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Obra reúne correspondência entre o escritor Samuel Beckett e o diretor Alan Schneider
A devoção do amigo americano
Robert Brustein
para "The NYT Book Review"
O diretor norte-americano de
teatro Alan Schneider conheceu o dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989) em
1955, quando foi contratado para dirigir
a estréia nos Estados Unidos de "Esperando Godot", em Miami. Schneider fora até o apartamento de Beckett em Paris
com a cabeça cheia de perguntas relativas à pré-produção, especialmente a
grande pergunta em relação à identidade
do personagem-título. À primeira pergunta de Alan Schneider, "quem é Godot?", o lacônico dramaturgo deu sua
resposta famosa: "Se soubesse, eu o teria
dito na peça".
Dali em diante Schneider iria dedicar a
maior parte de sua carreira a concretizar
as intenções declaradas de Samuel Beckett em suas peças. Mas, apesar da fidelidade total que manteve ao texto de Beckett e apesar da participação de atores
cômicos populares como Bert Lahr e
Tom Ewell, a produção de "Esperando
Godot" em Miami foi um fracasso redundante. Um terço da platéia abandonou o teatro no intervalo. Outras pessoas
fizeram filas diante da bilheteria, não para comprar ingressos, mas para pedir a
devolução de seu dinheiro.
Beckett assumiu a responsabilidade total pelo fiasco, consolando Schneider
com um misto de modéstia e tranquilidade que iria inspirar no diretor um sentimento de lealdade vitalícia a ele. "O sucesso ou fracasso junto ao público nunca
me importaram muito", escreveu Beckett. "Na verdade, tendo aspirado seu ar
dinamizante profundamente durante toda minha vida de escritor, me sinto muito mais em casa com o último."
Daquele momento em
diante, Schneider passou
a dedicar a Beckett um
sentimento quase de adoração, ao qual este respondeu com afeição paternal. Os dois não demoraram a tornar-se correspondentes fiéis, tendo
trocado cerca de 500 cartas. Embora Beckett adotasse atitude extremamente protetora em relação à sua correspondência particular ("não quero que
nenhuma das cartas que escrevi seja publicada em nenhum lugar", avisou a
Schneider), a maioria dessas cartas está
reunida em "No Author Better Served"
(Nenhum Autor Melhor Atendido).
O livro foi editado, com uma introdução útil e extremo cuidado textual (apesar das notas de rodapé às vezes incompletas e mal redigidas), pelo estudioso irlandês Maurice Harmon, que respeitou a
exigência de privacidade feita por Beckett, excluindo qualquer material relativo à vida privada do dramaturgo.
O título que Harmon escolheu resume
a reação de Beckett à direção meticulosa
feita por Schneider de "Happy Days"
(mais uma vez ignorando as críticas negativas, Beckett escreveu: "Tenho a impressão de que nunca um autor foi melhor atendido"). A atitude de reverência
que Schneider demonstrava por Beckett
e o fato de ele promover suas peças nos
Estados Unidos lhe valeram a gratidão e
confiança duradouras do dramaturgo
(que escreve repetidas vezes: "Mais uma
vez obrigado, caro Alan, por tudo o que
você faz pelo meu trabalho"). Em troca
de sua devoção, Schneider pôde encenar
cinco estréias de Beckett nos EUA e acabou por colocar no palco um total de seis
produções de "Godot", seis versões de
"Krapp's Last Tape", cinco produções de
"Rockaby" e duas de "Fim de Jogo". Embora Schneider também tivesse dirigido
peças de Edward Albee, Harold Pinter,
Joe Orton e Edward Bond, ele parecia
sempre pensar mais em Beckett, a não
ser quando estava encenando uma de
suas inúmeras versões renovadas de
"Our Town", de Thornton Wilder.
