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AUTORES
Uma coisa que se chamava política
JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha
"A Guerra do Golfo não terá lugar", previu no início de 1991 um
intelectual francês. Segundo ele, a
máquina militar de dissuasão obedeceria, dali em diante, à lei genérica de um mundo em que a realidade cederia lugar à simulação.
Em matéria de guerra, assim como
em toda outra matéria, a lógica do
poder consistia em simular os
acontecimentos para impedir que
eles se realizassem. Uma guerra
"real" não poderia eclodir porque contradiria o exercício dissuasivo do poderio militar. Os acontecimentos empíricos pareceram
contradizer essa bela dedução. O
pensador apressou-se em mostrar
que pouco importava: a Guerra do
Golfo, reafirmou, não poderia ter
lugar. E, de fato, ela não teve lugar.
Suas operações não foram decididas senão por cálculos de computadores, e seus efeitos não nos foram transmitidos senão por telas
de televisão. Entre uma tela de
computador e uma tela de televisão, o único espaço em que os
acontecimentos em geral e a guerra em particular podem alojar-se é
nas quatro linhas de uma tela, o
espaço da realidade virtual. O que
não poderia ter lugar não teve lugar senão nas telas da simulação.
Afirmar que o não-ser não pode
ser sempre foi o passatempo favorito dos sofistas. Porém não se deve ter demasiada pressa em imputar esse tipo de raciocínio à incorrigível propensão dos intelectuais
a negar a realidade por amor às
palavras. Os intelectuais são mais
observadores e mais realistas do
que se diz. Eles sabem que as palavras não são o oposto da realidade.
Elas são, ao contrário, o que lhe dá
consistência. Se os sofistas têm hoje tanta facilidade em declarar o
não-ser de qualquer realidade, é
porque, de fato, os artífices dessa
"realidade" a abandonam a eles,
incapazes de dar um nome ao que
fazem. Aqui os computadores e o
mundo virtual são de pouca ajuda.
Hoje ninguém mais se arrisca a dizer que a guerra em Kosovo não
terá, não tem ou não teve lugar.
Mas quem será capaz de dar nome
às operações militares comandadas pela Otan? Intervenção numa
guerra? Que tipo de guerra, afinal?
Não uma guerra externa: as potências aliadas não reconhecem a Kosovo a realidade de uma nação
agredida por outra. Guerra civil,
então? Mas quem poderia outorgar às nações aliadas o mandado
para intervir nos assuntos internos, por mais violentos que sejam,
de uma outra nação? Resta assim
um terceiro tipo de guerra, na qual
os termos antagônicos não são
mais duas nações ou dois partidos
de uma nação, mas a humanidade
e a anti-humanidade.
Em linhas gerais, reteve-se o esquema: a intervenção foi realizada
para segurança da humanidade,
sob a efígie dos albaneses de Kosovo, vítimas de uma empreitada genocida, contra o fautor desse genocídio, a anti-humanidade encarnada por um ditador sanguinário. Entre a anti-humanidade e a
humanidade não há fronteira territorial, não há limite ao direito de
ingerência. Mas a contradição só é
eliminada do princípio da guerra
por ser radicalizada em sua conduta. A guerra movida em nome
de uma humanidade a ser salva é
por definição uma guerra total,
uma guerra inteiramente determinada por seu objetivo de fazer respeitar os direitos da humanidade e
que não reconhece nenhuma limitação quanto aos meios de assegurar tal propósito. Como pensar,
então, uma guerra humanitária
restrita, uma guerra em que os
bombardeios seletivos devem levar o criminoso anti-humanitário
à mesa de negociações, enquanto
o terreno é deixado livre para as
operações de suas tropas, livre para a empreitada de liquidação em
massa do povo representativo da
humanidade ferida em seus direitos? Tudo ocorre como se a guerra
humanitária se cindisse em duas
operações, situadas aquém e além
do território abandonado à purificação étnica: de um lado, operações militares que, a um só tempo,
visam a dissuadir e a punir o mentor do crime; de outro, operações
humanitárias de amparo a centenas de milhares de vítimas do crime.
Essas aparentes contradições levaram alguns a suspeitar de desígnios obscuros ou de transações secretas, ocultas por trás da ostentação humanitária. Mas é possível
que não haja contradição, que haja
uma convergência, mais profunda
e inquietante do que todas as tratativas camufladas, entre a lógica
da purificação étnica e a da guerra
humanitária. Uma e outra têm o
mesmo princípio, a negação da
política. O etnicismo revoga o próprio espaço da política ao identificar o povo à raça e o território de
exercício da cidadania à terra dos
ancestrais. A purificação étnica
não consiste simplesmente em expulsar de um território a etnia indesejável, mas em torná-la um rebanho indiferenciado, negando
tanto a realidade coletiva de um
povo dotado de vida pública
quanto a singularidade dos indivíduos que a compõem. A guerra
humanitária pretende opor a esse
processo de dupla eliminação o
respeito aos direitos humanos.
Mas o ser humano que ela defende
possui traços bem específicos. Ele
tem, precisamente, o rosto do
produto da empreitada purificadora, o rosto da vítima. É o núcleo
dessa estranha configuração, o
"humanitarismo", que não pára
de proliferar nos "no man's
lands" que se estendem entre a
política que deixou de sê-lo e a
guerra que não é mais guerra. A
guerra, dizia-se outrora, é a continuação da política por outros
meios. A guerra humanitária é a
continuação da supressão da política.
