São Paulo, domingo, 16 de agosto de 1998

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POLÍTICA
O historiador britânico Quentin Skinner, que se diz não-marxista, defende o pensamento de Marx como crítica às injustiças do capitalismo
O anjo e a história

Folha Imagem
O cientista político e historiador Quentin Skinner, autor de "As Fundações de Pensamento Político Moderno"


MARIA LÚCIA PALLARES-BURKE
especial para a Folha

Desde outubro de 1997 a Universidade de Cambridge tem um novo "regius professor" em história: Quentin Skinner. A nomeação (feita diretamente pela rainha Elizabeth) para essa prestigiosa cátedra criada no século 18 pelo rei George 2º representa a coroação da carreira rápida e brilhante que Skinner ali iniciou aos 21 anos de idade.
Sua escolha para a cadeira de ciência política da mesma universidade, em 1978, já representara o reconhecimento de sua contribuição para a metodologia e prática da história das idéias em geral e da filosofia política em particular. Desde o fim dos anos 60, seus primeiros artigos já anunciavam um pensamento polêmico e inovador e atraíam reações tanto altamente positivas quanto desfavoráveis.
O "reinado" de Skinner, segundo alguns, já teria se iniciado nos anos 70, quando seus estudos históricos sobre as idéias políticas do Renascimento e suas reflexões filosóficas e metodológicas passaram a nortear um debate extremamente enriquecedor e frutífero, que ultrapassou as fronteiras do mundo anglo-americano.
O livro "The Foundations of Modern Political Thought" (As Bases do Pensamento Político Moderno), publicado em 1978 e premiado com o Wolfson Literary Award, consolidou o papel de Skinner como referência obrigatória na historiografia das idéias políticas, o que foi referendado pela repercussão de uma série de artigos inovadores e provocantes e pelo sucesso de seu pequeno livro sobre Maquiavel (1981) e de seu mais recente e substancioso trabalho sobre Hobbes, "Reason and Rhetoric in the Philosophy of Hobbes" (Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, 1996).
Além das qualidades intelectuais, o que deve ter contribuído para que Skinner fosse escolhido para ocupar o mais alto posto na hierarquia acadêmica britânica foi o fato de ele ser o que se pode chamar de um autêntico "Cambridge man".
Tendo iniciado seus estudos em 1959 como aluno do Caius College (um dos 31 "colleges" da Universidade de Cambridge) e entrado na carreira universitária três anos depois, como membro de outro college renomado, o Christ's -instituição fundada em 1442, a que pertenceu o autor de "Paraíso Perdido", John Milton-, Skinner é considerado um cambridgiano devotado ao espírito e às regras dessa universidade quase milenar. Sua identificação com Cambridge chega ao ponto de alguns colegas pensarem ser ele o inspirador do personagem principal de um romance policial (nada bom, aliás) que retrata alguns aspectos da vida dessa cidade universitária.
Assoberbado com as tarefas administrativas que acompanham o novo posto e com o atendimento dos muitos estudantes que o procuram, haja vista sua fama de professor dedicado, Skinner não titubeou, entretanto, em conceder esta entrevista à Folha.
No belo conjunto de salas que ocupa no Christ's College, discorreu longamente sobre sua obra, seus críticos, sua metodologia, seus interesses, sua visão sobre o marxismo, a idéia de liberdade, as tendências historiográficas da atualidade etc.
Extremamente simpático e gentil, ao mesmo tempo que formal e sério, Skinner impressiona pela fluência e entusiasmo com que fala sobre seus temas de estudo. A meticulosa ordem dos papéis, livros e objetos de sua sala parece se reproduzir na ordem e clareza de suas idéias. Sua fala rápida e articulada, sem digressões ou hesitações, não difere muito da prosa elegante e límpida que caracteriza sua obra histórica e filosófica. Fazendo uma analogia entre a destreza da fala de Skinner e o conceito de "atos linguísticos", central em sua teoria da interpretação, um de seus colegas comentou brincando: "Quando fala, Skinner dá a impressão de ser um computador programado para produzir "atos linguísticos' de grande força e impacto".
