São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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Meu filho me fornece drogas, ecstasy, e, se estou destinado a ser relegado à perdição, a queimar no inferno, então essa, me parece, é a primeira razão pela qual o farei


Eu me tornei seu freguês ou comprador -um cliente confiável e regular, o elo mais baixo da cadeia alimentícia do comércio multibilionário que segue adiante todos os dias, todas as horas, em toda grande cidade em cada Estado dos EUA, o comércio daquelas que as pessoas pagas para travar a "guerra" contra elas, assim como as pessoas que as traficam, chamam pelo nome de "substâncias controladas". Na semana passada fui assistir ao filme "Traffic". É um bom filme, se bem que não tão bom quanto os críticos parecem pensar, mas os críticos -como lhes acontece com frequência- não captaram o principal. "Traffic" não é um filme sobre o problema das drogas e o caráter inumano do tráfico de drogas -é um filme sobre a imbecilidade de nossa política de combate às drogas e os males que ela não apenas fomenta, mas também garante que continuem a florescer. Por que isso é tão difícil de compreender? O que nos impede de possuir a humildade de caráter necessária para aceitar as lições aprendidas, a duras penas, com nossas derrotas? Por que fazemos de conta? Será que é realmente necessário citar estatísticas ou solicitar a retórica, tão néscia quanto cansada, dos chamados "especialistas"? Conhecemos a verdade, ou deveríamos conhecê-la: a verdade insiste em revelar-se, a pasta de dentes já saiu do tubo, Roma já se consumiu em fogo há muito tempo, o imperador está nu. Você pode combater a burocracia, mas, por mais que se esforce, não pode reformar ou deter os apetites humanos, não mais do que pode, com um gesto de sua varinha de condão, transformar um gay em heterossexual ou convocar a voz de Deus, para que Ele possa lançar a luz ecumênica de sua onisciência sobre o assunto. O ecstasy foi declarado droga ilegal do tipo 1 -feito pelo qual podemos agradecer ao ícone intelectual que é o senador texano Lloyd Bentsen- em junho de 1985. Isso faz dela, no momento, uma substância tão ilegal quanto a heroína. Em sua desproporção absurda, esse é exatamente o tipo de desvario governamental maluco feito sob medida para que pessoas como eu -e, o que é mais importante, nossos filhos- desprezemos este governo e aqueles que implementam suas leis referentes às drogas, enxergando-o como fora de contato com a realidade, coercitivo, moralmente falido e -sim, acordem, caras! Acordem e sintam o cheiro das papoulas!- antiamericano. Porque a América não é nem foi o país em que é certo atirar adolescentes de 16 anos na cadeia por -no espírito do capitalismo de livre mercado e do empreendedorismo- cultivarem um pouco de "cannabis" em casa, enquanto o resto de nós fica fumando um Camel depois do outro, bebericando nossas vodcas Absolut com uma casquinha de limão e devorando livremente nossos comprimidos de Prozac. Visitem uma clínica de recuperação de drogados algum dia. Em menos de uma hora vocês descobrirão duas coisas. A primeira é que há pessoas neste mundo -algumas delas admiráveis, outras menos ostensivamente admiráveis- que apresentam tendência maior à dependência do que outras; sempre houve e sempre haverá dependentes de drogas. A segunda é que o argumento da "porta de entrada" é tão simplista quanto espúrio. Não estamos perdendo nossos filhos para as drogas. Já perdemos nossos filhos porque não temos o tempo, a inclinação, a força de caráter ou a vontade política necessários para fazer a coisa certa em nome deles: eliminar o mercado negro, que tão impiedosamente os explora, e a violência desbragada que ele suscita, com a legalização, taxação e regulamentação desse comércio.

Comedor experiente
Substâncias "controladas"? Essa, infelizmente, é uma designação errônea, que merece nosso escárnio -mas também deveria provocar nosso choro. Não existe controle. Existe uma burocracia, uma chamada política e algumas leis, e tudo isso é uma farsa e uma cortina de fumaça que não engana ninguém. Existe apenas uma única maneira de "derrotar o flagelo e eliminar a praga", ou seja, de vencer a chamada guerra às drogas -vencê-la de maneira que exista alguma chance, por menor que seja, de que ela continue derrotada-, e essa maneira consiste em duas palavras, palavras essas que são mais americanas do que quaisquer duas outras que eu possa imaginar (com a possível exceção de "Tio Sam"): Wall Street.
