São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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CONFISSÕES DE UM COMEDOR DE ECSTASY DE MEIA-IDADE

Reprodução
Série fotográfica de início dos anos 30 de Kurtz Kranz



O Mais! traz com exclusividade relato publicado na revista inglesa "Granta" em que um escritor, que não quis se identificar, descreve de modo realista e apologético sua experiência com as drogas


Mario Sergio Conti
da Sucursal do Rio

A revista inglesa "Granta" publicou no ano passado, na sua edição de verão, um artigo inusitado e estranho, intitulado "Confissões de um Comedor de Ecstasy de Meia-Idade". Inusitado porque pela primeira vez a revista estampava na capa um artigo com a assinatura "Anônimo". E estranho porque o seu autor, que se apresenta como um jornalista e escritor beirando os 50 anos, relata suas experiências com ecstasy e faz uma defesa veemente da droga, recomendando-a a todas as pessoas com boa saúde e equilíbrio emocional.
No título, nas sentenças compridas e intrincadas dos primeiros parágrafos, na estrutura do texto, o artigo do Anônimo se refere -e do qual às vezes copia literalmente frases inteiras- a um clássico da literatura sobre drogas: as "Confissões de um Comedor de Ópio Inglês", que o escritor Thomas de Quincey (1785-1859) publicou em 1821.
O livro de Thomas de Quincey e o artigo de Anônimo têm outros pontos em comum, além do relato da experiência com uma droga. Ambos são autobiográficos, cândidos e relatam quedas em infernos existenciais.
Mas há pontos decisivos que separam os textos. No início do século 19, o ópio era um remédio legal na Inglaterra, e de Quincey começou a tomá-lo para combater dores de dente e ficou viciado na droga. O ecstasy, droga sintética cujo nome farmacêutico é Methylenedioxymathanfetamina, que tem defensores de suas propriedades terapêuticas (foi usado em casos graves de depressão), é ilegal em todo o mundo.
Além disso, o livro de Thomas de Quincey, dez vezes mais longo que o artigo de Anônimo, está entre as obras-primas da literatura de auto-análise. Ele poderia figurar ao lado das "Confissões" de Santo Agostinho e Jean-Jacques Rousseau. Nas suas descrições de alucinações e investigação de sonhos, De Quincey antecipa em quase 80 anos o que está escrito em "A Interpretação dos Sonhos", de Freud, que aliás, também fez experiências com drogas, no caso, cocaína.
Na lista com informações sobre os colaboradores de "Granta", no número que publicou as "Confissões", a revista registrou: "Anônimo é anônimo, mas não o Anônimo que escreveu "Cores Primárias", que não é mais anônimo". É uma alusão ao jornalista americano Joe Klein, que usou a assinatura "Anônimo" para identificar o autor do romance "à clef" "Cores Primárias" (publicado no Brasil pela Cia. da Letras), no qual satirizou a campanha de Bill Clinton em 1992.
Durante anos, especulou-se na imprensa americana quem seria o verdadeiro autor do romance. No início de 1996, num artigo na revista "New York", o professor de literatura inglesa Don Foster, da Universidade Vassar, defendeu que Joe Klein, então repórter e colunista da "Newsweek", era o autor de "Cores Primárias". Usando programas de computador, Foster identificou uma série de construções sintáticas, termos e palavras compostas comuns ao jornalista e ao Anônimo. Klein negou peremptoriamente a autoria do livro e, como lembrou Foster depois, durante oito meses sua "reputação ficou na sarjeta". Em julho daquele ano, um repórter do "Washington Post" encontrou num sebo as provas corrigidas, com a caligrafia de Joe Klein, de "Cores Primárias". Só quando o jornal publicou a reportagem Klein finalmente admitiu que escrevera o romance.
As "Confissões de um Comedor de Ecstasy de Meia-Idade", do outro Anônimo, também provocaram espécie. Em primeiro lugar pela revista na qual foram publicadas. "Granta" é talvez a publicação cultural mais prestigiada no mundo anglo-saxão. Ela foi refundada, como uma revista de "nova escrita", em 1976, mas é a reencarnação de uma publicação estudantil do mesmo nome, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, que existe desde 1889 ("Granta" é o nome latino do rio que atravessa Cambridge). A revista é quadrimensal, vende em média 70 mil exemplares por edição, e nela escrevem habitualmente Salman Rushdie, Milan Kundera, Martin Amis, Doris Lessing e Gabriel García Márquez. Seu proprietário, Rea S. Hederman, é também dono de outra instituição da imprensa cultural, o "New York Review of Books".
"Granta" publica mais não-ficção do que ficção. Dá preferência a reportagens, memórias, relatos de viagem, textos históricos e sobre política. Não publica poesias, resenhas nem ensaios literários. "Ainda que não tenhamos um manifesto a respeito do assunto, nosso interesse primordial e tradição vão no sentido de publicar narrativas realistas", disse ao Mais! o jornalista Ian Jack, editor da revista desde 1995.
Ian Jack reconhece que as "Confissões de um Comedor de Ecstasy de Meia-Idade" destoam dos padrões habituais da "Granta". "O artigo me intrigou e gostei de algo, não tudo, de sua prosa, talvez florida e experimental demais", diz Ian Jack. "Mas, até onde posso garantir, e fiz uma apuração sobre o autor, falando com ele e seu agente, o relato é verdadeiro, e esse é o seu encanto definitivo. Se fosse ficção, não o teria publicado."
O fato de Anônimo ser um cinquentão também pesou em favor da publicação das "Confissões", já que o ecstasy é uma droga tomada por jovens. O mesmo vale para o anonimato. "A necessidade do autor em permanecer anônimo era genuína", diz o editor da "Granta". "E acho que, se o artigo fosse assinado pelo próprio autor, ele não teria tanto apelo."
Mais de 90% das cartas recebidas pela redação da "Granta" sobre as "Confissões" foram negativas. Elas atacaram tanto Anônimo como a decisão da revista em publicá-las.
Houve também especulações, em salas de bate-papo na internet, acerca da verdadeira identidade do autor, mas nenhuma delas parece factível. O que se sabe de concreto é que seu agente é Andrew Wylie, o que não ajuda muito, pois a empresa dele é uma das maiores do mundo, tem mais de 400 clientes e cuida de escritores tão díspares como Susan Sontag, Philip Roth, Saul Bellow e Arthur Schlesinger Jr, além das obras de Jorge Luis Borges e Italo Calvino. Pela entrevista que Anônimo deu ao Mais! (leia na pág. 13), será difícil descobrir a sua identidade, ao menos a médio prazo. Ele diz que seu relato é absolutamente verdadeiro, mas que os detalhes pessoais são conhecidos de poucas pessoas, nenhuma delas leitora da "Granta".