Folha - O que o motivou a se tornar historiador do pensamento político?
Quentin Skinner -
A pessoa que primeiramente me motivou foi um excelente professor que tive na escola secundária e que me fez ler vários textos clássicos de teoria política inglesa. Foi com ele que trabalhei pela primeira vez com a "Utopia" de Thomas More e com o "Leviatã" de Hobbes. A partir daí meu interesse foi estimulado pelo excelente ensino que tive em Cambridge, especialmente na área de história intelectual.
Fui especialmente influenciado por duas pessoas durante o meu curso de graduação: por John Burrow, então em início de carreira (e atualmente professor de Oxford), que foi o tutor que me ensinou de forma mais incrivelmente estimulante e desafiadora; e por Peter Laslett, que me impressionou pelas suas aulas magistrais e pela sua nova edição do "Two Treatises of Government" (Dois Tratados sobre o Governo), de John Locke, edição que representou um novo marco no estudo do pensamento político.
Os textos de Locke haviam sido até então vistos como uma justificação da Revolução Gloriosa de 1688 e como uma celebração da monarquia constitucional. O que Laslett conseguiu provar com suas descobertas foi que isso não era absolutamente verdade, pois Locke os havia escrito dez anos antes da Revolução, durante a ascensão do absolutismo de Carlos 2º. O que particularmente me impressionou no trabalho de Laslett foi sua insistência de que não deveríamos pensar em um texto isolado das circunstâncias em que surgiu. No caso de Locke, seus textos haviam, de fato, se tornado as obras fundadoras do constitucionalismo britânico, mas sua identidade histórica nada tinha a ver com isso. Locke, ao escrevê-los, estava se dirigindo a um outro período e com outras questões em mente.
Folha - Seus críticos já o descreveram como idealista, materialista, positivista, relativista, historicista e até mesmo como um "simples metodólogo". Como o sr. se descreveria?
Skinner -
Isso não é fácil. De todos esses títulos, o que eu menos rejeitaria é o de relativista, mas só se isso for entendido como sendo diferente de um relativista conceitual, que renego totalmente. O que quero dizer é que, no meu entender, os historiadores que se interessam por compreender culturas em que as práticas e crenças são muito diferentes das suas próprias, são, em certo sentido, relativistas suaves. Eles vêem seu projeto como sendo o de penetrar em uma cultura diferente e tentar traduzir os termos dessa cultura de um modo que é, ao mesmo tempo, fiel a ela e inteligível para outras.
Quanto aos demais títulos, eu diria que sempre estive interessado na tradição idealista de filosofia e que todos os meus heróis vêm de um tipo de tradição britânica antipositivista.
Um dos autores que mais influenciaram diretamente minha prática teórica como historiador foi Collingwood, e, se ele era um idealista, então eu também não rejeitaria esse título. No entanto, o que gostaria é de me descrever de acordo com o título que dei para uma coleção de história intelectual que editei para a Cambridge University Press: "Idéias em Contexto". Ou seja, intertextualidade e contexto são meus maiores interesses. Eu diria, portanto, que sou um autor que aborda a história intelectual de um modo intertextualista e contextualista.
Folha - Considerando a importância que dá às intenções do autor para recuperar a identidade histórica de um texto, o sr. poderia falar um pouco sobre sua próprias intenções ao escrever o que parece ser seu manifesto de 69, "Meaning and Understanding in the History of Ideas" (Significado e Entendimento na História das Idéias)? A questão básica de toda a sua obra poderia ser localizada aí?