Mas quem se importa com o que eu penso? Qualquer pessoa pode pensar qualquer coisa sobre tudo, como todo mundo, inevitavelmente, pensa. E não me considero dono da verdade no que diz respeito ao assunto. Mas sei alguma coisa sobre o ecstasy, possivelmente muita coisa ou, em todo o caso, mais do que a maioria das pessoas e com certeza mais do que a maioria das pessoas de determinada idade -ou seja, uma idade comparável à minha, a meia-idade.
E o que eu sei, sei porque já comi e continuo a comer ecstasy, muito ecstasy. Sou um comedor experiente e sazonado de E -não me atreveria a fazer um palpite quanto à quantidade exata, mas é justo dizer que é grande-, e essa é uma verdade da qual não me orgulho, mas tampouco me envergonho.
Então aqui, resumido em uma única palavra sóbria, solene, até sombria, está o que eu sei: gostoso!
O ecstasy é uma delícia. Ou, para dizê-lo de outra maneira, o ecstasy é uma delícia e eu recomendo em alto e bom som que todos cuja saúde -física e também psicológica- não constitua empecilho ou contra-indicação o ingiram. Jovens ou velhos, homens ou mulheres, ricos ou pobres, gays ou heteros, negros ou brancos, santos ou pecadores, gênios ou idiotas, cristãos, judeus ou muçulmanos, democratas, republicanos ou independentes, legisladores ou foras-da-lei, abaladores de corações ou de almas, sexualmente degenerados ou sexualmente celibatários, toda a coalizão do arco-íris. Estarei sendo propositalmente provocador? É claro que sim -do mesmo modo que estou falando inteiramente a sério.
Saiam às ruas, vocês todos, eu lhes recomendo, procurem aquele rapaz do bairro, fechem um contrato, façam um negócio, vão para suas casas, deixem a iluminação suave e indireta, ponham uma música no som -a melhor música que tiverem-, coloquem um jarro de água gelada a seu lado, possivelmente dois, deixem uma latinha de Altoids ao lado, além de um tubo de inalador Vick Vaporub e alguns cubos de gelo, coloquem-se à vontade, deitem para trás e... engulam.
Só uma coisa: certifiquem-se, antes de engolir, de que o comprimido é autêntico, genuíno, o verdadeiro, e não algum produto falsificado, inócuo ou prejudicial. Façam isso, e o resto, como dizem os entendidos, será fácil, um prazer diferente de qualquer outro que vocês já saborearam. Pensem no melhor dia de sua vida ou recordem a coisa mais doce, mais pura, mais especial que encontraram pelo caminho -o lugar, a pessoa, o momento, a memória, o sentimento, a experiência, a conquista. Lembraram? Agora, multipliquem-no por dez. Isso não vai nem sequer começar a descrever a delícia maluca que é o E.
O ecstasy é um agente que lança luz. Ele limpa o ambiente de tudo o que não está claro, para que possamos viver essa claridade mais imediata e claramente. E não apenas naquele momento.
O efeito bom acaba passando, como acontece com os efeitos de todas as drogas, mas a clareza e a lucidez permanecem. É o resíduo do "roll".
