São Paulo, domingo, 16 de agosto de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice FOTOGRAFIA A experiência pura
LAYMERT GARCIA DOS SANTOS
Deslocando-nos para o mato, o fotógrafo e o espectador se encontram e se perdem no espaço-tempo ianomami, em meio a uma natureza viva. Tudo se passa como se tivéssemos entrado num vórtice luminoso, sem que no entanto saibamos se somos nós que nos precipitamos ou se é o mundo que corre ao nosso encontro. O fato de ser impossível estabelecer a direção do movimento suscita uma impressão de oscilação que faz a floresta vibrar. No vaivém do túnel de luz, como que decorrência da pulsação da natureza, vão ganhando consistência cenas da vida no mato: acampamentos, redes, crianças brincando, homens caçando, mulheres se banhando nos igarapés, aves, plantas, penas, animais. São momentos memoráveis, embora comuns, quaisquer, momentos deslumbrantes e fragílimos, colhidos como precárias imagens de caleidoscópio que se formam por um instante e se desfazem logo em seguida, feitos e desfeitos pela força de um fluxo inexorável. O frescor quase inacreditável dessas imagens provém de seu caráter efêmero. A sensação de que as imagens não duram e nem podem durar se impõe porque Claudia Andujar parece fotografar não a própria cena, mas a sua aparição e iminente desaparecimento. Renunciando a qualquer impulso de composição, a artista submete sua câmera ao ritmo de composição da natureza. Tal renúncia lhe permite captar com grande acuidade a relação íntima e íntegra que os ianomamis têm com a floresta: as fotos não mostram os índios e o mato, nem mesmo os índios no mato, mas uma integração índios-mato que ressalta as trocas intensas entre os humanos e o meio. O terceiro movimento, "O Invisível", leva ao paroxismo a experiência pura. Nele é fotografado o ritual xamânico. O xamã conta: "Quando se toma pela primeira vez o pó da árvore "yãkoãnahi', os espíritos "xapiripë' começam a chegar até você. Primeiro, ouvem-se de longe seus cantos de alegria, tênues como zumbidos de mosquitos. Depois, quando os olhos estão morrendo, começa-se a ver luzes cintilantes, que tremem nas alturas, vindas de todas as direções do céu. Aos poucos os espíritos se revelam, avançando e recuando com passos de dança muito lentos. (...) Mas, de repente, armados com grandes "espadas', partem ao meio sua coluna vertebral. Cortam sua cabeça e sua língua. Sente-se então uma dor intensa e você desmaia. Seu envelope corporal fica no chão, mas os "xapiripë' voam para longe, levando as partes do seu corpo imaterial. (...) Mais tarde recompõem seu corpo, mas ao contrário: juntam a cabeça no lugar do traseiro e as pernas no lugar dos braços. Uma vez virado do avesso, você pode responder aos espíritos e imitar seus cantos, você pode ser um xamã". É interessante notar que o terceiro movimento se intitula "O Invisível", e não "O Ritual". Como se aqui se tratasse de fotografar o que não se vê! A ambição seria desmedida se já não estivéssemos embarcados num processo que há muito deixou para trás o registro do documento e da fotografia "de arte". Vê-se que Claudia Andujar não está interessada no exotismo do ritual, seja para compreendê-lo ou para explorar sua beleza "selvagem". A artista se aproxima do ritual porque ele expressa o coração da vida ianomami, que consiste precisamente na relação com o invisível. Assim, o foco não se volta para a materialidade do ritual, mas para a dimensão mítica que nele vai se incorporar. Nesta sequência, o que se vê é o que não se pode olhar. Para tanto, é preciso tornar perceptível a realização da "viagem" xamânica não abertamente, o que seria impossível, mas por meio dos índices que ela vai deixando como traços das etapas cumpridas. Todo o terceiro movimento se caracterizará então pela ressonância no envelope corporal do que acontece no corpo imaterial e pela captação propriamente afetiva dessa ressonância impactando o corpo da fotógrafa e sua câmera. Como se Claudia Andujar tivesse entrado em sintonia com os praticantes do ritual, passando ela mesma por um processo de purificação que a transforma e afeta a fotografia. O terceiro movimento se abre com a foto de um índio na rede, quase pairando numa atmosfera evanescente. Seu estado de abandono sugere que os