Skinner -
Sim, sem dúvida o que você chama acertadamente de meu manifesto tem norteado todo o meu trabalho. Tive imensa dificuldade em publicá-lo, várias revistas o rejeitaram, e foi só após dois anos que acabou sendo aceito por "History and Theory". É verdade que foi escrito para chocar e irritar, o que conseguiu. Jamais escreveria daquela forma hoje em dia, mesmo porque deixou de ser necessário combater o que então combati.
O artigo tinha dois alvos: solapar duas abordagens de história intelectual. Não queria simplesmente dizer que eu tratava o assunto de forma diferente, mas sim mostrar que aquelas abordagens eram totalmente equivocadas. A primeira delas era a que acreditava que os textos filosóficos estavam numa espécie de eterno presente e que eram matéria auto-suficiente, bastando uma análise textual para os entender.
O que tentei foi argumentar que há muitas coisas importantes sobre os textos que precisam ser estudadas, além dos próprios textos, se se quiser efetivamente compreendê-los. Caso contrário não seria possível compreender quais haviam sido suas motivações, ao que eles se referiam e se estavam, por exemplo, satirizando, repudiando, ridicularizando ou aceitando outras idéias e argumentações.
O segundo alvo que meu "manifesto" procurava atingir era a tradição marxista da história intelectual, o que se tornava então mais necessário devido à recente publicação de uma brilhante interpretação marxista da teoria política do século 17, "The Political Theory of Possessive Individualism" (1964), de C.B. Macpherson. Apesar da grande perspicácia com que os textos de Hobbes e Locke eram ali estudados, o que me perturbou muito foi a idéia de que esses autores inevitavelmente refletiam a estrutura social, já que esta é geradora de doutrinas. Mas creio que não fui muito feliz em explicar o que não me agradava nessa visão.
Folha - O sr. rejeita o marxismo em bloco ou vê algum valor no trabalho de Marx e de alguns de seus seguidores?
Skinner -
Não só não rejeito o marxismo em bloco como acho lamentável que a teoria social contemporânea o tenha desacreditado tão integralmente. Mas, dada a sua importância, gostaria de falar mais longamente sobre três aspectos dessa filosofia social que foram tremendamente importantes e valiosos para mim.
O primeiro é o aspecto metodológico. Acredito que todos nós em nossa sociedade internalizamos a essa altura um pressuposto fundamental dessa metodologia, isto é, que o ser social determina a consciência em algum nível e num certo grau. É claro que o problema surge quando queremos determinar o grau e o nível exatos dessa determinação.
O segundo aspecto diz respeito ao marxismo como filosofia e a pertinência de seu diagnóstico social. Não se pode negar que ele nos forneceu vocabulário e conceitos explanatórios valiosos para falarmos sobre as relações sociais de qualquer sociedade. Ninguém hoje se poria a investigar seriamente uma sociedade, quer passada ou presente, sem empregar conceitos marxistas como alienação e exploração.
O terceiro aspecto, decorrente desses, é que nunca certas previsões do marxismo pareceram mais verdadeiras do que hoje; o que não deixa de ser bastante irônico, se considerarmos que isso se dá no momento em que o marxismo está desacreditado como filosofia social. Marx não estava, obviamente, pensando em escala global, mas o relacionamento do Primeiro com o Terceiro Mundo -com os ricos ficando cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres-, exatamente pelos problemas de exploração do capital que apontou, é um desafio cada vez mais sério para o novo milênio.
Mas, tendo dito isto, devo confessar que, se não me considero um antimarxista, vejo-me, entretanto, como um não-marxista. De um lado, porque me oponho frontalmente à sua teoria da ideologia e não considero que as crenças, especialmente as crenças religiosas, sejam epifenômenos, isto é, produtos de circunstâncias sociais.