Nesse sentido, sem falar em sua composição química, o ecstasy é o oposto do LSD, que, no auge de sua utilização, vinha envolto em toda espécie de acessórios e conotações religiosos -e é até possível que ainda venha; nunca usei LSD nem sinto nenhum pendor por fazê-lo (e, por falar nisso, não se tem alucinações sob o efeito do E, nem mesmo de leve -ou, pelo menos, isso nunca aconteceu comigo. Tampouco nos tornamos outra pessoa ou nos vemos como se tivéssemos nos transformado em outra pessoa ou coisa. Continuamos sem dúvida nenhuma sendo nós mesmos, só que imensa e profundamente mais nós mesmos). O ecstasy não guarda relação nenhuma com religião, exceto para deixar claro a seu usuário que essa religião -a busca por algo mais, ou mais elevado, o significado de Deus e da existência, o milagre da fé, chame-o como você quiser- , embora compreensível (muita coisa se torna compreensível sob o efeito do E, muito mais do que é compreensível sem esse efeito), é em sua maior parte bobagem. Não há necessidade de buscar, não mais, pois aquilo que é buscado está aqui mesmo, aqui e agora: o nascimento de um estado de ser melhor. O ecstasy é esclarecedor, mas é um esclarecedor pessoal. Apesar de todo o "hype" de paz/amor/união/respeito que o cerca, não é um esclarecedor universal. As lições que nos ensina podem ser universais em suas implicações, mas se destinam a ser aplicadas a nós mesmos, não a ser divididas com nossos vizinhos, amigos, colegas ou comunidades. O que não significa que a droga não possua suas dimensões sociais nem que não devamos usá-la na companhia de outros. Na verdade, eu não acharia agradável tomá-la sozinho e nunca o fiz (o mais perto que já cheguei disso foi numa rua lateral vazia no centro de Londres, à noite, e estava chovendo, e foi uma das experiências memoráveis de minha vida -néon, reluzente, mentolada, revestida em camada após camada, cada vez mais espessa, de mel espesso. Lindas ruas, Londres, e linda, tão linda, sua chuva). Mas é muito melhor, de longe, tomá-la com aqueles a quem amamos, e o melhor de tudo é fazê-lo com nossa amante, a única e especial. O problema é que é preciso fazê-lo pessoalmente para realmente entender o que é. Ouvir as histórias e anedotas de outros ou as lições que eles podem ter tirado da experiência, ler um artigo como este, com certeza não faz mal nenhum, mas todo o mundo tira do E algo diferente, algo tão singular e idiossincraticamente diferente quanto a pessoa que o tira. E, se o que se tira é, no sentido mais amplo, algo que diz respeito à conexão e empatia humanas -o E já comprovou ser altamente eficaz em determinados tipos de terapia de casais-, diz respeito mais ainda a conectar-se e sentir empatia com nós mesmos. Contrariamente à sua imagem atual, a droga do momento entre adolescentes -e sua presença em seus ritos de dança tribais, que duram a noite toda e lembram as festas de Baco (ou seja, as raves)- é a mais íntima das drogas. Eu a tomei pela primeira vez na companhia da mulher que me salvou. Foi a primeira vez dela também. Nenhum de nós dois usara ou sequer experimentara drogas ilegais -normalmente, nos limitávamos ao vinho, cerveja e cigarros, e mesmo estes com moderação-, e, quando a hora zero se aproximou, estávamos visivelmente apreensivos, uma atitude que, creio eu, é saudável, além de sã. Talvez -quem sabe?- ela tenha até mesmo exagerado o impacto do que estava prestes a acontecer. Tínhamos deixado nosso tempo livre para isso, desligamos os telefones e estávamos na casa dela, só nós dois, usando robes, no sofá da sala -um sofá que, não será descabido dizer, já conhecíamos intimamente. No estéreo, ouvíamos Van Morrisson -"Astral Weeks", "Moondance", "Common One", "The Best of - Volume One". A lareira estava acesa, e nós alimentávamos o fogo. O abajur sobre a mesinha de canto lançava uma luz suave. A noite estava pela metade, e, seguindo as instruções que meu filho tomara o cuidado de nos dar, tínhamos ao nosso lado, prontos, nossos jarros de água gelada, nossos copos. O E aumenta a temperatura do corpo e o ritmo cardíaco, além de elevar a pressão sanguínea, de modo que tomar água -não cerveja, não bebidas alcoólicas- é de praxe à medida que se vive o "roll". E sentimos necessidade de beber, porque o E provoca desidratação -um de seus efeitos colaterais mais imediatos é a boca seca (é interessante, porque o que ele faz com nossas emoções é o exato oposto: as lubrifica, emulsifica, mexe com nossos sentimentos como se fossem gel, manteiga ou loção).

O mundo se abre
Assim, com um bate-papo inconsequente mutuamente nervoso, cerimonial, serio-cômico, cada um engoliu seu comprimido, esperou -e nada. Olhamos nos olhos um do outro. Ainda estávamos vivos.
Normalmente leva algum tempo para o ecstasy fazer efeito. Trinta e cinco minutos é pouco; o dobro disso. Depende -do comprimido, mas, principalmente, do conteúdo de seu estômago (é melhor que esteja vazio do que cheio), de seu estado de ânimo (para cima é melhor do que para baixo), de seu estado físico e mental (alerta é melhor do que exausto).
