São Paulo, domingo, 16 de agosto de 1998

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LIVROS
H.P. Lovecraft desenterra múmias e faraós nos contos de "A Maldição de Sarnath"
Arqueologia gótica

SÉRGIO SANT'ANNA
especial para a Folha

Durante um mês fui vizinho de Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), em Providence, Rhode Island, ocupando uma velha casa, de assoalho rangente, na mesma Angell Street em que nasceu e foi criado o contista do horror. Isso, sem dúvida, atiçou minha curiosidade de ler os contos de "A Maldição de Sarnath". Em tempo: mais de seis décadas nos separavam, o que, em se tratando de Lovecraft, que sempre habitou o "além", não quer dizer muito. Precavi-me com uma caixinha de Lexotan na mesa de cabeceira e iniciei bravamente a leitura.
E logo na página 62, em "Além da Barreira do Sono", uma outra coincidência: reencontrei as estrelas Algol, o Fantasma, e Delta de Perseu, a estrela-demônio, que também brilharam, sepulcralmente, numa encenação literária minha, com direito a cemitério, virgem morta, santificada e coisa e tal -desculpe-me o leitor a auto-referência. E, no entanto, logo estava eu dormindo a sono solto. O próprio Lovecraft era o Lexotan.
O leitor exigirá, com razão, que eu dê explicações. A primeira delas -oh, decepção- é que Lovecraft abandona, na grande maioria das histórias, as sugestivas e enfeitiçadas paisagens da Nova Inglaterra, para se perder nas antiguidades grega e, principalmente, egípcia, mergulhando em templos de mármore, catacumbas, sarcófagos e mantendo estreita relação com divindades, faraós e similares. E ecoam, numa bocejante pseudomitologia, nomes de lugares e pessoas, tais como Kalos, Musides, Ulthor, Nyarlathotep, Iranon, Teloth, Sidrak e a própria cidade de Sarnath do conto-título, assolada por "criaturas verdes". E há, ainda, Eryx, no planeta Vênus, numa ficção científica mais visionária do que primitiva e, de todo modo, encantadora, na qual Lovecraft, em parceria com Kenneth Sterling, alcança sua escrita mais objetiva e inovadora.
O antes apontado passadismo remonta à infância livresca e algo doentia de Howard, que já aos sete anos escrevia com o pseudônimo de "Abdul Alhazred". Explica, mas não justifica, pois, apesar da covardia da comparação, Borges também nunca se prendeu a tempos e espaços e trabalhou material similar para se tornar um gigante contemporâneo e eterno. Enquanto a astronomia de Lovecraft (outra de suas predileções) o dispersa no cosmo, Borges faz o infinito caber em concentradíssimos "alephs".
Apesar das poucas páginas de cada conto, Lovecraft narra excessivamente; é prolixo, adjetivante, abstrato e frasista, ainda que alguns adjetivos possam ser legais, como em "gangrenoso clarão", e que certas frases passeiem num limite estimulante com o que parece, mas que não chega a ser, no contexto, subliteratura: "Chamas ejaculando vulcanicamente de profundezas inconcebíveis". Ambos os exemplos, tirados de "O Rastejante Caos", uma das poucas narrativas passadas na Nova Inglaterra, em Kingsport.
Mas é de adormecer o mais empedernido dos insones, no mesmo conto, uma cena como esta: "Os mancebos e donzelas entoavam agora melífluos coriantos acompanhados por alaúdes". Interessante é que o protagonista, neste momento, está viajando pelos paraísos (ou infernos) artificiais do ópio, legitimando-se com citações de De Quincey e Baudelaire, que devem ter se revirado naquela morada definitiva que, aliás, é o título de uma outra história: "A Tumba".
Neste último conto, o protagonista é confinado num asilo para dementes por se ter deixado ficar, por longo tempo, contemplando, e pretensamente penetrando, certas orgias perpetradas numa tumba de alto nível, orgias estas que o autor se exime, para desconsolo nosso, de nos mostrar, a não ser por um gracioso (sem ironia) poema, em que surge uma trêfega Betty, a qual, tirando a divinal e virginal "Nathicana" (título de um interessante e gélido conto-poema), é a única mulher amável que aparece -e fugazmente- no livro.
Quanto à insignificante esposa do mágico, em "Encerrado com os Faraós", ela é apenas mencionada de passagem. E, se a infernal rainha Nitocris impressiona, nesse conto, é por ser uma múmia putrefata, impermeável a outro desejo que não o de fugir logo do "templo da esfinge de Quélren". Freud, "com seu pueril simbolismo" (segundo o narrador de "Além das Barreiras do Sono"), explicaria?
Mas mulheres mortas ou mortiças nos remetem a outra comparação adversa com H.P. Lovecraft: o seu vizinho mais ilustre, da Nova Inglaterra, Edgar Allan Poe. Mais ainda do que extrair da morbidez uma sensualidade de alta voltagem romântica, Poe nos deixou um legado de contos exemplares por suas densidade e concisão, verdadeiros tratados do gênero, explícitos ou não. E mulheres imortais, como Berenice, Morela, Ligéia, além da saudosíssima Lenora, de "O Corvo". Aliás, Poe também passou uma temporada em Providence, atrás de um rabo-de-saia, a poeta Helen Whitman.
Mas estou me embrenhando em divagações pessoais, desejos, e o leitor aficionado do "gótico" poderá contestar: não estará sendo o resenhista excessivamente mal-humorado e severo com um autor que, em vida, não escreveu mais do que histórias para revistas "pulp"? Histórias que fizeram as delícias dos roteiristas de filmes de classes B e C. Pode ser. Mas é que me irritaram a linguagem pomposa, o tom erudito e livresco, a falta de uma libido, ainda que necrófila, ao modo de Poe. Na verdade, H.P. Lovecraft foi uma espécie de arqueólogo do trash, com uma dicção classicizante. O leitor astuto talvez possa gozar o livro como uma comédia não-intencional. Mas, como comédia arqueológica, não será preferível "Indiana Jones", do qual o mágico de "Encerrado com os Faraós", escrito em parceria com um mágico de verdade, Harry Houdini, antecipa o sabor?

A OBRA
A Maldição de Sarnath
H.P. Lovercraft. Tradução de Celso Mauro Paciornik
Ed. Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, CEP 01426-001, SP, tel. 011/3068-9433).
224 págs. R$ 20,00


Sérgio Sant'Anna é escritor, autor de "Um Crime Delicado" e "Contos e Novelas Reunidos" (Companhia das Letras).



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