Nos meus primeiros escritos quis exatamente me opor a um tipo particular de marxismo, extremamente poderoso então (praticado por grandes historiadores, como Christopher Hill e Macpherson), e identificar o erro desta concepção. De outro, porque o positivismo dessa filosofia a torna antiquada e inadequada para o estudo do mundo social. Marx ainda habita um mundo em que há consciências verdadeiras e falsas. Mas, numa cultura pós-moderna, em que todas as consciências são vistas como construções, a questão que nos parece hoje pertinente é como negociá-las, já que todas elas podem ter alguma contribuição a dar ao mundo social. E, nesse caso, a tarefa histórica é descobrir a racionalidade dessas construções estudando-as internamente. Ora, o "verdadeiro-falso" da abordagem marxista não permite tal metodologia histórica.
Finalmente, queria insistir que o que permanece como extremamente nobre e valioso no marxismo é seu diagnóstico do capitalismo. É verdade que descobrimos que esse é o sistema mais eficiente, talvez mesmo o único capaz de garantir prosperidade para um número imenso de pessoas. No entanto, há grandes custos humanos embutidos nessa eficiência. O fato de o comunismo ter sido desacreditado não significa que o capitalismo não seja também desacreditável. Ele continua a ser um sistema muito injusto, assim como o marxismo continua a ser um valioso instrumento crítico dessas injustiças.
Folha - O tipo de história intelectual que pratica já foi descrita como "uma revolução na historiografia do pensamento político". Quão revolucionária o sr. acha que sua abordagem realmente é?
Skinner -
Na epígrafe a "Investigações Filosóficas", Wittgenstein diz que todos os avanços são menos importantes do que parecem. Acho que muitos historiadores da minha geração mudaram o modo de fazer história intelectual, mas é fácil verificar de onde eles estavam tirando suas idéias. Assim, não considero que fiz uma revolução.
É verdade que quando comecei minha carreira havia pouquíssimos historiadores exemplares. Devo lembrar dois nomes, no entanto, que me serviram de modelo. Collingwood era um de meus heróis e desde que li sua autobiografia no colegial fiquei profundamente impressionado por ele. Quando comecei a pesquisar achei fascinante seguir sua idéia de que todos os trabalhos de arte, que inclui também filosofia e literatura, são objetos intencionais e que comprendê-los significa compreender os propósitos que os sustentam. Estes não estão escritos na superfície da pintura ou do texto, mas é parte da tarefa hermenêutica tentar descobri-los. Collingwood foi, portanto, exemplar com sua abordagem teórica.
Outro pensador que me foi exemplar foi John Pocock, que parecia ser Collingwood posto em ação, praticando tudo aquilo que a teoria deste pregava. Assim, se parece que houve uma revolução na historiografia da história intelectual, é porque, de fato, fora os textos de Pocock e Laslett, não havia nada mais de interessante produzido nessa área nos anos 50. E foi então, na minha época, que as coisas começaram a mudar.


Muitos de nossos conceitos comuns foram no passado entendidos diferentemente



Folha - Seu trabalho criou toda uma escola de seguidores, aqui e no estrangeiro, mas também, como o sr. mesmo diz, "um grupo constrangedoramente numeroso de críticos". Quão importantes têm sido esses críticos para o desenvolvimento de suas idéias?
Skinner -
Há uma crítica a meu trabalho filosófico que me fez reconsiderar bastante minha posição sobre a teoria da interpretação. No livro editado por J. Tully, "Meaning & Context", uma das críticas mais recorrentes diz exatamente respeito à minha visão sobre interpretação, o que me fez perceber que não havia formulado meu pensamento tão cuidadosamente quanto deveria.
Na introdução ao meu recente livro sobre Hobbes procurei, pois, reformular meu pensamento a fim de avançar o argumento e protegê-lo contra aquela crítica. Nunca pretendi negar a pertinência das críticas de Derrida à idéia de que os autores têm autoridade sobre seus próprios textos. O que sempre quis defender foi uma posição que é erroneamente confundida com o projeto tradicional da hermenêutica. Quando falo da intencionalidade dos autores não estou me referindo ao significado dos textos ou elocuções, mas, sim, ao significado do ato de escrever o texto ou proferir uma elocução.
