São Paulo, domingo, 16 de julho de 2000


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Ponto de fuga

A bela maneira

Jorge Coli
especial para a Folha

De 1510 a 1515, não muito mais, foi a "crista estreita do Renascimento", como Wolfflin chamava o brevíssimo período plenamente clássico das artes. Depois, começam as tensões, a dilatação inquietante das regras, o requinte artificial das cores, a distorção paradoxal do espaço, o gosto pelo desequilíbrio. É o universo do "maneirismo". Seu fascínio vertiginoso foi explorado por estudos sem conta. Mas o livro de Antonio Pinelli, "La Bella Maniera" (Einaudi), rompe com a fieira desses trabalhos. Antes de qualquer coisa, examina o maneirismo à luz de sua palavra matriz: "maneira". Raramente uma noção classificatória teve vida tão longa na história das artes. Nasce muito antes do movimento a que veio denominar. No século 14, com Ceninno Cennini, já é polêmica, já está carregada de ambiguidades que anunciariam preconceitos e prazeres perversos.
Pinelli retraça a história da palavra, dialogando com a produção artística. Situa o papel de Pontormo na constituição de um anticlassicismo subversivo e inconformado; retraça as formas cortesãs e oficiais de um maneirismo que se dissemina pelas cortes européias. Discute a fortuna do nome, seus momentos condenados ou exaltados. Nem manual, nem síntese: "La Bella Maniera" é um livro decididamente novo e exemplar. Ultrapassa seu próprio objeto. Traz implícita a reflexão do que pode ser a inteligência da história da arte: feixe complexo de elementos significantes, trama que parte da filologia para atingir os comportamentos, as condições de produção, e que solicita os mais variados campos da cultura.

Referência - Algumas páginas discretas, dentro desses capítulos curtos e serenos que compõem "La Bella Maniera", atingem pontos cruciais. Pinelli mostra o interesse do recuo metodológico, proposto por alguns especialistas, diante da valorização que certas vanguardas artísticas fizeram do maneirismo no início do século 20. Isso seria projeção histórica ingênua, transferência cultural que teria inoculado na percepção do "cinquecento" uma sensibilidade anacrônica. Recusá-la é prova de louvável rigor filológico.
Mas Pinelli não se contenta. Exige um processo integral de relativização histórica. Se uma época descobre outra, no passado, é porque existem "laços obscuros" unindo dois períodos culturais distanciados. Desprezar esses vínculos pressupõe a convicção de um ponto absoluto, fora da história. Ou seja: é outro anacronismo, em pecado de orgulho e que se ignora.

Bonheur - Em 1936, o cineasta francês Jean Renoir (1894-1979) estava tão próximo do Partido Comunista, que fez um filme chamado "La Vie Est à Nous" (A Vida Nos Pertence), onde a figura de Stálin aparecia exaltada. Mas Renoir era incapaz de ceder diante de reduções ou de quaisquer esquemas interpretativos. Nada que simplificasse sua visão generosa dos atos humanos podia afetá-lo. Em 1937, portanto às vésperas do segundo conflito mundial, realiza "A Grande Ilusão". Um filme premonitório que, passado durante a Primeira Grande Guerra, anuncia um pacifismo profundo. Renoir situa as diferenças de classes, cortes em sentido horizontal que terminam por irmanar os inimigos de mesma origem social.
Investe contra os nacionalismos, que divide o mundo em fronteiras artificiais. Em cada homem encontra-se um núcleo de razões, de convicções, de história pessoal e vivida. Essa individualidade irredutível e irresistível opõe-se às determinantes arbitrárias, impostas pela generalidade das nações, da política ou da guerra.

Ressurreição - "A Grande Ilusão" é um dos maiores filmes de todos os tempos. Mas, nas cópias que conhecíamos até agora, ele perdia em densidade emotiva. Sua edição em DVD pela Criterion Collection restitui uma qualidade impensável de imagem e de som. Mesmo quem conhece de cor o filme, terá a sensação de descobri-lo pela primeira vez, numa vibração nova.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com


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