Isto não é uma auto-acusação nem confissão de culpa nem tampouco equivale a uma expressão de soberba


por Anônimo

Ao leitor: apresento a você um registro de um período notável em minha vida. Confio e espero que ele possa mostrar-se não apenas interessante, mas, em grau considerável, útil e instrutivo. É com essa esperança em mente que me dei ao trabalho de redigi-lo, embora, ao mesmo tempo, eu me sinta obrigado a pedir desculpas de antemão por violar essa reserva delicada e honrosa que, até muito recentemente -quando determinados editores tomaram consciência de que parece existir um público aparentemente ilimitado para tal violação, ou seja, um público que está pronto para ser colhido (e violado)-, me impediu de expor publicamente meus próprios erros, minhas próprias fraquezas.
O que me deixa não menos relutante em fazê-lo, pois, embora existam muitos aos quais agradaria contestá-lo em voz alta -eles não me conhecem suficientemente bem ou, então, conhecem bem demais apenas uma certa parte minha-, sou, no íntimo, um homem tímido. De fato, tanta consciência tenho das repreensões profissionais e humilhações públicas que tal revelação necessariamente suscitaria que há meses venho resistindo à instigação vinda de certos setores para que eu permita que qualquer parte de minha narrativa venha a público. E não é sem enorme ansiedade nem sem muitas noites insones que finalmente tomei a decisão de fazê-lo, por mais que me sinta obrigado a permanecer anônimo quando o faço.
Compreendam: isto não é uma auto-acusação nem constitui uma confissão de culpa, como tampouco equivale a uma expressão de soberba. Não sinto culpa nenhuma. Sei que é verdade, pois sou tão sensível à culpa (assim como à vergonha e ao auto-repúdio) quanto à mania de grandeza e, neste caso, não sinto nenhum vestígio ou ponta discernível de qualquer um dos dois. No que diz respeito ao que virá a seguir, tais sentimentos são inteiramente irrelevantes.
Isso dito, não sou, graças a Deus, Thomas de Quincey (nem Coleridge, Baudelaire, Cocteau, Huxley, Paul Bowles, Carlos Castañeda, William Burroughs, Ken Kesey ou Hunter S. Thompson, para citar apenas alguns dos mais usuais dos suspeitos usuais), e os danos irreparáveis que a revelação de minha identidade inevitavelmente causaria, não apenas à minha reputação profissional mas também àqueles a quem amo e com quem me preocupo profundamente, simplesmente não são compatíveis com os benefícios que poderiam me advir de tal revelação. Quem sabe algum dia, quando todos nós estivermos mais -como direi- adultos?
Suficientemente adultos, pelo menos, para tratarmos o assunto em pauta com menos histeria e em tom menos apocalíptico. Por enquanto, porém -e infelizmente-, não. Se não abro os braços à possibilidade de ser censurado, tampouco tenho sede de loas; logo, por enquanto, me contento -sou obrigado a me contentar- em ocultar-me por trás da máscara do covarde.
Aproximo-me rapidamente -sinto a tentação de dizer "rapidamente demais", exceto pelo fato de que isso nunca deixa de me parecer o mais improvável dos milagres- do meu 50º ano de vida, e a maior parte de minha vida adulta foi vivida, até agora, tranquilamente do lado direito da lei, primeiro como jornalista, depois como romancista, poeta em prosa e ensaísta.
Hoje sou, ou pelo menos é o que me parece, aquilo que há tanto tempo aspirei a ser: um homem letrado.