Na verdade, minha teoria da interpretação, diferentemente de outras teorias mais tradicionais, dá grande ênfase ao que chamo de atos linguísticos. Trata-se, neste caso, de saber o que o autor queria com o texto, o que significa também lidar com as intenções do autor, mas num sentido ao qual não se podem aplicar as críticas que me foram dirigidas. As críticas que sofri foram, pois, úteis para que eu percebesse mais claramente a importância da distinção a que me referi e para que eu tomasse consciência sobre aquilo que compartilho com os pós-modernistas e sobre o que é peculiar à posição que defendo.
Folha - O título de seu livro "The Foundations of Modern Political Thought" parece anunciar uma abordagem, por assim dizer, teleológica. No entanto, o texto em si se pretende um manifesto para um método contextualista. Como o senhor concilia esse dois aspectos aparentemente contraditórios?
Skinner -
Essa metáfora apresenta, de fato, certas dificuldades, pois é inerentemente teleológica: fundações são fundações de estruturas. Há, pois, uma teleologia embutida no livro que me aborrece agora. Não escreveria desse modo se o fizesse hoje. Escrito nos fins dos anos 60 e início dos 70, este livro é, em certo sentido, datado. Na linha inaugurada pela visão weberiana da formação do Estado, tentava contar a história de como, da destruição da Europa feudal e católica, surgiu a idéia universalista de um Estado secular e pretensamente neutro. É verdade que foi também escrito à luz do meu "manifesto" de 69, procurando pôr aquela teoria (sobre a qual falamos antes) em prática. No entanto, admito que foi muito mais desenvolvimentista do que a teoria me permitia.
Em minha defesa, todavia, devo dizer que, considerando a complicada transformação que queria estudar, a teleologia do meu título não me levou a escrever de um modo gravemente equivocado; mas me fez, sim, escrever sobre toda a tradição do neo-escolasticismo de um modo um tanto seletivo. É aí que reside, a meu ver, a maior fraqueza de meu livro. Eu mais ou menos forcei os textos a contarem a minha história, esquecendo que havia outras histórias que eles contavam e que tratavam de questões cruciais para eles, como, por exemplo, as noções de império e justiça.
Eu, portanto, os recrutei para uma história que não era a deles, e, nesse aspecto, meu livro violou meus próprios princípios. Mas, de um modo geral, acho que ele seguiu meus princípios e basicamente tentou entender os grandes textos do Renascimento a partir de seu próprio contexto intelectual. A metodologia antitextualista e pró-intertextualista que defendo em meu "manifesto" foi, acredito, bem ilustrada por grande parte de meu livro.
Folha - Seu livro sobre razão e retórica em Hobbes parece ter uma certa analogia com a interpretação de Starobinski sobre Rousseau como sendo um pensador que encontrou "o remédio no mal". O senhor concorda que a atitude de Hobbes em relação à retórica se explica de forma análoga?
Skinner -
Nunca havia pensado sobre esse paralelo, mas o acho ótimo. Hobbes foi educado na tradição retórica como todos os que foram para a escola na Inglaterra elisabetana. Quando ele começou a se interessar pelas novas ciências e se encontrou com cientistas como Galileu e Mersenne, ficou seduzido pela idéia de que o método da ciência dedutiva poderia ser aplicado a todas as formas de investigação humana. Seu primeiro trabalho sobre a ciência civil, o "De Cive", reflete, no meu entender, seus compromissos científicos. Querendo que esta ciência se constituísse como um sistema fechado, completamente dedutivo, ele decide expô-la no estilo mais anti-retórico e simples possível. Mas, anos depois, percebe-se que Hobbes estava frustrado com a recepção de seu trabalho filosófico, especialmente do "De Cive", pois, segundo ele, a verdade de sua filosofia não conseguira persuadir ninguém. É nesse momento que, no meu entender, ele se pergunta se as técnicas persuasivas não poderiam ser postas a serviço da ciência.