Assim, na primeira vez, você fica sentado e se indaga, exatamente porque tem o tempo necessário para fazê-lo, se o que vai acontecer realmente vai acontecer, e, se o fizer, exatamente quando isso pode acontecer, e como você saberá. E, quando acontece, começa o "roll" -o mundo à sua volta se abre, como um olho- e você pára de se indagar sobre tudo isso. Você pisa numa moeda e parte ou, melhor dizendo, é erguido e levado -coroado, iluminado por lanternas, enfeitado com paetês, seu rosto sorridente iluminado como mil candelabros.
Um dos primeiros efeitos mais perceptíveis -aconteceu naquela primeira vez, mas com frequência não acontece, já que é função da composição química do comprimido- é o que já ouvi ser descrito como visão trêmula. Esse fenômeno é o mais próximo de um efeito alucinógeno que o E produz, e é tão leve -tão estranhamente agradável- que rotulá-lo assim seria, francamente, inexato. Quando aconteceu conosco, percebemos imediatamente -ou seja, soubemos imediatamente que alguma coisa estava acontecendo, algo... extra-, e olhamos um para o outro, sorrimos e comentamos o efeito, virtualmente em uníssono. Segundo me recordo -lembre-se que ambos tínhamos 50 anos de idade-, nós o achamos "cool".
É um pouco difícil de descrever. Sua visão não perde a nitidez, e as imagens não ficam mais claras ou escuras, não se expandem ou contraem, não batem como um pulso, não se fragmentam nem desintegram nem mudam de cor, mas se tornam um pouco agitadas -acho que esse é o termo mais exato-, agitadas, mas não picadas. Ou seja, continuam intactas e paradas -um abajur continua a ser um abajur, uma janela ainda é uma janela, a lareira ainda é a lareira-, só que se movimentam um pouquinho dentro da textura de suas próprias linhas. Nada ameaçador, e muito -bem- "cool" (legal, bacana, massa, como você quiser). Certamente há alguma explicação médica para isso, possivelmente até exista um nome, mas não o conheço e pretendo continuar sem conhecer.
Seja como for, de repente o mundo ficou livre de culpas, preocupações e rugas, palpável e lindamente alegre -visual, textual, auricularmente-, transcendentemente certo e renovado, cativante e belíssimo, sublime, glorioso, divino (às vezes as palavras são coisas mesquinhas, tão pequenas), muito mais tudo isso do que eu jamais sonhara ser possível. Ou talvez eu tivesse imaginado que fosse possível, e talvez isso seja parte do que é importante: que seja qual for a coisa bela que você puder imaginar ou já imaginou, ela ficará muito mais bela quando estiver sob o efeito do E.
Assim, olhamos um para o outro e nos sentimos, com os dedos, os lábios e as línguas, na realidade, com nossos rostos recém-descobertos inteiros, esse conhecer do novo mapa de nossos corpos -cabelos novos, mais macios, pele nova, mais lisa, genitália nova, mais rosada, mais fresca, mais perfumada, reluzente, mais fofinha (fofinha é exatamente o termo certo), e nos cheiramos e saboreamos um ao outro: ela tinha cheiro de pêssegos abertos e gosto dos sais recentes de pérolas-, porque nosso sentido de olfato e gosto é tão aumentado e intensificado pelo ecstasy, tão burilado e fortalecido, quanto os outros.
Ou seja, nos banhamos um no outro, cada um de nossos cinco sentidos, os dez ao todo, porque esse misturar conjunto é o que acontecera, sua rapsódia, sua humanidade, sua carícia. E, assim como o mundo inclui a nós mesmos, e como naquele momento incluía a minha amante, nós aparecíamos, um para o outro, exatamente como nos sentíamos, como cheirávamos e como era nosso sabor: paradisíacos, transcendentes, luminosos, brilhantes. Ela, uma deusa resplandecente, repleta de jóias; eu, um deus radiante. "Seus olhos se abriram sobre a alma um do outro", escreveu Don DeLillo, certa vez, falando de uma experiência semelhante, o "fluxo do tempo". Resumindo tudo, foi assim mesmo.