Desde que nasci, sempre fui (me parece hoje) uma criatura em primeiro lugar intelectual -emergi do útero (a acreditar em minha mãe, e como eu ousaria não fazê-lo?) com o cenho franzido e o rosto fechado numa expressão da mais singular concentração e perplexidade: "Onde diabos estou, por que estou aqui, o que exatamente está acontecendo por aqui e qual é, rogo que me digam, a razão de tudo isso, se é que existe uma, o que me parece ser cada vez mais improvável?". E não me surpreende que o indagasse, já que são perguntas com as quais ainda me confronto e para as quais ainda não encontrei respostas adequadas. Assim, intelectuais, no mais elevado sentido do termo, sempre foram meus prazeres e minhas ocupações, mesmo em minha época de colegial.
Sei muito pouco como certeza imanente, mas disto estou certo (não é preciso ser [o físico" Stephen Hawking para compreender uma verdade tão evidente): nada supera a vida da mente, essa que, como tão bem observou William Gass, "é a única garra que o homem possui". Assim, se comer ecstasy é em grande medida um prazer sensual -logo, que não é da mente- e se, como confesso desde já, eu me entreguei a ele em excesso, não é menos verdade que me esforcei para compreender meu hábito, embora não o tenha feito, até agora, com o zelo religioso necessário para libertar-me inteiramente dele.
Mas talvez eu não queira libertar-me dele, não realmente ou não o suficiente. E essa é apenas uma das muitas lições que o ecstasy tem por hábito incutir a quem se disponha a recebê-las: que os primeiros princípios -da vida, do amor, de Deus, da beleza- se fragmentam, e que não cabe a nós procurar compreender como podemos voltar a juntá-los, mas apenas fazer o que é preciso para nos segurarmos na sela, custe o que custar, cavalgar a tempestade e, na medida em que o consigamos, obter um pouco de deleite em fazê-lo. Qualquer outra coisa não apenas é pura perda de tempo, mas também um exercício de auto-engano, engano e vaidade da mais grosseira e avassaladora. O êxtase -e não me refiro unicamente à droga- nunca foi feito para ser racionalizado.
A ordem, mesmo a ordem criativamente ordenada, talvez especialmente a ordem criativamente ordenada -aquela que intelectuais como eu nos comprazemos em batizar de Arte (e como fazemos questão de nos parabenizar solenemente por esse A maiúsculo!)-, é impotente para combater o caos, porque esse caos reside não apenas ali fora, no mundo "real", mas também dentro de cada um de nós.
Ele é o companheiro inseparável da dupla hélice, o estado anárquico de nossa alma coletiva, e seu único contrapeso, seu único antídoto eficaz, é a morte. Contra a qual, receio dizer, não há vacina -pelo menos não por enquanto (se bem que, se a ciência é capaz de criar êxtase para nós, pode a imortalidade estar muito longe?).
Já me perguntaram, ocasionalmente, como tive meu primeiro acesso a ele, ou seja, como me tornei um comedor habitual de ecstasy. Parte-se, imagino, da premissa de que eu buscava uma emoção barata (já cheguei a pagar apenas US$ 10 por pílula comprando "no atacado" e raramente mais de US$ 25) e efêmera, que procurava um estado temporário de excitação prazerosa, embora totalmente artificial. E, num primeiro momento, talvez o estivesse. Eu estava ciente da fama que possui o ecstasy de ser a "droga do amor", já o ouvira -já não me recordo exatamente onde- sendo descrito como "o orgasmo de corpo inteiro, por quatro horas", já lera o seminal artigo de Sean Elder, "On Ecstasy", de 1986, e tudo isso eu achara o quê? Intrigante, sedutor, atraente? Bem, eu o achara digno de pesquisa adicional.
É surpreendente, porque, normalmente, eu não teria me dado ao trabalho de prestar a menor atenção a tudo isso. Mesmo na faculdade, nos momentos melhores daqueles anos repletos de emoções -no meu caso, entre