Sim, pensando sobre isso, de fato se pode dizer que essa sua nova percepção o fez tentar transformar a doença em parte do remédio. Nunca, na verdade, ele aprovou a arte retórica, que, com seu apelo às emoções, era a antítese do modelo matemático-geométrico que via como exemplar por apelar à razão. No fundo, ele detesta a retórica tanto quanto Platão e pelas mesmas razões expostas por Sócrates no diálogo "Górgias": a retórica é o oposto da educação, pois, enquanto esta é racional, a retórica é persuasão, isto é, completamente irracional.
É, pois, premido pelo insucesso de seu estilo anti-retórico que Hobbes se dispõe a usar no "Leviatã" os métodos da persuasão como apoio para os métodos da razão. Recursos retóricos como o humor, a sátira e o ridículo -e que associam o "Leviatã" aos textos de grandes satiristas do Renascimento, como Montaigne e Rabelais- são, portanto, estratégias utilizadas por Hobbes para difundir a verdade de sua ciência civil.
Folha - Grande parte de seu trabalho parece girar em torno de dois pensadores políticos que são famosos como realistas cínicos: Maquiavel e Hobbes. Por que essa atração por eles e não por outros mais idealistas, como Locke ou Rousseau?
Skinner -
Já pensei muito sobre isso e diria que há uma razão substantiva e outra metodológica que justificam esta minha opção. A substantiva é que, como historiador, eu tenho me interessado por figuras que não considero pessoalmente atraentes. Na verdade, faço questão de trabalhar sobre modos de pensar com os quais eu não tenho grande afinidade emocional, que vão contra a minha própria natureza.
Essa é também uma atitude que procuro ter em meu próprio cotidiano. Por exemplo, assino a revista "The Economist" há bastante tempo, apesar de suas posições ideológicas me fazerem cuspir sangue toda vez que a leio. No entanto, insisto em assiná-la não só por considerá-la a revista da atualidade mais bem informada, mas também porque acho que irá me educar muito mais do que se eu somente lesse aquilo com que concordo.
Já a razão metodológica para essa escolha recua à época em que descobri o trabalho de Peter Laslett sobre Locke e em que me impus o desafio de provar que, a despeito do que ele pensava, o que mostrara a respeito da obra de Locke poderia ser mostrado a respeito de qualquer outro trabalho de teoria política. Assim, iniciei meus estudos sobre Hobbes motivado pelo desejo de provar que havia um contexto polêmico e político imediato a ser explorado e que era aí que seriam encontradas as motivações de sua obra. Acredito ter, de fato, mostrado que ela surge como resposta à questão que se criara com a execução do rei Carlos 1º e a vitória da Revolução de Cromwell: um novo governo deve ser obedecido mesmo quando parece ser um governo usurpador?


O humor e a sátira são usados por Hobbes para difundir a sua ciência civil


Folha - Sua idéia de que o historiador deve ser "um anjo registrador e não um juiz condenador" parece supor que a neutralidade é atingível por aquele que diferencia seus papéis de homem e de intelectual. O sr. poderia falar sobre as dificuldades e conveniências dessa diferenciação? A neutralidade de um historiador é sempre uma qualidade desejável e positiva?
Skinner -
Quando digo que a tarefa do historiador é a do anjo registrador quero dizer que sua aspiração deve ser a de recapturar o passado nos seus próprios termos, deixando de lado, no possível, as dúvidas pós-modernistas quanto à total viabilidade disso. No entanto, criticaria aqueles que, ao selecionar seu objeto de estudo, não se guiam pela consideração do que possa ser importante, quer no sentido moral, político ou cultural.