Mais tarde, como se ainda estivesse na metade do riacho, eu me levantei, andei até o banheiro -andar, quando se tomou E, não é mais difícil do que andar na água ou flutuar no ar- e me olhei no espelho. Eu queria saber como era minha aparência -sou suficientemente vaidoso para que a idéia me viesse à cabeça, mesmo em meio ao "roll"-, embora eu já tivesse visto, refletido nos olhos de minha amante, que eu estava suficientemente -não há outra palavra para dizê-lo- maravilhoso. E a pessoa que vi no espelho, olhando para mim, era maravilhosa, sim, mas maravilhosa de uma maneira que me deixou quase tão perplexo quanto instigado.
Como já mencionei acima, tenho quase 50 anos de idade, mas aqui, agora, enquanto me olho, rindo, espantado, eu estava parecendo alguém de 28.
E não uma versão de mim mesmo aos 28, mas com aparência de 50, e sim eu como eu era naquela época, com 28 anos. Cheguei mais perto, olhei melhor. Eu mal conseguia acreditar. Eu tinha recapturado a mim mesmo. Dorian Gray. A fonte da juventude. O néctar dos deuses. A regeneração espontânea. Metempsicose. De alguma maneira, eu tinha sido restaurado -e senti o que só posso descrever como uma saudade avassaladora do presente. Não foi uma experiência de saída do corpo nem tampouco de expansão da mente. Foi, sem sombra de dúvida, uma experiência de entrar mais fundo no corpo e de clarear a mente. Uma experiência impenetravelmente penetrante. Uma escavação do eu. Uma exumação do outro. Porque é assim que se encontra ouro -se exuma o ouro, se escava fundo, cada vez mais fundo. Portanto, retiro o que eu disse. Talvez o ecstasy tenha, sim, algo a ver com religião, embora a palavra "espírito" me pareça mais apropriada, porque a paz que você sente e os insights que ganha -epifanias talvez fossem um termo melhor- são nada menos do que oceânicos. São tão fortes quanto marés, são católicas. Depois disso, você percebe que contém oceanos, oceanos de cuja existência você, antes, tinha apenas um indício muito leve, e que esses oceanos são repletos de beleza, graça, luz e amor -mais palavras, palavras falidas- e que são seus, seus para compartilhar para seu maior agrado e deleite.

Terça-feira negra
A verdade pura e simples é que, quando você come ecstasy, está propositalmente mexendo com sua mente ou, para ser mais preciso, seu cérebro ou, para ser ainda mais preciso, sua química cerebral. Você está se soltando de uma só vez, como uma enxurrada ou monções -e essa enxurrada é antinatural, antinatural no sentido de que, se Deus tivesse tido a intenção de que você a sentisse, não seria necessário um bando de "cozinheiros" de avental branco, em algum laboratório clandestino em algum lugar na Holanda, na França ou em Israel, para desenhar e produzir o comprimido sob medida para você fazê-lo; nem a distribuição e entrega desses comprimidos seria tão fartamente benéfica à Máfia-, você está, conforme eu dizia, desencadeando um verdadeiro maremoto de serotonina, o combustível do prazer no corpo humano, que, por sua vez, transforma tudo em "ouro" ou, melhor dizendo, deixa tudo dourado (existe -sempre existe- uma explicação fisiológica exata do fenômeno, dos circuitos anatômicos e dos caminhos neurológicos envolvidos, e eu não tenho nenhum interesse em conhecê-lo. Para que desmistificar algo que, em sua soma, mesmo que não em suas partes, é tão místico?).
E, na esteira dessa onda -talvez não no dia seguinte, quando você ainda fica se aquecendo no brilho que restou (embora esse brilho frequentemente seja comprometido por um desconforto no pescoço, ombros e costas, um queimar profundo e submuscular), mas no dia seguinte a esse ou no sucessivo, algo que já ouvi descrito como a "terça-feira negra" -quando você corre o risco não apenas de desabar emocionalmente, mas de sentir-se tão exaurido-, você sente a tentação de jurar: "Nunca me senti tão horrível na vida, tão vazio, oco, chato, sem alma, perdido, amputado, num abscesso, tão emocionalmente exaurido e nunca farei isso de novo".