Minha adesão ao ecstasy ultrapassa o âmbito de uma simples procura por emoções fortes; eu estava indo para o brejo, um brejo sem Sol, frio e sombrio


1969 e 1976-, eu não era usuário, crônico, casual ou de nenhum outro tipo. Apesar de viver num ambiente em que realizar experimentos com substâncias ilegais era culturalmente aceito como pouco mais do que uma forma alternativa de recreação -na verdade, em que fumar maconha e usar ácido (embora não cheirar pó ou injetar-se heroína) eram não apenas aceitos benevolamente mas até mesmo bem-vistos, optei deliberadamente por não me dar esse prazer (OK, houve uma vez. Tomei bolinha. Eu tinha perdido muito chão numa matéria e enfrentava a necessidade de varar a noite estudando. Engoli a pílula inteira -era conhecida como "cruz branca", recordo-me, sem nenhuma razão- e fiquei acordado pelas 48 horas seguintes, cada um de meus sentidos em estado de alerta vermelho, meu coração batendo como tambor em meus ouvidos, meus olhos parecendo literalmente suar, o mundo batendo sentido. Vi tigres por toda a parte e ouvi o uivar incessante de sirenes. Fiquei sabendo, mais tarde, que deveria ter ingerido apenas metade do comprimido. Nunca repeti o feito). E isso, conforme não deveria deixar de assinalar com certa dose de humildade, exigiu autodisciplina em grau nada desprezível, assim como força de vontade considerável. A droga estava por toda a parte; parecia, por vezes, estar na própria água, no ar, e era usada por todos -incluindo meus amigos (meu amigo mais íntimo era um músico de jazz -calcule só!), várias namoradas e a maioria dos meus professores, como eles próprios se compraziam em anunciar publicamente. Com a exceção de mim. Eu não a usava. E isso não tinha nada a ver com sentimentos de superioridade ou intolerância (por mais constantemente que eu repudiasse os hedonistas) nem com o repúdio às convenções contraculturais ou, menos ainda, com a moral, a política ou a religião. Tinha a ver unicamente com o medo. Assim, não surpreende que os poucos escolhidos a dedo que têm conhecimento de meu hábito atual tenham observado -não tanto em tom chocado, quanto incrédulo- que eu seria "a última pessoa" que eles teriam imaginado que pudesse cair vítima disso. Sim. E também não. Pois, embora eu não possa jurar de pé junto sobre isso, acredito que minha adesão ao ecstasy -ou a dele a mim- ultrapassa o âmbito de uma simples procura por emoções fortes. Acredito que ela guarde relação com o centro de minha vida na época, uma vida que, para empregar uma frase coloquial, estava uma m... Eu estava indo para o brejo, um brejo sem Sol, frio e sombrio.

