São Paulo, domingo, 16 de agosto de 1998

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AUTORES
A cibercultura é hoje herdeira legítima das idéias progressistas do iluminismo
Revolução virtual

PIERRE LÉVY
especial para a Folha

Em contraste com a idéia pós-moderna do declínio das idéias do iluminismo, acho que a cibercultura pode ser vista como herdeira legítima (embora distante) do projeto progressista dos filósofos do século 17. De fato, ela valoriza a participação das pessoas em comunidades de debate e argumentação. Na linha reta das morais da igualdade, ela incentiva uma forma de reciprocidade essencial nas relações humanas. Desenvolveu-se a partir de uma prática assídua de trocas de informações e conhecimentos, coisa que os filósofos do iluminismo viam como principal motor do progresso.
Portanto, se jamais tivéssemos chegado a ser modernos (1), a cibercultura não seria pós-moderna, mas se inseriria perfeitamente na continuidade dos ideais revolucionários e republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade. A diferença é apenas que, na cibercultura, esses "valores" se encarnam em dispositivos técnicos concretos. Na era das mídias eletrônicas, a igualdade se concretiza na possibilidade de cada um transmitir a todos; a liberdade toma forma nos softwares de codificação e no acesso a múltiplas comunidades virtuais, atravessando fronteiras, enquanto a fraternidade, finalmente, se traduz em interconexão mundial.
Assim, longe de ser resolutamente pós-moderno, o ciberespaço pode se apresentar como uma espécie de "materialização técnica dos ideais modernos". Em especial, a evolução contemporânea da informática constitui uma espantosa realização da meta marxista de apropriação dos meios de produção pelos próprios produtores. Hoje a "produção" consiste essencialmente em simular, em tratar a informação, em criar e difundir mensagens, em adquirir e transmitir conhecimentos, em se coordenar em tempo real. Consequentemente, os computadores pessoais e as redes numéricas efetivamente colocam as principais ferramentas da atividade econômica nas mãos dos indivíduos.
Mais ainda, se o espetáculo (o sistema midiático), segundo os situacionistas, é o cúmulo da dominação capitalista (2), então o ciberespaço realiza uma verdadeira revolução, na medida em que permite -ou vai permitir dentro em breve- a cada um não mais precisar de editor, produtor, difusor, intermediários de modo geral para divulgar seus textos, sua música, seu mundo virtual ou qualquer outro produto de seu espírito. Em contraste com a impossibilidade de responder e o isolamento dos telespectadores, o ciberespaço oferece as condições para uma comunicação direta, interativa e coletiva.
A realização quase técnica dos ideais da modernidade coloca em evidência imediata seu caráter não irrisório, mas parcial, insuficiente. Pois está claro que nem a informática pessoal nem o ciberespaço, por mais generalizados que sejam entre o conjunto dos seres humanos, não resolvem, por sua simples existência, os principais problemas da vida em sociedade. É verdade que concretizam de maneira prática as novas formas de universalidade, fraternidade, de estar juntos, de reapropriação pela base dos instrumentos de produção e de comunicação.
Mas, ao mesmo tempo, eles desestabilizam rapidamente (e frequentemente de maneira violenta) as economias e as sociedades. Ao mesmo tempo em que destroem os antigos poderes, participam da criação de poderes novos, menos visíveis e mais instáveis, mas não menos virulentos.
A cibercultura se apresenta como a solução parcial dos problemas da época precedente, mas ela própria constitui um imenso campo de problemas e conflitos para os quais ainda não se configura claramente nenhuma perspectiva de solução global. A relação com o saber, o trabalho, o emprego, o dinheiro, a democracia ou com o Estado terá que ser reinventada, para citar apenas algumas das formas sociais mais brutalmente questionadas.
Em um sentido, a cibercultura dá continuidade à grande tradição da cultura européia. Em outro, ela transforma o conceito de cultura.


Notas
1. Ver a obra de Bruno Latour "Jamais Fomos Tão Modernos" (Ed. 34);
2. Ver "A Sociedade do Espetáculo" (Ed. Contraponto), de Guy Debord.


Pierre Lévy é sociólogo e historiador da ciência, professor do departamento de hipermídia da Universidade de Paris 8, autor de "O Que É o Virtual" (Ed. 34) e "A Inteligência Coletiva" (Loyola).
Tradução de Clara Allain.



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