São Paulo, domingo, 16 de julho de 2000


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Obra reúne correspondência entre o escritor Samuel Beckett e o diretor Alan Schneider
A devoção do amigo americano

Robert Brustein
para "The NYT Book Review"

O diretor norte-americano de teatro Alan Schneider conheceu o dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989) em 1955, quando foi contratado para dirigir a estréia nos Estados Unidos de "Esperando Godot", em Miami. Schneider fora até o apartamento de Beckett em Paris com a cabeça cheia de perguntas relativas à pré-produção, especialmente a grande pergunta em relação à identidade do personagem-título. À primeira pergunta de Alan Schneider, "quem é Godot?", o lacônico dramaturgo deu sua resposta famosa: "Se soubesse, eu o teria dito na peça". Dali em diante Schneider iria dedicar a maior parte de sua carreira a concretizar as intenções declaradas de Samuel Beckett em suas peças. Mas, apesar da fidelidade total que manteve ao texto de Beckett e apesar da participação de atores cômicos populares como Bert Lahr e Tom Ewell, a produção de "Esperando Godot" em Miami foi um fracasso redundante. Um terço da platéia abandonou o teatro no intervalo. Outras pessoas fizeram filas diante da bilheteria, não para comprar ingressos, mas para pedir a devolução de seu dinheiro. Beckett assumiu a responsabilidade total pelo fiasco, consolando Schneider com um misto de modéstia e tranquilidade que iria inspirar no diretor um sentimento de lealdade vitalícia a ele. "O sucesso ou fracasso junto ao público nunca me importaram muito", escreveu Beckett. "Na verdade, tendo aspirado seu ar dinamizante profundamente durante toda minha vida de escritor, me sinto muito mais em casa com o último." Daquele momento em diante, Schneider passou a dedicar a Beckett um sentimento quase de adoração, ao qual este respondeu com afeição paternal. Os dois não demoraram a tornar-se correspondentes fiéis, tendo trocado cerca de 500 cartas. Embora Beckett adotasse atitude extremamente protetora em relação à sua correspondência particular ("não quero que nenhuma das cartas que escrevi seja publicada em nenhum lugar", avisou a Schneider), a maioria dessas cartas está reunida em "No Author Better Served" (Nenhum Autor Melhor Atendido). O livro foi editado, com uma introdução útil e extremo cuidado textual (apesar das notas de rodapé às vezes incompletas e mal redigidas), pelo estudioso irlandês Maurice Harmon, que respeitou a exigência de privacidade feita por Beckett, excluindo qualquer material relativo à vida privada do dramaturgo. O título que Harmon escolheu resume a reação de Beckett à direção meticulosa feita por Schneider de "Happy Days" (mais uma vez ignorando as críticas negativas, Beckett escreveu: "Tenho a impressão de que nunca um autor foi melhor atendido"). A atitude de reverência que Schneider demonstrava por Beckett e o fato de ele promover suas peças nos Estados Unidos lhe valeram a gratidão e confiança duradouras do dramaturgo (que escreve repetidas vezes: "Mais uma vez obrigado, caro Alan, por tudo o que você faz pelo meu trabalho"). Em troca de sua devoção, Schneider pôde encenar cinco estréias de Beckett nos EUA e acabou por colocar no palco um total de seis produções de "Godot", seis versões de "Krapp's Last Tape", cinco produções de "Rockaby" e duas de "Fim de Jogo". Embora Schneider também tivesse dirigido peças de Edward Albee, Harold Pinter, Joe Orton e Edward Bond, ele parecia sempre pensar mais em Beckett, a não ser quando estava encenando uma de suas inúmeras versões renovadas de "Our Town", de Thornton Wilder. Beckett não assistiu a nenhum dos trabalhos de Schneider nos palcos americanos. Ele só foi uma vez aos Estados Unidos, para assistir a seu protegido dirigindo Buster Keaton em seu filme de curta-metragem "Film". Apesar disso, pelo menos na primeira fase do relacionamento entre eles, Beckett tentava controlar a produção das peças à distância. Em sua primeira carta a Schneider, Beckett explica que, embora não se oponha a que um diretor "troque uma palavra aqui ou ali ou faça um ou outro corte", ele exige "a chance de protestar ou aprovar". Com o tempo, porém, Beckett começou a conceder a Schneider mais liberdade na interpretação de suas peças. Alguns anos mais tarde, ele já respondia às dúvidas de Schneider com um "faça como você quiser, Alan, faça como bem entender".