Rimbaud embrionário
É difícil falar sobre isso, mesmo agora. Todos nós temos nossos relatos de guerra. O meu é apenas mais um, empilhado entre os resquícios dos outros. Não me considero digno de reivindicar para ele algum status exaltado ou especial. Não tenho nenhum desejo de exaltar algo que não merece ser exaltado e, muito menos, esteticizá-lo. Se o êxtase não deve ser intelectualizado, o sofrimento tampouco deve ser transformado em fenômeno, especialmente quando não é de ordem superior ao de qualquer outra pessoa. Se é especial, se é diferente, de alguma maneira, é apenas por ser meu e de mais ninguém. Foi um período de devastação pessoal.
Começou com meu único filho -na época, era meu melhor amigo e, de tempos em tempos, ainda o é-, e eu não percebi o que vinha pela frente (não que estivesse atento -eu esperava uma bola rápida, mas não a curva que acabou se apresentando). O que vinha culminou no ecstasy, e não consigo visualizar como poderia terminar. Ele era belo, sensível -talvez sensível demais, mais do que eu soubesse ou de que ele tinha o direito de ser, essa membrana permeável- e extraordinariamente talentoso, talentoso a ponto de, aos 13 anos de idade, sua poesia ter chamado a atenção de professores universitários e editores de livros de Nova York.
Um Rimbaud em fase embrionária. Assim, quando começou a destruir a si mesmo, levou sua mãe e seu pai juntos. Não foi nem é sua culpa.
Ele tinha 13 anos e não possuía nem a capacidade nem o contexto para compreender o que estava fazendo. Era refém de problemas seus, problemas que não conseguia formular em palavras, não mais do que cães conseguem fazer divisões complexas, árvores conseguem dar cambalhotas ou trovejar sentenças -problemas que, se pudesse, ele teria negado redondamente. E, se tivesse sido capaz de saber a dor e o sofrimento que seu comportamento estava causando às duas pessoas que mais o amavam no mundo, ele não teria se importado. Não possuía, na época, os meios para isso.
Sempre se pode ser mais específico, descrever mais, sempre se pode concretizar a experiência. A única questão em jogo é a de saber quão detalhados, quão concretos, quão descritivamente específicos queremos ser. Portanto, direi sem rodeios: ele tentou o suicídio (os detalhes não são importantes; o próprio demônio está neles). Ele fugiu de casa repetidas vezes. Comprou uma arma de fogo de um amigo. Ele roubava, às vezes de lojas, mais frequentemente de seus pais, normalmente no meio da noite.
Foi preso por roubo. Foi condenado a prestar serviços comunitários. Cometeu diversos atos de vandalismo, não especialmente imaginativos. Ele xingava estranhos na rua. Embebedava-se -com cerveja, vinho, bebidas mais fortes, qualquer coisa em que conseguisse pôr as mãos- e, quando se embebedava, tornava-se violento. Agredia sua mãe, verbal e fisicamente. Usando duas velas acesas, tentou atear fogo ao cabelo dela. Na segunda vez, usou gasolina.
Ele desmontava móveis, quebrava louças e cristais e, sem nenhuma provocação anterior, chutava paredes e quebrava vidros. Ele destruiu seu guarda-roupa com tesouras, picotando cada peça de roupa e, quando terminou, começou a fazer o mesmo com as roupas da mãe. Destruiu seu quarto, reduzindo-o às ripas, aos blocos de concreto. Cobriu o que restou com pichações, usando todos os epítetos raciais e sexuais imagináveis.
Dormia no chão em meio a alimentos em putrefação, leite azedo, as fezes dos ratos que tudo isso atraía e escombros de gesso, alvenaria e estilhaços de vidro. Recusava-se a tomar banho. Defecava no quintal e urinava dentro de latas de Coca-Cola que, depois, posicionava em seu quarto formando pentagramas, como bonecas de vodu de metal vermelho. Gravou símbolos em seus braços, usando as pontas lixadas de clipes de papel.
Descobriu a maconha, depois a cocaína. Depois disso, o PCP [fenciclidina, desenvolvida para uso veterinário, como anestésico". Em seguida, o Special K (um tranquilizante para animais, ao qual dava o nome de "ração para gatos"). Metia-se em brigas com seus amigos. Um desses entreveros envolveu o uso de uma faca, terminando com um corte no rosto que precisou de dez pontos. Foi expulso do colégio. Engravidou uma garota. Houve um aborto. Ele desaparecia por dias a fio, frequentemente indo para Nova York, onde dormia diante de lojas ou edifícios abandonados ou então em bancos de praça, tendo sido, pelo menos duas vezes, assaltado com uma faca. Vendeu ou trocou seus pertences pessoais, muitos deles presentes recebidos em aniversários ou Natais -violões, equipamentos de som, coleções de CD, relógios, jaquetas de couro- para arrumar dinheiro para comprar drogas.
Contraiu uma doença sexualmente transmissível, depois outra. Era menor de idade, de modo que, quando dirigia os carros de seus amigos, o fazia ilegalmente. Sob o efeito de cocaína, acabou andando a mais de 130 km/h numa rodovia interestadual em um desses carros.
O fato de ele e os dois passageiros, um dos quais sua namorada, não terem morrido no acidente -o carro foi parar de ponta-cabeça sobre o leito de um riacho, enquanto eles saíram pelo porta-malas aberto- só pode ter se devido, nas palavras já familiares do policial que os encontrou, à "intervenção divina".


Eu me tornara, de todas as maneiras imagináveis, um proscrito: o homem subterrâneo de Dostoiévski, o "ex" que é o prefixo de existe


