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Ponto de fuga
A bela maneira
Jorge Coli
especial para a Folha
De 1510 a 1515, não muito mais, foi a
"crista estreita do Renascimento", como Wolfflin chamava o brevíssimo período plenamente clássico das artes.
Depois, começam as tensões, a dilatação inquietante das regras, o requinte
artificial das cores, a distorção paradoxal do espaço, o gosto pelo desequilíbrio. É o universo do "maneirismo".
Seu fascínio vertiginoso foi explorado
por estudos sem conta. Mas o livro de
Antonio Pinelli, "La Bella Maniera" (Einaudi), rompe com a fieira desses trabalhos. Antes de qualquer coisa, examina o maneirismo à luz de sua palavra
matriz: "maneira". Raramente uma noção classificatória teve vida tão longa na
história das artes. Nasce muito antes do
movimento a que veio denominar. No
século 14, com Ceninno Cennini, já é
polêmica, já está carregada de ambiguidades que anunciariam preconceitos e
prazeres perversos.
Pinelli retraça a história da palavra,
dialogando com a produção artística.
Situa o papel de Pontormo na constituição de um anticlassicismo subversivo e inconformado; retraça as formas
cortesãs e oficiais de um maneirismo
que se dissemina pelas cortes européias. Discute a fortuna do nome, seus
momentos condenados ou exaltados.
Nem manual, nem síntese: "La Bella
Maniera" é um livro decididamente
novo e exemplar. Ultrapassa seu próprio objeto. Traz implícita a reflexão do
que pode ser a inteligência da história
da arte: feixe complexo de elementos
significantes, trama que parte da filologia para atingir os comportamentos, as
condições de produção, e que solicita
os mais variados campos da cultura.
Referência - Algumas páginas discretas, dentro desses capítulos curtos e serenos que compõem "La Bella Maniera", atingem pontos cruciais. Pinelli
mostra o interesse do recuo metodológico, proposto por alguns especialistas,
diante da valorização que certas vanguardas artísticas fizeram do maneirismo no início do século 20. Isso seria
projeção histórica ingênua, transferência cultural que teria inoculado na percepção do "cinquecento" uma sensibilidade anacrônica. Recusá-la é prova de
louvável rigor filológico.
Mas Pinelli não se contenta. Exige um
processo integral de relativização histórica. Se uma época descobre outra, no
passado, é porque existem "laços obscuros" unindo dois períodos culturais
distanciados. Desprezar esses vínculos
pressupõe a convicção de um ponto absoluto, fora da história. Ou seja: é outro
anacronismo, em pecado de orgulho e
que se ignora.
Bonheur - Em 1936, o cineasta francês Jean Renoir (1894-1979) estava tão
próximo do Partido Comunista, que
fez um filme chamado "La Vie Est à
Nous" (A Vida Nos Pertence), onde a
figura de Stálin aparecia exaltada. Mas
Renoir era incapaz de ceder diante de
reduções ou de quaisquer esquemas interpretativos. Nada que simplificasse
sua visão generosa dos atos humanos
podia afetá-lo. Em 1937, portanto às
vésperas do segundo conflito mundial,
realiza "A Grande Ilusão". Um filme
premonitório que, passado durante a
Primeira Grande Guerra, anuncia um
pacifismo profundo. Renoir situa as diferenças de classes, cortes em sentido
horizontal que terminam por irmanar
os inimigos de mesma origem social.
Investe contra os nacionalismos, que
divide o mundo em fronteiras artificiais. Em cada homem encontra-se um
núcleo de razões, de convicções, de história pessoal e vivida. Essa individualidade irredutível e irresistível opõe-se às
determinantes arbitrárias, impostas
pela generalidade das nações, da política ou da guerra.
Ressurreição - "A Grande Ilusão" é
um dos maiores filmes de todos os tempos. Mas, nas cópias que conhecíamos
até agora, ele perdia em densidade
emotiva. Sua edição em DVD pela Criterion Collection restitui uma qualidade impensável de imagem e de som.
Mesmo quem conhece de cor o filme,
terá a sensação de descobri-lo pela primeira vez, numa vibração nova.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com
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