Fé e modéstia
Em lugar de aproveitar essa liberdade, Schneider buscava os conselhos de Beckett sobre cada detalhe de suas produções, até mesmo com relação à curva exata de uma gota pintada em "Happy Days". Schneider pediu autorização para enfeitar com lantejoulas o vestido usado por Billie Whitelaw em "Rockaby" e para deixar seus atores fecharem os olhos por um instante em "Play". Chegou até a submeter à aprovação de Beckett todos os artigos que escrevia e todos os materiais promocionais das peças, antes de serem publicados.
As cartas de Beckett com frequência revelam não apenas a fé que nunca deixou de depositar em Schneider, mas também uma modéstia encantadora. Em alguns momentos a autodesvalorização de Beckett chega a lembrar os modos de um diplomata japonês -por exemplo quando ele agradece Schneider por "seu afeto caloroso por minha pessoa desinteressante e sua devoção a meu trabalho medonho". Pouco a pouco, essa humildade começa a acumular sucessivas camadas de impaciência consigo mesmo e com o "depósito de lixo que faz as vezes de minha mente". Preocupado com o uso que Schneider pretendia fazer no palco de alguns de seus materiais não-teatrais, escreve: "Para mim, esses materiais são abortos". Em outro momento: "Estou lutando com uma prosa impossível. O inglês. Com repulsa. E pensar que houve época em que escrever era um prazer!".
Enquanto isso, Schneider, frequentemente utilizando frases sombrias tiradas das peças do próprio Beckett, envia a seu amigo suas reflexões desesperançadas sobre o estado do teatro, da cultura e da política dos EUA (suas cartas cobrem o período da Guerra do Vietnã).
Apolítico, Beckett não obstante se mantém solidário, embora distanciado das preocupações de Schneider. Apesar disso, é capaz de expressar ultraje e desprezo consideráveis, especialmente com relação à imprensa e à atitude de incompreensão que ela manifesta para com suas peças -"boas, más ou indiferentes", queixa-se, fazendo referência às críticas, "elas me deprimem e me levam a imaginar o que será que dá nessa gente para levá-la a escrever sobre o teatro". Beckett troca com Schneider anedotas sobre "os chacais" -os críticos-, que "vivem arrancando pedaços de nós", sobre "os jornalistas, esses canalhas" que nunca interpretam seu trabalho corretamente e sobre imbecis como "o lorde Penico", que vive tentando censurá-lo.
Confessando sentir "cansaço mental", permite que um tom de desespero mórbido penetre em sua correspondência, revelando o anseio de distanciar-se de tudo. Também começa a se tornar cada vez mais excêntrico e resmungão. Com o passar do tempo, até suas cartas a Schneider vão se tornando curtas, em tom de quem escreve por obrigação. "Perdoe meu longo silêncio", escreve Beckett. "Não tenho desculpas a apresentar. Estou silenciando, apenas." São também esses os anos durante os quais Beckett começa a mostrar cada vez menos flexibilidade em relação às interpretações revisionistas de sua obra e Schneider começa a atuar um pouco como agente secreto e autonomeado leva-e-traz. Schneider sabia perfeitamente que os colaboradores criativos exercem um impacto sobre as intenções de um dramaturgo.

Recusa a Bergman
Em "Entrances", ele escreve que até mesmo Beckett estava "descobrindo, aos poucos, que todos os atores têm imaginação e podem ter idéias que afetam seriamente ou até mesmo distorcem as intenções do autor". Apesar disso, sente-se na obrigação de avisar Beckett sobre uma produção de "Fim de Jogo" feita pela trupe de Andre Gregory, que tinha "a tendência de utilizar os textos para suas finalidades próprias" e, numa carta posterior, lhe conta que "a produção toma tantas liberdades com seu texto (...) e com suas orientações" e qualifica a produção de "uma imitação grotesca, decidida a ser "diferente" para ser "diferente", e nada mais".
Dizendo que teria preferido poder poupar Beckett de desgostos, Schneider insiste que "o mais importante é proteger a peça e você. Mas como, senão impedindo a produção de ir ao palco?". Com tudo isso, consegue enfurecer Beckett a ponto de este considerar a possibilidade de um processo judicial ("Meu trabalho não é uma escritura sagrada, mas essa produção soa como algo realmente revoltante e prejudicial à peça"). Beckett deixou a produção chegar ao palco, mas jurou impedir qualquer tentativa de levá-la em turnê.
Com certeza cabe a Schneider parte da responsabilidade pela crescente inflexibilidade de Beckett em relação à conservação de cada vírgula e cada parêntese de sua prosa. "Devo confessar", escreve o diretor, num tom tipicamente lisonjeiro, "que você é praticamente o único autor cujas orientações de palco parecem ser tão acertadas e tão integralmente parte do que você escreve".
Não demora muito para Beckett recusar-se a autorizar uma encenação de "Fim de Jogo" apenas com atrizes e irritar-se com "uma paródia escandalosa de "Godot" encenada no Young Vic. Vou tentar convencer a mim mesmo de que já passei do ponto de me importar com isso". Ele chegou ao ponto de recusar a Ingmar Bergman permissão para filmar "Esperando Godot" porque não queria que a peça fosse "bergmanizada".
Pouco após a morte de Schneider, em 1984, minha própria companhia, a American Repertory Theater, teve problemas com Beckett quando a diretora Joanne Akalaitis montou uma produção de "Fim de Jogo" numa estação abandonada de metrô e encomendou para ela uma abertura curta do músico Philip Glass. Beckett protestou contra a "musicalização" de sua peça, teceu objeções à escolha de dois atores negros para os papéis de Hamm e Nagg e, citando suas próprias descrições do cenário, escreveu que "qualquer produção de "Fim de Jogo" que ignore minhas instruções de palco me é totalmente inaceitável".
Poucos discordam do fato de que as primeiras encenações de uma peça merecem a atenção mais fiel e precisa possível. Foi por isso que Alan Schneider foi um diretor tão ideal para as estréias das obras de Beckett e que ele realmente fez por merecer a gratidão do dramaturgo. "No Author Better Served" não apenas traça a crônica da relação quase simbiótica que existiu entre esse grande escritor e seu discípulo fiel, como também acrescenta material epistolar inestimável ao conjunto da obra de Beckett. A morte de Schneider pôs fim à relação, mas ele rendeu homenagem a Beckett até mesmo em seu derradeiro momento de vida. Schneider morreu atropelado por uma moto, em Londres, quando atravessava a rua para colocar no correio mais uma carta a seu grande amigo.



No Author Better Served
512 págs., US$ 35 Maurice Harmon (org.) Harvard University Press (EUA).


Onde encomendar:
Em SP, na FNAC (tel. 0/xx/11/ 867-0022), e, no RJ, na livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/ 21/533-2237).



Robert Brustein é crítico e diretor teatral.
Tradução de Clara Allain.


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