Ele escapou de ser preso no centro estadual de detenção juvenil apenas porque o tribunal mostrou-se inexplicavelmente compassivo. Acabou sendo retirado de casa e internado -exilado, na realidade-, primeiramente numa sala trancada de uma clínica psiquiátrica privada, depois numa escola especial, fora do Estado. Teve acompanhamento psiquiátrico. Foi diagnosticado como doente de males designados por uma série de siglas: AD, ADD, ODD, ICD, possivelmente BP. Medicamentos diversos lhe foram receitados: Zoloft, Depakote, Paxil, Wellbutrin. Quando nem a escola nem o acompanhamento psiquiátrico e nem a medicação funcionaram, ele recebeu outros medicamentos e mais acompanhamento psiquiátrico e foi enviado a mais uma escola situada fora do Estado, um colégio particular cuja anuidade custava US$ 40 mil. Nessa época, além de usar drogas, ele já as traficava, e o carro era essencial para o que chamava de sua "subsistência", assim como era conducente a seu estilo de vida, um estilo de vida que lembrava o de um vampiro, já que ele vivia de ponta-cabeça, dormindo o dia todo e drogando-se a noite toda. Certa vez, em uma orgia de violência que se estendeu por cinco dias, ele causou perda total de dois automóveis, um deles o de seu pai, tendo, nesse processo, quebrado o tornozelo com tanta gravidade que foram precisos 26 grampos, dez parafusos e duas chapas de aço inoxidável para reconstituí-lo. Não confirmo com certeza absoluta a cronologia precisa desses fatos todos -mesmo agora, tudo isso se apresenta diante de meus olhos como uma mancha imprecisa-, mas uma coisa afirmo com certeza: ele espalhava a destruição por onde passava. Sua realidade era de um tipo diferente, possivelmente uma irrealidade ou uma anti-realidade, e aqueles que eram atraídos para dentro do caos de sua órbita, que se viam emaranhados em sua teia, inevitavelmente sofriam danos. Enquanto isso, os 20 anos de casamento de seus pais estavam caindo por terra. Minha mulher era e continua sendo uma mulher bela, generosa, talentosa e que se preocupa com as pessoas. Ela é a alma mais antiga que conheço, o espírito mais feliz, e eu não hesitaria em dar minha vida por ela. Embora já não vivamos juntos, embora não vivamos juntos há anos, eu a admiro e, em algum nível, ainda a amo, como sei que sempre continuarei a amar. Mas às vezes isso não é o suficiente; às vezes nada é. O casamento tinha seus problemas de longa data, suas desavenças e fraturas, seus pontos em que tropeçávamos, e, quando fomos cercados e depois atacados, quando nosso filho começou o processo de, como nós o descrevíamos, "dar a descarga sobre ele mesmo" de maneira tão intransigente e total, a tensão foi excessiva. Então rompemos, e eu fui embora. Não embora de uma vez por todas -o rompimento foi tudo, menos definitivo; foi atormentado, tornou-se bizantino-, e eu nunca cheguei a ir longe. Um apartamento de subsolo do outro lado da rua; outro, infestado de ratos, na cidade vizinha. Passei anos entrando e saindo, entrando e saindo novamente. Eu não sabia como partir corretamente e não sabia ao certo se queria descobrir. Mas a verdade é que já não tinha certeza de muita coisa -e isso me desconcertava quase tanto quanto me deprimia, porque ter certeza absoluta, mesmo quando eu estava absolutamente enganado, era uma característica que eu normalmente tinha como parte integral minha. Era a quintessência da fachada masculina, e, por trás dela, eu tremia de medo. Eu não conseguia parar de tremer. Acabei encontrando um lugar sombrio o suficiente para refletir sobre como me sentia, e eu me sentia péssimo, desgraçado, impossível de ser salvo; me sentia vil, violado e perdido. E sozinho. E errado. Errado por inteiro. Parei de fazer a barba, de tomar banho, de dormir. Com o tempo, parei de comer (houve um período de três meses durante o qual perdi 18 quilos). Eu já não reconhecia minha própria estética. Existem inúmeras palavras poéticas que se prestam a descrever o estado a que havia chegado, mas há uma que parece ser a melhor: destituído -"vazio de, retirado, removido". De alguma maneira eu me tornara radioativo, o mundo, um lugar áspero e ermo, e eu fui abandonado para vaguear por ele solto e sem mapa, queimado, com o coração doente e sendo uma ameaça a mim mesmo. O lugar era um quarto único, sem janela, pouco maior do que um barraco de fundo de quintal, um espaço de porão no fundo de uma garagem abandonada, e eu chafurdava nele, em suas teias de aranha e sua imundície -naturalmente, não possuía os meios de limpar as sujeiras que eu mesmo fazia-, sozinho. Assim, foi sozinho que comecei a me desintegrar. Continuei a escrever, frenética e incessantemente, desesperadamente, porque escrever era a única maneira que eu conhecia de me manter à tona, embora, olhando em retrospectiva, eu não saiba dizer se, escrevendo, eu procurava me distanciar do que pressentia ser uma loucura que se avizinhava ou se, com isso, mergulhava mais fundo nela. De alguma maneira, já não me recordo exatamente de como -até prefiro não recordar- completei o rascunho de um romance de 500 páginas sobre ninguém menos que Lizzie Borden [famosa parricida do século 19", mas, quando o mostrei a meu agente, ele o qualificou como "um dos mais brilhantes exemplos de insanidade" que já lera, declarou que seria totalmente invendável e negou-se a aceitá-lo. Rompemos nossa relação, e, em seguida, meu editor deixou seu emprego numa editora importante de Nova York. Meu casamento estava morto -embora eu ainda insistisse em enxergá-lo como estando apenas em estado semicomatoso-, meu filho continuava extremamente vivo; eu estava sem agente, sem editor, aparentemente impublicável, vivendo como vagabundo e recluso, minha renda praticamente inexistente e, lentamente -e, depois, não tão lentamente-, estava, ou disso me convencera, enlouquecendo. Tendo atirado a mim mesmo para fora -de minha casa e de todo contato humano-, eu me tornara, de todas as maneiras imagináveis, um proscrito. O homem subterrâneo de Dostoiévski. O "ex" que é o prefixo de existe. Existe, vale a pena mencionar, um caso de suicídio em minha família -o irmão de minha mãe, aos 13 anos de idade, com um tiro de revólver calibre 22 na cabeça-, e, embora esse histórico -ou o fantasma dele- tenha o mau hábito de assombrar meus momentos de maior fragilidade, nunca pensei em me entregar. Eu tinha tido um vislumbre da desolação que se esconde atrás dessa porta anos antes, mas decidira, no último instante -em momentos como esse, sempre se trata do último instante possível, e vive-se perpetuamente em seu presente- não levar a idéia a cabo. Simplesmente não estava dentro de mim.

