São Paulo, domingo, 16 de julho de 2000


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Peter Burke

A explosão da informação


Para o clero, a tipografia causou problemas porque permitiu que gente comum estudasse os textos religiosos por sua própria conta e não dependesse daquilo que as autoridades lhe dissessem; soberanos também se preocupavam com o espetáculo da gente comum discutindo as ações do governo


O ano 2000 parece um ano áureo para a celebração de centenários. No Brasil, a atenção dividiu-se entre os 500 anos do Descobrimento e os cem anos do nascimento de Gilberto Freyre (para não falar de Anísio Teixeira, que nasceu também cem anos atrás). Na Europa, o sexcentésimo aniversário de Johann Gutemberg está sendo comemorado. Ambos, Gutemberg e a prensa tipográfica por ele inventada, são celebrados há tempos. A imprensa, comumente aliada à pólvora (outra invenção atribuída aos alemães), foi descrita muitas vezes como a artífice ou, pelo menos, o símbolo, da era moderna. No início do século 17, o cientista-estadista inglês Francis Bacon via a tipografia como um meio para o progresso do conhecimento (para o "avanço da aprendizagem", como ele dizia) e ofereceu uma visão utópica do conhecimento completo e universal -pansofia. Um grande festival foi organizado pelos tipógrafos de Leipzig em 1640, por ocasião daquilo que se acreditava ser o bicentenário da invenção de Gutemberg. Costuma-se ver a tipografia como a solução para um problema, mais exatamente como um modo de regular o fornecimento de textos para prover a crescente demanda por eles no final da Idade Média, uma época em que aumentavam os números de leigos homens e mulheres alfabetizados. No presente artigo, contudo, gostaria de adotar uma abordagem diversa. Sem negar o feito de Gutemberg, ou mesmo o dos chineses ou o dos coreanos, que já tinham inventado outras formas de tipografia, desejo examinar algumas consequências impremeditadas da invenção, seus efeitos colaterais, os problemas a que ela deu origem.

Floresta de livros
Parece ser inevitável nos assuntos humanos que cada solução de um problema gere cedo ou tarde outros tantos problemas. Como sugeriu o geógrafo sueco Torsten Hägerstrand, o processo de inovação sempre tem um aspecto negativo e outro positivo, um "lado destrutivo" e outro criativo. No caso da Revolução Industrial inglesa, por exemplo, o lado negativo incluiu tanto o emprego de trabalho infantil nas fábricas têxteis quanto o desemprego de tecelões com teares manuais, que não eram capazes de trabalhar tão rápido ou tão barato quanto as novas máquinas. Após a invenção da tipografia, escribas profissionais e contadores de histórias orais temeram que a prensa lhes fosse tomar o ganha-pão. Para o clero, a tipografia causou problemas porque o novo meio de comunicação permitiu que gente comum estudasse os textos religiosos por sua própria conta e não dependesse daquilo que as autoridades lhe dissessem. Sapateiros, tintureiros, pedreiros e donas-de-casa, todos alegaram o direito de interpretar as escrituras. Soberanos também se preocupavam com o espetáculo da gente comum discutindo e criticando as ações do governo, especialmente depois que os jornais impressos vieram à luz no início do século 17. A invenção da imprensa também ensejou problemas aos estudiosos ou, em geral, a qualquer um que estivesse em busca de informação. Na Idade Média, os estudiosos padeciam da falta de livros. No século 16, por outro lado, o número de livros em circulação era grande o suficiente para criar problemas de "retenção da informação" e "administração da informação", problemas de tipo familiar para nós na era da Internet. Em 1500, havia cerca de 13 milhões de livros em circulação na Europa. A existência de livros impressos fez com que vários itens de informação ficassem mais fáceis de ser encontrados, desde que se achasse primeiro o livro certo. Um escritor italiano já reclamava, em 1550, haver "tantos livros que não temos tempo nem para ler os títulos". Os livros eram vistos como uma "floresta" onde os leitores podiam perder-se, um "oceano" onde os leitores tinham de navegar, ou uma "enchente" de matéria impressa na qual era difícil escapar do afogamento. Um grupo para quem essa multiplicação de livros criou especial problema foi o dos bibliotecários, embora também os tornasse indispensáveis. Em 1475, uma grande biblioteca européia como a do Vaticano continha somente 2.500 volumes. Em meados do século 17, algumas bibliotecas somavam 30.000 ou 40.000 livros e, no século 18, 100.000 ou mais. Amplos prédios novos tiveram de ser financiados e construídos para conter todos esses livros. Catálogos tiveram de ser compilados, suscitando o problema de como arranjá-los, se por assunto ou em ordem alfabética de autores. Havia também o problema de dar acesso aos catálogos a leitores potenciais, de modo que pudessem decidir se valia a pena empreender uma viagem até a biblioteca. No século 17 foram impressos alguns catálogos. Ainda mais práticos aos leitores foi a bibliografia impressa, que pode ser descrita como um catálogo da biblioteca ideal. O humanista suíço Conrad Gesner foi o autor da enorme "Bibliotheca Universalis" (1545-55), uma tentativa de bibliografia completa das obras eruditas publicadas.