zumbidos dos cantos dos espíritos soam nos ouvidos e que em seus olhos "agonizantes" já desponta o cintilar das luzes. A partir daí, proliferam as imagens indicando a festa, o consumo da bebida e do "yãkõana", os cantos, a dança. A intensidade dos gestos se acentua, as energias se expandem, um clima de transe vai ganhando os corpos -vê-se que os índios estão entregues às alucinações e práticas xamânicas. Envolvido pelas forças que parecem se desprender desses corpos e eletrizar o espaço inteiro, o espectador impactado não encontra a distância que lhe asseguraria o papel do voyeur; muito ao contrário, acometido pelo ritmo frenético que assalta as imagens, compartilha com a fotógrafa a sua inserção singular nesse espaço-tempo convulsionado. De foto em foto, o acúmulo de descargas intensivas nos leva a crer que, se os ianomamis vêem os espíritos, nós mesmos passamos a vê-los como espíritos tomados -e, comovidos, sentimos o eco de sua exaltação e da plenitude da graça. Para entender a natureza da obra de Claudia Andujar dentro da arte contemporânea vale a pena evocar a de Joseph Beuys. Piloto da Luftwaffe até que seu avião caiu em 1943 na Criméia, Beuys, gravemente ferido, foi socorrido pelos tártaros e tratado por seus xamãs. O episódio foi decisivo em sua vida, em sua opção pelo trabalho artístico e em sua própria concepção da arte, que ele fundia com a vida (4). Como o artista alemão, Claudia Andujar também encontra os ianomamis na condição de sobreviventes de um desastre. Judia, tivera seu pai e toda a família paterna exterminados nos campos de concentração. Mais do que um simples trauma, Auschwitz teve um impacto devastador na sensibilidade e na consciência contemporâneas, que Primo Levi dolorosamente apontou e ainda não foi totalmente compreendido por nós. Era essa herança familiar e histórica que Claudia Andujar trazia consigo quando encontrou os ianomamis. E, assim como Beuys teve a sua vida salva pelos tártaros, também ela foi "curada" pelos índios: com os ianomamis se abria a possibilidade efetiva de voltar a acreditar na humanidade. Ora, esse bom encontro decisivo estrutura o eixo de seu trabalho e de sua vida e transpira em todas as fotos, bem como em sua incansável luta em prol dos ianomamis. Sobrevivente de um genocídio, a artista compreendeu que os próprios ianomamis estavam ameaçados de genocídio, em meio à indiferença geral da sociedade brasileira. Engajou-se então na luta em sua defesa, à frente da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), que teve um papel crucial na demarcação do território em 1992. Costuma-se dissociar sua fotografia da luta; no meu entender, porém, há coerência entre as duas atividades, por não haver separação entre arte e vida. Nesse sentido, a criação do território ianomami pode ser vista como uma ampliação radical do conceito de "land art", por suas implicações, sua dimensão (192 mil km2) e sua potência de produção de sentido. Explico-me: quem sobrevoa suas imensas matas e sua constelação de malocas dá-se conta de que "urihi", a terra-floresta ianomami, já existia para os índios; mas foi preciso torná-la visível ao nosso entendimento, expressá-la no referencial do nosso mundo, concretizá-la para os outros povos, materializá-la em mapas, linhas, marcos, imagens, signos, fotografias -numa palavra: foi preciso criá-la, antes que o sistema jurídico-institucional a referendasse, e até mesmo para que a reconhecesse. Invenção contemporânea, obra de arte coletiva, o território ianomami encontrou em Andujar um de seus principais artífices. Notas 1. Em David Lapoujade, "William James - Empirisme et Pragmatisme", PUF, 1997, pág. 24; 2. Ver Leni Riefenstahl, "Il Ritmo di uno Sguardo", Leonardo Arte, 1996; 3. Em "Sur les Traces de Nadar", Rosalind Krauss escreve: "A luz, que é a forma de "escritura' própria da fotografia (...)". Em "Le Photographique - Pour une Théorie des Ecarts", Macula, 1990; 4. Para o seu conceito ampliado de arte, ver Clara Bodenmann-Ritter, "Joseph Beuys - Cada Hombre, un Artista", Visor, 1995. Laymert Garcia dos Santos é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de "Tempo de Ensaio", entre outros. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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