Deus acidental
O suicídio, permita que eu sugira, é um ato de vaidade, o penúltimo gesto do narcisista nato, e embora eu tivesse e ainda tenha narcisismo em excesso, também é -e que ninguém tente lhe dizer o contrário- uma ocasião de coragem infernal, um gesto de bravura brutal. Eu queria possuir a índole, mas não tinha a coragem.
Assim, pela primeira vez na vida, procurei ajuda. Meu terapeuta era um homem sábio, gentil e preocupado comigo e, embora tenha tentado -quando cheguei ao fundo do poço financeiro, ele me atendeu gratuitamente por meses-, um ano mais tarde ele não tinha conseguido resolver meu caso. Eu continuava a sonhar em palavras, só que agora o fazia acordado, nesse rádio ambulante que é a mente e que eu não conseguia desligar.
Talvez determinadas perguntas se apresentem: como fica a religião, por exemplo, ou o sexo, seu consolo e refúgio, a salvação que sua aquisição proporcionava. Embora no passado eu tivesse tido tudo isso em abundância -aos 20 e poucos anos, tinha recebido uma bolsa de estudos para a Escola Vanderbilt de Teologia, que, no último momento, decidira não aceitar-, eu acabara por trilhar um caminho diferente. Tornei-me jornalista, repórter de um jornal e, nesse processo, perdi a pouca fé que possuíra. Naquela época eu estava engajado na vida "real", nas questões cotidianas que regem as vidas dos outros e, quando abri mão de minha carreira bem-sucedida, alguns anos mais tarde, eu já a vivera demais para que ela pudesse continuar a interessar-me. Não que eu tenha vivido a perda de minha fé de qualquer maneira ativa ou significativa. Simplesmente, e aos poucos, Deus foi se tornando tão incidental e, por fim, irrelevante para minha vida quanto nossas vidas, estou convencido disso, o são para Ele. Aqueles que têm fé e que, de alguma maneira, conseguem encontrar a profundidade e resistência de caráter necessárias para mantê-la, sem dúvida vão considerar tal declaração triste ao extremo. Eu não. O importante a observar é que aquela opção específica não estava aberta para mim. O desespero que eu sentia, nem Cristo poderia aliviar.
Quanto ao sexo, apesar dos prolongados períodos de celibato aquiescente dentro do casamento, eu sempre gostara do pouco que tivera e agora sentia falta dele, terrivelmente -na verdade, sua ausência me deixava abstraído. Lamentavelmente, o sexo tende, acredito, a ser dado como algo certo e garantido quando se tem acesso fácil e rotineiro a ele, mas, quando nos vemos privados desse acesso, bem, ansiamos por ele. O dia todo, todos os dias.
Eu, pelo menos, anseio. Ansiava. Infelizmente, embora eu sempre tenha adorado as mulheres -muito mais do que a proximidade que sinto em relação aos homens-, sou inerentemente incapaz de ter casos casuais, encontros passageiros ou até mesmo o que, hoje em dia, pode ser visto como um nível aceitável de galinhagem. Não que eu não tenha tido minhas oportunidades, mas sempre, com uma única exceção, deixei a possibilidade para depois. Infidelidade, flertes, devassidão, promiscuidade, libertinagem, correr atrás de um rabo-de-saia -chame-o como quiser-, nada disso esteve entre as razões que levaram meu casamento a terminar.
Portanto: suicídio, religião, sexo. Três tentativas, dizem, e você está fora. Acabado. Destituído de chance. Triplamente acabado.
E então aconteceu o impensável ou, melhor dizendo, aconteceram duas coisas. Conheci alguém, uma mulher, e enquanto eu, à minha moda recalcitrante, levava esse encontro adiante para que ela, com o tempo, pudesse me salvar (como acabou por fazer), meu filho estava se tornando -com força total, que é sua própria maneira, a única maneira que ele conhece, voluntarioso e precipitado em todas as coisas- o que é conhecido como "um raver".
E, pela primeira vez em anos -nessa época ele tinha 17 anos-, parecia estar feliz. Não eufórico ou alegre, mas contente, em paz consigo mesmo, dentro dele mesmo. Não pretendo evocar imagens de zen ou de Buda -meu filho é mais ou menos tão zen quanto Eminem-, mas a transformação era tão notável quanto palpável e total. Na verdade, parecia ser tão definitiva que não pude deixar de lhe perguntar sobre isso e, quando o fiz, ele sorriu -sempre me lembrarei daquele sorriso, ele tem o sorriso mais incandescente do mundo- e disse, simplesmente: "Estou, sim". E, quando lhe perguntei por que, o que acontecera, ele sorriu outra vez e respondeu: "Você não entenderia. Mas é toda a minha vida agora. Sei porque estou vivo". Eu me recordo da resposta que dei. Talvez, se eu tivesse respondido de outro modo ou simplesmente não tivesse respondido, o que estava prestes a acontecer não teria acontecido, nunca. Ou, quem sabe, teria. Quem sabe teria acontecido de qualquer maneira. Talvez tivesse que acontecer e, não importa o que eu dissesse ou deixasse de dizer, iria acontecer, porque é assim que essas coisas acontecem. O que eu disse foi: "Parabéns. Estou feliz por você. De verdade. Queria que eu também estivesse". Apesar de tudo, meu filho e eu nunca escondemos as coisas, não um do outro. Ele me faz confidências, e eu também. Ele me conta coisas que nenhum filho jamais deveria revelar a um pai ou uma mãe, coisas que nenhum pai ou mãe quer ouvir, coisas repulsivas, com frequência, coisas moralmente repreensíveis, coisas asquerosamente cruéis, coisas que estão tão assustadoramente fora dos limites do aceitável, tão imbuídas de risco, tão repletas de descuido, tão destituídas de sentimento e julgamento humano que eu me vejo totalmente incapaz de dizer alguma coisa, como raramente acontece comigo. Pois não se pode falar quando se está com os dentes cerrados e se está, metaforicamente, rangendo-os. Então ele se virou para mim e disse: "De verdade?". E, quando respondi não apenas afirmativamente, mas de maneira declarativa, ele me contou uma história e me fez uma oferta. E foi assim que nasceu mais um aspecto de nosso relacionamento, um aspecto que é tão inteiramente ilícito quanto moralmente desagradável -e que continua até hoje.