Beckett não assistiu a nenhum dos trabalhos de Schneider nos palcos americanos. Ele só foi uma vez aos
Estados Unidos, para assistir a seu protegido dirigindo Buster Keaton em
seu filme de curta-metragem "Film". Apesar disso,
pelo menos na primeira
fase do relacionamento
entre eles, Beckett tentava
controlar a produção das
peças à distância. Em sua
primeira carta a Schneider, Beckett explica que, embora não se
oponha a que um diretor "troque uma
palavra aqui ou ali ou faça um ou outro
corte", ele exige "a chance de protestar
ou aprovar". Com o tempo, porém, Beckett começou a conceder a Schneider
mais liberdade na interpretação de suas
peças. Alguns anos mais tarde, ele já respondia às dúvidas de Schneider com um
"faça como você quiser, Alan, faça como
bem entender".
Fé e modéstia
Em lugar de aproveitar essa liberdade, Schneider buscava os
conselhos de Beckett sobre cada detalhe
de suas produções, até mesmo com relação à curva exata de uma gota pintada
em "Happy Days". Schneider pediu autorização para enfeitar com lantejoulas o
vestido usado por Billie Whitelaw em
"Rockaby" e para deixar seus atores fecharem os olhos por um instante em
"Play". Chegou até a submeter à aprovação de Beckett todos os artigos que escrevia e todos os materiais promocionais
das peças, antes de serem publicados.
As cartas de Beckett com frequência revelam não apenas a fé que nunca deixou
de depositar em Schneider, mas também
uma modéstia encantadora. Em alguns
momentos a autodesvalorização de Beckett chega a lembrar os modos de um diplomata japonês -por exemplo quando
ele agradece Schneider por "seu afeto caloroso por minha pessoa desinteressante
e sua devoção a meu trabalho medonho". Pouco a pouco, essa humildade
começa a acumular sucessivas camadas
de impaciência consigo mesmo e com o
"depósito de lixo que faz as vezes de minha mente". Preocupado com o uso que
Schneider pretendia fazer no palco de alguns de seus materiais não-teatrais, escreve: "Para mim, esses materiais são
abortos". Em outro momento: "Estou lutando com uma prosa impossível. O inglês. Com repulsa. E pensar que houve
época em que escrever era um prazer!".
Enquanto isso, Schneider, frequentemente utilizando frases sombrias tiradas
das peças do próprio Beckett, envia a seu
amigo suas reflexões desesperançadas
sobre o estado do teatro, da cultura e da
política dos EUA (suas cartas cobrem o
período da Guerra do Vietnã).
Apolítico, Beckett não obstante se
mantém solidário, embora distanciado
das preocupações de Schneider. Apesar
disso, é capaz de expressar ultraje e desprezo consideráveis, especialmente com
relação à imprensa e à atitude de incompreensão que ela manifesta para com
suas peças -"boas, más ou indiferentes", queixa-se, fazendo referência às críticas, "elas me deprimem e me levam a
imaginar o que será que dá nessa gente
para levá-la a escrever sobre o teatro".
Beckett troca com Schneider anedotas
sobre "os chacais" -os críticos-, que
"vivem arrancando pedaços de nós", sobre "os jornalistas, esses canalhas" que
nunca interpretam seu trabalho corretamente e sobre imbecis como "o lorde Penico", que vive tentando censurá-lo.
Confessando sentir "cansaço mental",
permite que um tom de desespero mórbido penetre em sua correspondência,
revelando o anseio de distanciar-se de
tudo. Também começa a se tornar cada
vez mais excêntrico e resmungão. Com o
passar do tempo, até suas cartas a
Schneider vão se tornando curtas, em
tom de quem escreve por obrigação.
"Perdoe meu longo silêncio", escreve
Beckett. "Não tenho desculpas a apresentar. Estou silenciando, apenas."
São também esses os anos durante os
quais Beckett começa a mostrar cada vez
menos flexibilidade em relação às interpretações revisionistas de sua obra e
Schneider começa a atuar um pouco como agente secreto e autonomeado leva-e-traz. Schneider sabia perfeitamente
que os colaboradores criativos exercem
um impacto sobre as intenções de um
dramaturgo.
