cálculo, os alvos mal identificados não impedem a adesão a essa guerra não-guerra. Eles confirmam, de fato, a geografia imaginária que a sustenta. As bombas temíveis, para essa lógica, não são as que abatem os aviadores americanos. São as que explodem, digamos assim, pelas suas costas, no território de onde eles vêm. Um dia as imagens das vítimas de Kosovo desapareceram das telas da CNN. Outros corpos dilacerados, outras mulheres e crianças aos prantos haviam tomado o seu lugar, vítimas do arsenal caseiro de dois colegiais do Colorado. Dois jovens americanos haviam disparado contra a vida de inúmeros outros americanos, confundindo-os num mesmo grupo de vítimas, em nome de um "hitlerismo" apolítico, assimilado a uma certa sensibilidade, uma certa maneira de vestir, de afirmar sua diferença individual e a identidade de seu pequeno grupo. E isso foi o bastante para lançar pelos ares a geografia imaginária da própria guerra, para apagar a fronteira traçada pelas outras bombas entre um mundo de indivíduos e um mundo de multidões. A fúria assassina de Eric Harris e Dylan Klebold trazia à memória o seguinte fato: entre os gostos que singularizam os indivíduos das sociedades avançadas e as paixões e os sofrimentos das massas étnicas arcaicas, nenhuma guerra, mas também nenhuma cifra do PIB, pode traçar uma fronteira. A única capaz de fazê-lo é talvez essa coisa que se tornou enigmática, cujo nome era política.


Jacques Rancière é filósofo francês, autor de "A Noite dos Proletários" (Companhia das Letras) e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve a cada dois meses na seção "Autores", da Folha.
Tradução de José Marcos Macedo




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