Vergonha compartilhada
Nós dois sabemos que é errada essa parte do nosso relacionamento, o arranjo, o dilema que ele nos coloca, errado da maneira mais íntima e profana, e nós dois sabemos que nenhum de nós se importa o bastante com o fato para fazer alguma coisa a respeito. Por que deveríamos? Já decepcionamos um ao outro tantas vezes no passado que isso parece ter importância menor do que nenhuma, agora. Hoje, é uma vergonha compartilhada, algo que nós dois temos e que ninguém mais tem e, como o sangue que compartilhamos, tornou-se uma parte grande e integral daquilo que nos une -pai e filho. Talvez nenhuma verdade seja mais momentosa, nenhuma mais difícil de enfrentar, do que a mais negra e abjeta que nos diz respeito.
Meu filho me fornece drogas, ecstasy, e, se estou destinado a ser relegado à perdição, a queimar no inferno, então essa, me parece, é a primeira razão pela qual o farei. E me parece, ademais, que é uma razão muito boa, porque, vista objetivamente, é um horror, uma história de horror dos tempos modernos, exceto pelo fato de que não é uma história, não é ficção, é o mais distante que se pode chegar da ficção. É tão real e verdadeira quanto impensável, e há momentos em que a obscenidade disso me tira o fôlego e espanta a parte inculta de mim que vive mergulhada na auto-repulsa. Assim, a primeira vez em que comi E -ou X ou EX ou XTC ou MDMA (metilenodioximetanfetamina) ou ADAM-, foi porque eu tinha autorizado meu filho a me vendê-lo.



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