E de pensar: "O que diabos eu estava pensando?". O conselho que tenho a oferecer é o seguinte: aguarde no mínimo quatro semanas antes de repetir a experiência. É o tempo que seria, ao que consta, necessário para as reservas de serotonina de uma pessoa se refazerem, para seus pensamentos e sentimentos voltarem ao funcionamento normal. Se fizer mais frequentemente do que isso, se se tornar muito guloso, o resultado será o "E-tardismo" -a redução ou o refrear dos efeitos da droga, sem falar nos possíveis danos, a longo prazo, à grade neural da serotonina no cérebro, danos do tipo que podem deixar você tão confuso que você sentirá que é um desafio em tempo integral simplesmente impedir-se de babar, sem falar em recordar que as palavras são compostas de letras e que cada uma delas representa um som real, feito para ser pronunciado em voz alta. Portanto: moderação em todas as coisas, mesmo aquelas que são excessivamente restauradoras, pois às vezes as curas matam, sim.
Mas aqui está a charada da qual não podemos fugir ou da qual pelo menos eu não pude: o que pensamos -se é que paramos para pensar sobre isso- é exatamente: "O que é uma mente, senão algo feito para ser submetido a confusões? O que é a consciência, senão um estado a ser alterado?". Digo isso seriamente, literalmente, e, se a substituição da frase "submetido a confusões" pelos termos "esclarecido", "purificado", "alquimizado", "beatificado" ou "embelezado" ajudar, então talvez se tenha compreendido o que quero dizer. A mente é uma coisa terrível de desperdiçar, e muita coisa é desperdiçada quando se opta propositalmente por não explorar o êxtase de seus horizontes mais profundos.
"Todo mundo está fazendo o melhor que pode para impedir que as trevas/ Subam por suas costas", escreve Charlie Smith em sua nova e brilhante coletânea de poemas, "Heroin" [ed. W.W. Norton, EUA". "A vida deveria ser êxtase", disse Allen Ginsberg a um entrevistador, antes de morrer. Talvez haja pessoas que sentem que esse êxtase, por ser "antinatural", artificialmente induzido, quimicamente induzido, não pode ser "existencialmente autêntico" e só pode, portanto, ser uma fraude, uma mentira que jamais poderá se sustentar.
Talvez haja aqueles que desconfiam de que a disparidade é grande demais; que, tendo sentido tal êxtase, elas achariam assustador demais suportar os rigores e as asperezas do mundo mundano, prosaico, em grande medida corrupto e repulsivo. Talvez haja aquelas para as quais esse êxtase não pode ser conciliado com suas pautas religiosas, políticas, filosóficas ou domésticas, que ele ameaça ou viola a própria essência daquilo de que eles estão tão plenamente investidos. Talvez haja quem tema ser obrigado a pagar a conta física ou emocional de tudo isso ou mesmo tornar-se psicologicamente dependente. E talvez haja quem, simplesmente e sem pedir desculpas por isso, tem medo. Medo da beleza, medo da alegria.

Vitórias menores
Existem pessoas assim, e elas são a maioria, quase todas as pessoas, e têm todo o direito de defender seus sentimentos e crenças, seus valores e convicções. Afinal, são apenas a soma de vidas inimagináveis para qualquer um de nós, menos para aqueles que as viveram de maneira honrada. Sei disso porque, durante a maior parte de minha vida, eu mesmo fui uma pessoa assim.
Não sou mais, não me incluo mais entre essas pessoas. Não me incluo mais em nada. Por mais chavão que isso possa soar, sou simplesmente eu mesmo, e aqui, recentemente, isso é mais do que suficiente. É muito.
E existe algo mais, um segredo: há momentos, uma vez por mês -às vezes mais, às vezes menos-, em que a verdade de tudo isso me deixa, para falar sem rodeios, extático.
Meu filho? Ele está com 19 anos e, em seu tempo livre -tendo se livrado do hábito do ecstasy há alguns meses-, faz misturas em raves.
Ele vai começar, em breve, a fazer uma faculdade, uma faculdade bastante conceituada, estudando psicologia. E está escrevendo poesia outra vez. Poesia brilhante, mais brilhante do que nunca. Esse endireitar de seu navio, encontrando o norte de seu rumo.
Vitórias menores, quem sabe. Mesmo assim, nos induzem à reflexão. Teria ele conseguido voltar intacto sem o E? Teria ele chegado àquilo que todos nós merecemos, mas que tão poucos conseguimos encontrar -sua chance de encontrar a felicidade? E isso nos leva a refletir, também, sobre o que se diz, você sabe: é melhor viver pela química.

A íntegra deste texto foi publicada na revista inglesa "Granta".
Tradução de Clara Allain.


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