O que quero dizer é que nossos valores devem nos motivar a escolher os assuntos que escolhemos estudar. Mas, uma vez feita a escolha, a recuperação do passado exige grande imparcialidade. Há um caso que provocou grande debate nos EUA nos anos 80 e que exemplifica o que quero dizer. Um jovem historiador de tendência marxista, chamado Abraham, argumentou que Hitler subira ao poder com a ajuda dos grandes capitalistas da República de Weimar; seus críticos, no entanto, afirmaram que para sustentar sua tese Abraham falsificara os documentos. Não pretendo corroborar essa crítica (já que o autor teve seus defensores), mas ilustrar o que está em jogo quando se confunde motivação com investigação imparcial.
Evidentemente é da maior importância compreender como as democracias são destruídas e como elas são substituídas pela tirania. Assim, a investigação de como Hitler ascendeu ao poder tem uma motivação altamente honrosa e moral. Mas isso não significa que possamos entrar nos arquivos com o julgamento já feito, com a resposta já dada. A motivação deve, pois, ser mantida à parte do que os documentos dizem. Nesse ponto eu não sou tão pós-modernista a ponto de pensar que os documentos nos permitem dizer qualquer coisa. Considero que eles nos constrangem num alto grau: há neles silêncios e proposições, e estas não são suscetíveis de qualquer interpretação.
Folha - No seu último livro, "Liberty before Liberalism", os historiadores são aconselhados a se abster de qualquer manifestação de entusiasmo ou indignação, deixando isso para os leitores. No entanto, o sr. parece infringir suas próprias regras quando julga o ideal republicano de liberdade, com sua ênfase no dever, preferível às "formas libertárias do liberalismo contemporâneo", com sua obsessão pelos direitos e interesses individuais. Não seria justo dizer que, nesse caso, o leitor Skinner e o historiador Skinner se confundem?
Skinner -
Sim, concordo que violei a distinção que advoguei entre motivação e prática. Gostaria, no entanto, de dizer em minha defesa que há dois modos diferentes de se escrever história. Há aqueles que estão motivados a encontrar no passado determinados valores e que se propõem a escavá-los à superfície. E há aqueles historiadores que se envolvem em investigações acadêmicas neutras, mas que, no decorrer de seus estudos, se deparam com estruturas de pensamento esquecidas que lhe parecem moralmente valiosas e merecedoras de serem escavadas e repensadas pela atualidade.
Eu acredito que, no meu caso, essa preferência que manifestei resultou de uma pesquisa bastante imparcial que fiz sobre o desenvolvimento do republicanismo do Renascimento como pano de fundo para a compreensão de Maquiavel. Meu interesse inicial era entender os paradoxos históricos da idéia de liberdade, brilhantemente trabalhados pela teoria moral do Renascimento; logo, no entanto, me apaixonei por eles e passei a vê-los como profundamente instigantes ainda hoje. Assim, quando me pus a escrever sobre liberdade e cidadania estava motivado pelo desejo de apresentar a um público obcecado com noções de direitos e interesses, um quadro completamente diferente em que a idéia de dever era prioritária e em que o cidadão não era visto como um simples consumidor do governo.


O historiador deve ser o anjo registrador do passado nos seus próprios termos


Folha - Se, como afirma um de seus mentores, Collingwood, "toda história é história do pensamento", pois penetrar no interior dos eventos e detectar os pensamentos que eles expressam é o objetivo da história, o que distingue a história intelectual das demais?
Skinner -
O que levou Collingwood a fazer tal afirmação foi a idéia, bastante correta, aliás, de que as ações humanas são o produto de pensamentos e motivações. No entanto, acho que ele exagerou ao afirmar que todos os historiadores estão interessados em ações. Muitos estão, na verdade, interessados em processos e não em ações, em correlações estatísticas e desenvolvimentos demográficos e não em eventos. No entanto, no que diz respeito à história intelectual sua proposição é bastante frutífera, mas de um modo que teria surpreendido o próprio Collingwood. Quando ele falou que toda história é história do pensamento eu acredito que ele pensava que, ao repensarmos o que os outros pensaram, poderíamos descobrir o que eles quiseram dizer.