Há duas formas de supressão da
política. Há a identificação própria
do governo do povo à auto-regulação das populações pelos automatismos da distribuição das riquezas: trata-se da supressão indolor da política que se pratica onde as riquezas o permitem, onde
reina o que se chama de consenso.
E há a supressão ao alcance dos
pobres, supressão violenta que
identifica o governo do povo à lei
do sangue, da terra e dos ancestrais. O "humanitarismo" é então
esse duplo sistema, indissociavelmente militar e assistencial, por
meio do qual o consenso dos ricos
contém os excessos da guerra dos
pobres. Os povos desfeitos, os indivíduos negados são tratados pelo humanitarismo tal como o etnicismo os constituíra, como vítimas, como massa. Que os kosovares ou os bósnios (mas também os
sérvios) sejam a um tempo indivíduos tão singulares e diferentes
entre si como nós supomos sê-lo,
participantes de uma vida intelectual e artística capaz de tanta sofisticação quanto a nossa e atores de
uma vida pública marcada por antagonismos análogos, é isso que
ele não se preocupa em saber. Há
uma lógica de anonimato comum
à purificação étnica, à guerra dissuasiva e à assistência humanitária.
Essa lógica é ilustrada pelos chamados "erros de cálculo" que
causaram a morte de viajantes sérvios ou de refugiados albaneses,
igualmente confundidos com alvos militares. Vistos do avião e do
computador, uns e outros, de fato,
distinguem-se a custo. Mas o problema não diz respeito às relações
entre o real e o virtual. Diz respeito
às relações entre duas humanidades, entre duas maneiras de perceber e de contar, por indivíduos ou
por massas. A guerra de cunho aéreo é a guerra que pretende não
pôr em risco a vida daqueles que a
movem. Que nenhuma vida de
soldado americano seja posta em
perigo. Esse é o contrato implícito
que, supostamente, torna a guerra
americana nos Bálcãs aceitável para o povo americano.
A obediência a esse contrato, do
lado em que as bombas são lançadas, pode provocar alguns erros
de cálculo do lado em que elas são
recebidas. Mas isso, precisamente,
porque o cálculo não é o mesmo: a
vida de um militar americano e a
de 20 civis, sérvios ou albaneses,
não se comparam. A guerra humanitária que "os democratas",
como se denominam nossos Estados, movem nos Bálcãs é uma
guerra na fronteira de duas humanidades: uma humanidade de indivíduos e uma humanidade de
massas. Combater pela humanidade dos kosovares de etnia albanesa contra a desumanidade dos
genocidas sérvios é também separar essas duas humanidades. E,
desse ponto de vista, a lógica por
vezes cega dos bombardeios tem
um olhar aguçado: do céu dos indivíduos ocidentais, confundem-se as massas de soldados de
Milosevic, os civis sérvios e as colônias de refugiados. Agressor e
agredidos estão do mesmo lado
(mau) da fronteira: no mundo terrestre de bandos arcaicos, aos
quais se opõe o mundo celeste moderno, rico e democrático das populações de indivíduos. Se a guerra aérea da Otan não é de fato uma
guerra, isso é porque ela nega
aquilo que toda a guerra pressupõe, a existência de um terreno comum às duas partes.
É por isso que os erros de cálculo, os alvos mal identificados não
impedem a adesão a essa guerra
não-guerra. Eles confirmam, de
fato, a geografia imaginária que a
sustenta. As bombas temíveis, para essa lógica, não são as que abatem os aviadores americanos. São
as que explodem, digamos assim,
pelas suas costas, no território de
onde eles vêm. Um dia as imagens
das vítimas de Kosovo desapareceram das telas da CNN. Outros
corpos dilacerados, outras mulheres e crianças aos prantos haviam
tomado o seu lugar, vítimas do arsenal caseiro de dois colegiais do
Colorado. Dois jovens americanos
haviam disparado contra a vida de
inúmeros outros americanos,
confundindo-os num mesmo grupo de vítimas, em nome de um
"hitlerismo" apolítico, assimilado a uma certa sensibilidade, uma
certa maneira de vestir, de afirmar
sua diferença individual e a identidade de seu pequeno grupo. E isso
foi o bastante para lançar pelos
ares a geografia imaginária da própria guerra, para apagar a fronteira traçada pelas outras bombas
entre um mundo de indivíduos e
um mundo de multidões. A fúria
assassina de Eric Harris e Dylan
Klebold trazia à memória o seguinte fato: entre os gostos que
singularizam os indivíduos das sociedades avançadas e as paixões e
os sofrimentos das massas étnicas
arcaicas, nenhuma guerra, mas
também nenhuma cifra do PIB,
pode traçar uma fronteira. A única
capaz de fazê-lo é talvez essa coisa
que se tornou enigmática, cujo
nome era política.
Jacques Rancière é filósofo francês, autor de
"A Noite dos Proletários" (Companhia das Letras) e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve a cada dois meses na seção
"Autores", da Folha.
Tradução de José Marcos Macedo
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