Dicionário de dicionários
Vale a pena parar um momento e refletir sobre os problemas práticos de tal empreitada, a necessidade de viajar pela Europa em lombo de cavalo para visitar bibliotecas e tomar nota de milhares de verbetes com penas de escrever, muitas vezes no dorso de cartas de baralho, que podiam então ser dispostas em ordem. A volumosa bibliografia de Gesner era tão grande que ficava difícil consultá-la, de modo que bibliografias gerais como essa foram seguidas por outras especializadas, mais manuseáveis, incluindo bibliografias de livros franceses ou espanhóis sobre teologia, direito, medicina ou história. Tal como a ascensão das bibliografias, a ascensão da resenha do livro em meados do século 17 foi uma resposta a um problema que se tornara cada vez mais agudo, isto é, o problema de discriminar bons e maus livros. Essas resenhas eram publicadas em revistas eruditas, revistas como a "Philosophical Transactions of the Royal Society of London" (1665), que aparecia a cada mês ou dois, trazendo notícias, resumos e por vezes críticas de livros novos. Por sua vez, a solução gerou o problema de encontrar as revistas, que eram publicadas em tantas cidades diversas da Europa e que às vezes duravam somente alguns anos. Um número cada vez maior de livros de referência apareceu nos séculos 17 e 18. Com títulos como "Castelo", "Jardim", "Biblioteca", "Espelho", "Teatro" ou "Tesouro", continham eles informação sobre palavras, pessoas, lugares ou coisas. Havia também cronologias, atlas e volumosos compêndios de leis, tratados e outros documentos. Restava o problema de saber da existência de todos esses livros. Daí a publicação em Paris, em 1758, de um dicionário de dicionários. Esses livros visavam não apenas aos letrados, mas a pessoas que queriam saber mais sobre indivíduos e lugares mencionados em jornais (daí o nome alemão "Zeitungslexikon" ou "Dicionário de Jornal"), ou simplesmente queriam brilhar em conversas (daí "Konversationslexion"). A comercialização do conhecimento já era visível na era de Gutemberg, mas a ascensão de anúncios de livros no século 18 sugere que essa foi a verdadeira era da comercialização do conhecimento, ligada nessa época à ascensão da "sociedade de consumo" na Inglaterra, França e outros países.

A nota de rodapé
Esses novos modos de organizar a informação levaram a mudanças nos estilos de leitura e de escrita. Houve uma guinada da leitura intensa de alguns poucos livros para o uso de vários livros, sem se importar com lê-los do princípio ao fim (o equivalente literário de navegar na Internet). Essa maneira nova e "extensiva" de ler foi encorajada pelas mudanças no formato e layout dos livros, que passaram a ser divididos em capítulos e dotados de sumários e índices.
Os letrados modificaram sua maneira de escrever, explicando ao leitor aonde ir para maiores informações sobre dado assunto por meio de notas à margem, no pé da página ou no fim do livro. Tal como a detalhada descrição de um experimento científico, a nota de rodapé foi concebida para permitir aos leitores que seguissem os passos dados pelo autor em busca de uma conclusão. A nota de rodapé era parte de um novo código de conduta para os estudiosos, que não mais podiam supor, como muitos haviam feito antes de a tipografia ser inventada, que seus leitores estivessem familiarizados com os mesmos livros que ele próprio. Hoje, precisamos de um código de conduta semelhante para a Internet.
Essas soluções para problemas criados pela ascensão da tipografia tiveram suas próprias consequências imprevistas ou colaterais. Uma delas foi a ascensão de novas ocupações. A tipografia deu à luz não apenas à ocupação de tipógrafo, mas também à de revisor de provas e, mais tarde, de catalogador, editor, indexador e compilador de livros de referência.
Houve uma grande divisão intelectual de trabalho, que fazia parte de uma tendência geral rumo à especialização e fragmentação do conhecimento e ao declínio do velho ideal do conhecimento e aprendizado universais. Como vimos, Francis Bacon acreditava que a tipografia daria ensejo ao conhecimento universal. Na prática, o novo meio solapou o ideal de Bacon. No século 17, o estudioso que fosse capaz, como Gottfried Leibniz, de dar contribuições originais a campos tão diversos quanto a matemática e a história (sem falar da biblioteconomia) era uma espécie em extinção.
Na época da famosa "Enciclopédia", de Diderot, publicada em meados do século 18, estava claro (para citar o artigo sobre o "homem de letras"), que "o conhecimento universal não está mais ao alcance humano". Tudo o que sensatamente podia ser feito nas novas circunstâncias era tentar evitar a estreiteza encorajando o que o artigo chamava o "espírito filosófico", ou seja, fazendo ligações e traçando as implicações mais amplas dos estudos especializados. Tal conselho permanece extremamente relevante para nós hoje.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "O Renascimento Italiano" (Nova Alexandria) e "A Arte da Conversação" (Unesp), entre outros.
Tradução de José Marcos Macedo.


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