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LIVROS
H.P. Lovecraft desenterra múmias e faraós nos contos de "A Maldição de Sarnath"
Arqueologia gótica
SÉRGIO SANT'ANNA
especial para a Folha
Durante um mês fui vizinho de
Howard Phillips Lovecraft
(1890-1937), em Providence, Rhode Island, ocupando uma velha
casa, de assoalho rangente, na
mesma Angell Street em que nasceu e foi criado o contista do horror. Isso, sem dúvida, atiçou minha curiosidade de ler os contos
de "A Maldição de Sarnath". Em
tempo: mais de seis décadas nos
separavam, o que, em se tratando
de Lovecraft, que sempre habitou
o "além", não quer dizer muito.
Precavi-me com uma caixinha de
Lexotan na mesa de cabeceira e
iniciei bravamente a leitura.
E logo na página 62, em "Além
da Barreira do Sono", uma outra
coincidência: reencontrei as estrelas Algol, o Fantasma, e Delta de
Perseu, a estrela-demônio, que
também brilharam, sepulcralmente, numa encenação literária
minha, com direito a cemitério,
virgem morta, santificada e coisa e
tal -desculpe-me o leitor a auto-referência. E, no entanto, logo
estava eu dormindo a sono solto.
O próprio Lovecraft era o Lexotan.
O leitor exigirá, com razão, que
eu dê explicações. A primeira delas
-oh, decepção- é que Lovecraft
abandona, na grande maioria das
histórias, as sugestivas e enfeitiçadas paisagens da Nova Inglaterra,
para se perder nas antiguidades
grega e, principalmente, egípcia,
mergulhando em templos de mármore, catacumbas, sarcófagos e
mantendo estreita relação com divindades, faraós e similares. E
ecoam, numa bocejante pseudomitologia, nomes de lugares e pessoas, tais como Kalos, Musides,
Ulthor, Nyarlathotep, Iranon, Teloth, Sidrak e a própria cidade de
Sarnath do conto-título, assolada
por "criaturas verdes". E há, ainda, Eryx, no planeta Vênus, numa
ficção científica mais visionária do
que primitiva e, de todo modo, encantadora, na qual Lovecraft, em
parceria com Kenneth Sterling, alcança sua escrita mais objetiva e
inovadora.
O antes apontado passadismo
remonta à infância livresca e algo
doentia de Howard, que já aos sete
anos escrevia com o pseudônimo
de "Abdul Alhazred". Explica,
mas não justifica, pois, apesar da
covardia da comparação, Borges
também nunca se prendeu a tempos e espaços e trabalhou material
similar para se tornar um gigante
contemporâneo e eterno. Enquanto a astronomia de Lovecraft (outra de suas predileções) o dispersa
no cosmo, Borges faz o infinito caber em concentradíssimos
"alephs".
Apesar das poucas páginas de
cada conto,
Lovecraft narra excessivamente; é prolixo, adjetivante, abstrato e
frasista, ainda
que alguns adjetivos possam
ser legais, como em "gangrenoso clarão", e que
certas frases passeiem num limite
estimulante com o que parece,
mas que não chega a ser, no contexto, subliteratura: "Chamas ejaculando vulcanicamente de profundezas inconcebíveis". Ambos
os exemplos, tirados de "O Rastejante Caos", uma das poucas narrativas passadas na Nova Inglaterra, em Kingsport.
Mas é de adormecer o mais empedernido dos insones, no mesmo
conto, uma cena como esta: "Os
mancebos e donzelas entoavam
agora melífluos coriantos acompanhados por alaúdes". Interessante é que o protagonista, neste
momento, está viajando pelos paraísos (ou infernos) artificiais do ópio,
legitimando-se com citações de De
Quincey e Baudelaire, que
devem ter se
revirado naquela morada
definitiva que,
aliás, é o título
de uma outra história: "A Tumba".
Neste último conto, o protagonista é confinado num asilo para
dementes por se ter deixado ficar,
por longo tempo, contemplando,
e pretensamente penetrando, certas orgias perpetradas numa tumba de alto nível, orgias estas que o
autor se exime, para desconsolo
nosso, de nos mostrar, a não ser
por um gracioso (sem ironia) poema, em que surge uma trêfega
Betty, a qual, tirando a divinal e
virginal "Nathicana" (título de
um interessante e gélido conto-poema), é a única mulher amável que aparece -e fugazmente-
no livro.
Quanto à insignificante esposa
do mágico, em "Encerrado com
os Faraós", ela é apenas mencionada de passagem. E, se a infernal
rainha Nitocris impressiona, nesse
conto, é por ser uma múmia putrefata, impermeável a outro desejo que não o de fugir logo do
"templo da esfinge de Quélren".
Freud, "com seu pueril simbolismo" (segundo o narrador de
"Além das Barreiras do Sono"),
explicaria?
Mas mulheres mortas ou mortiças nos remetem a outra comparação adversa com H.P. Lovecraft: o
seu vizinho mais ilustre, da Nova
Inglaterra, Edgar Allan Poe. Mais
ainda do que extrair da morbidez
uma sensualidade de alta voltagem
romântica, Poe nos deixou um legado de contos exemplares por
suas densidade e concisão, verdadeiros tratados do gênero, explícitos ou não. E mulheres imortais,
como Berenice, Morela, Ligéia,
além da saudosíssima Lenora, de
"O Corvo". Aliás, Poe também
passou uma temporada em Providence, atrás de um rabo-de-saia, a
poeta Helen Whitman.
Mas estou me embrenhando em
divagações pessoais, desejos, e o
leitor aficionado do "gótico" poderá contestar: não estará sendo o
resenhista excessivamente
mal-humorado e severo com um
autor que, em vida, não escreveu
mais do que histórias para revistas
"pulp"? Histórias que fizeram as
delícias dos roteiristas de filmes de
classes B e C. Pode ser. Mas é que
me irritaram a linguagem pomposa, o tom erudito e livresco, a falta
de uma libido, ainda que necrófila,
ao modo de Poe. Na verdade, H.P.
Lovecraft foi uma espécie de arqueólogo do trash, com uma dicção classicizante. O leitor astuto
talvez possa gozar o livro como
uma comédia não-intencional.
Mas, como comédia arqueológica,
não será preferível "Indiana Jones", do qual o mágico de "Encerrado com os Faraós", escrito
em parceria com um mágico de
verdade, Harry Houdini, antecipa
o sabor?
A OBRA
A Maldição de Sarnath
H.P. Lovercraft. Tradução de Celso Mauro Paciornik
Ed. Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, CEP 01426-001, SP, tel. 011/3068-9433).
224 págs. R$ 20,00
Sérgio Sant'Anna é escritor, autor de "Um Crime Delicado" e "Contos e Novelas Reunidos"
(Companhia das Letras).
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