Recusa a Bergman
Em "Entrances", ele escreve que até mesmo Beckett
estava "descobrindo, aos poucos, que todos os atores têm imaginação e podem
ter idéias que afetam seriamente ou até
mesmo distorcem as intenções do autor". Apesar disso, sente-se na obrigação
de avisar Beckett sobre uma produção de
"Fim de Jogo" feita pela trupe de Andre
Gregory, que tinha "a tendência de utilizar os textos para suas finalidades próprias" e, numa carta posterior, lhe conta
que "a produção toma tantas liberdades
com seu texto (...) e com suas orientações" e qualifica a produção de "uma
imitação grotesca, decidida a ser "diferente" para ser "diferente", e nada mais".
Dizendo que teria preferido poder
poupar Beckett de desgostos, Schneider
insiste que "o mais importante é proteger a peça e você. Mas como, senão impedindo a produção de ir ao palco?".
Com tudo isso, consegue enfurecer Beckett a ponto de este considerar a possibilidade de um processo judicial ("Meu
trabalho não é uma escritura sagrada,
mas essa produção soa como algo realmente revoltante e prejudicial à peça").
Beckett deixou a produção chegar ao
palco, mas jurou impedir qualquer tentativa de levá-la em turnê.
Com certeza cabe a Schneider parte da
responsabilidade pela crescente inflexibilidade de Beckett em relação à conservação de cada vírgula e cada parêntese de
sua prosa. "Devo confessar", escreve o
diretor, num tom tipicamente lisonjeiro,
"que você é praticamente o único autor
cujas orientações de palco parecem ser
tão acertadas e tão integralmente parte
do que você escreve".
Não demora muito para Beckett recusar-se a autorizar uma encenação de
"Fim de Jogo" apenas com atrizes e irritar-se com "uma paródia escandalosa de
"Godot" encenada no Young Vic. Vou
tentar convencer a mim mesmo de que já
passei do ponto de me importar com isso". Ele chegou ao ponto de recusar a
Ingmar Bergman permissão para filmar
"Esperando Godot" porque não queria
que a peça fosse "bergmanizada".
Pouco após a morte de Schneider, em
1984, minha própria companhia, a American Repertory Theater, teve problemas
com Beckett quando a diretora Joanne
Akalaitis montou uma produção de
"Fim de Jogo" numa estação abandonada de metrô e encomendou para ela uma
abertura curta do músico Philip Glass.
Beckett protestou contra a "musicalização" de sua peça, teceu objeções à escolha de dois atores negros para os papéis
de Hamm e Nagg e, citando suas próprias descrições do cenário, escreveu que
"qualquer produção de "Fim de Jogo" que
ignore minhas instruções de palco me é
totalmente inaceitável".
Poucos discordam do fato de que as
primeiras encenações de uma peça merecem a atenção mais fiel e precisa possível. Foi por isso que Alan Schneider foi
um diretor tão ideal para as estréias das
obras de Beckett e que ele realmente fez
por merecer a gratidão do dramaturgo.
"No Author Better Served" não apenas
traça a crônica da relação quase simbiótica que existiu entre esse grande escritor
e seu discípulo fiel, como também acrescenta material epistolar inestimável ao
conjunto da obra de Beckett. A morte de
Schneider pôs fim à relação, mas ele rendeu homenagem a Beckett até mesmo
em seu derradeiro momento de vida.
Schneider morreu atropelado por uma
moto, em Londres, quando atravessava a
rua para colocar no correio mais uma
carta a seu grande amigo.
No Author Better Served
512 págs., US$ 35
Maurice Harmon (org.) Harvard
University Press (EUA).
Onde encomendar:
Em SP, na FNAC (tel. 0/xx/11/
867-0022), e, no RJ, na livraria
Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/
21/533-2237).
Robert Brustein é crítico e diretor teatral.
Tradução de Clara Allain.
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