Ora, eu não acredito que seja tarefa do intérprete de um texto complexo descobrir as intenções do autor. Nesse ponto eu sou pós-modernista o suficiente para acreditar que um texto terá muitos outros significados, além do que autor possa ter intencionado. No entanto, outra coisa bem diferente e possível é descobrirmos o que o autor pretendeu fazer com o que disse. Nesse caso o que nos interessa é o que chamo de atos linguísticos. O que quero dizer é que um discurso, além de ter um significado, é também uma ação. Para os patinadores, por exemplo, a frase "o gelo lá está muito fino", além de ter um significado, tem também a força de um ato de advertência. O que me parece bastante frutífero na observação de Collingwood é a sugestão de que, se todas as linguagens são atos, então os mesmos critérios que se aplicam à explicação de qualquer ato voluntário também se aplicam à interpretação da fala e da escrita.
Folha - O sr. tem insistido em que a história intelectual não tem nenhuma lição para nos dar e que exigir do estudo do passado a solução para nossos problemas não somente é um "erro metodológico, mas também um erro moral". O que, no seu entender, justifica o estudo do passado?
Skinner -
Talvez eu tenha feito uma afirmação muito exagerada, mas o que quis foi dizer que, desde que comecei minha carreira de historiador, sempre procurei abordar o passado segundo o ponto de vista de seus participantes, ao invés de tentar abordá-lo a partir de meu próprio ponto de vista.
Ora, essa é uma posição muito diferente daquela que procura estudar o passado a fim de prover a atualidade com uma lista de textos com algo a nos oferecer. Fui, então, muitas vezes acusado de transformar o estudo da teoria política num empreendimento meramente antiquário. No entanto, devo dizer que jamais supus que não houvesse um propósito moral no que fazia. Ao contrário, acho que, tentando reconstruir as teorias passadas nos seus próprios termos, nós podemos atingir uma compreensão mais rica de nossa herança intelectual e de nosso relacionamento com ela.
O interesse moral do estudo do passado está, em meu entender, no reconhecimento de que muitos de nossos conceitos comuns foram anteriormente entendidos de um modo completamente diferente do nosso. É isso exatamente que constitui um desafio para nós: descobrir as razões, muitas vezes ideológicas, pelas quais algumas de nossas tradições se tornaram hegemônicas, enquanto outras foram desativadas. Este é, para mim, um modo de tentar enfrentar a difícil tarefa de ver além de nossas próprias ideologias. Sim, pois como Gramsci bem apontou, a dificuldade de nos libertarmos das ideologias hegemônicas de nossa época é uma característica de nossa condição.
Folha - Dentre os livros de sua área de interesse, quais os que mais gostaria de ter escrito?
Skinner -
Se isso significa perguntar que livros gostaria de escrever se fosse mais talentoso, então diria que tenho, sim, meus heróis, meus modelos. A edição que Peter Laslett fez de Locke me parece um modelo de como deve ser feita uma edição crítica de uma grande obra de teoria política. O livro de Keith Thomas, "Religião e o Declínio da Magia", publicado em 1971, ainda me parece uma obra-prima de história. O "Machiavellian Moment", de John Pocock, foi também um livro que me influenciou diretamente. Escritores como esses fazem mais ou menos o mesmo que eu faço, mas o fazem muito melhor do que eu. Eles são mais eruditos, mais imaginativos, e eu certamente adoraria ser tão bom quanto eles.


Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke é professora de história da educação na Faculdade de Educação da USP e autora, entre outros, de "The Spectator - O Teatro das Luzes - Diálogo e Imprensa no Século 17" (Hucitec) e "Lísia Floresta, o Carapuceiro e Outros Ensaios de Tradução Cultural" (Hucitec).



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