São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2001

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A ambição da política


Mangabeira Unger ataca a tentativa da social-democracia de "civilizar o destino", propõe uma reinvenção do projeto pequeno-burguês e defende que o Brasil deve criar uma fórmula própria para resolver seus problemas, sem pedir licença ao Primeiro Mundo


André Singer
enviado especial ao Rio de Janeiro

A publicação de "Política" (Argos/Boitempo, 431 páginas, R$ 45,00), de Roberto Mangabeira Unger, permite ao leitor brasileiro, pela primeira vez (com mais de uma década de atraso), ter acesso à argumentação de fundo daquele que se tornou um dos mais respeitados pensadores sociais nos círculos universitários norte-americanos. Conhecido no Brasil sobretudo por assessorar primeiramente Leonel Brizola e depois Ciro Gomes (PPS), além dos artigos em jornal, o professor de direito em Harvard e colunista da Folha, nascido no Rio de Janeiro há 53 anos, é objeto, no exterior, da admiração de filósofos da estatura de Richard Rorty.
Com a presente edição ainda não se toma conhecimento pleno da obra de Unger, uma vez que "Política" traz uma seleção de textos que, na origem, pertencem a três diferentes volumes publicados na década de 80 nos EUA. Porém, mesmo suprimidas partes daqueles livros, sobretudo as que contêm as análises históricas, "Política" possibilita uma visão abrangente dos fundamentos do pensamento ungeriano.
O escopo da obra é monumental. Trata-se não só de reconstruir as ciências sociais a partir de novos paradigmas, mas também, e em decorrência disso, de propor modelos institucionais que produzam uma reforma revolucionária da sociedade. Em outras palavras, o filósofo brasileiro sugere nada menos que uma revisão completa das posturas, intelectuais e práticas, a que estamos acostumados.
Na entrevista a seguir, realizada em sua cidade natal, Unger fala de alguns dos principais temas presentes em "Política", sobretudo a rejeição ao modelo social-democrata. Em lugar dele, Unger propõe um curioso resgate da tradição econômica pequeno-burguesa, que resultaria em um mercado democratizado. Defende também a idéia de "intensificação da política", da qual emergiria uma "democracia forte" ("empowered democracy").

Em "Política", o sr. rejeita tanto o marxismo quanto a ciência social positiva, as duas formas consagradas de enxergar a sociedade no pensamento ocidental. Por quê?
Tanto o marxismo quanto as ciências sociais positivas americanas sonegam a imaginação das alternativas, embora o façam de maneiras diferentes. No marxismo há a idéia de que a história humana é uma história de rupturas, de mudanças estruturais. Há aí uma bagagem determinista. Acredita-se que haja sistemas institucionais indivisíveis, como o feudalismo e o capitalismo, que, quando mudam, mudam tudo de uma só vez. Há também a idéia de que esses sistemas estejam em uma sequência evolutiva predeterminada.
Para o sr., os sistemas não são indivisíveis? O sr. rejeita, por exemplo, a idéia de capitalismo?
Não há capitalismo. O conceito de capitalismo faz sentido em uma estrutura teórica em que se imagina que existam sistemas institucionais indivisíveis e que esses sistemas componham uma lista restrita de opções institucionais que a humanidade tem. Nada disso é verdade. Não é assim que a história acontece. A idéia da substituição completa de um sistema por outro é uma idéia-limite.
A forma típica da mudança estrutural na história é o que se poderia chamar de "reforma revolucionária". É a mudança fragmentária ou parcial de uma estrutura dominante de instituições e de idéias. Essa mudança pode se tornar radical, não por ser instantânea e totalizante, mas por ser cumulativa, quer dizer, quando ela vira uma direção. As mudanças, ainda que parciais, quando começam a se encadear, podem acabar por produzir uma mudança radical.


Não há nenhum país do mundo, hoje, que tenha melhores condições do que o Brasil para dar uma virada; a eleição presidencial seria uma grande oportunidade para isso


Mas a social-democracia já não havia rompido com a idéia de mudança instantânea?
Hoje em dia, a idéia da revolução no sentido antigo virou uma espécie de álibi para o oposto. Em muitos países do mundo, os social-democratas conservadores, aqueles que dizem que a única coisa que se pode fazer é humanizar o inevitável, são ex-marxistas. O espírito da época lhes forneceu o machado, com ele cortaram o marxismo ao meio, jogaram fora a parte boa -as aspirações transformadoras- e ficaram com a parte ruim -o fatalismo histórico.
Assim, a fantasia da mudança sistêmica acabou servindo de pretexto para o que existe. Hoje o que impera no mundo é a idéia de que existe um só caminho, mas que podemos humanizá-lo. O projeto dos progressistas, no mundo, é o projeto de seus adversários conservadores com desconto de 10%.
Por que o sr. dá tanta ênfase à crítica do projeto social-democrata?
Porque, no Brasil, todo mundo é social-democrata ou social-liberal. E cadê o social? Dá o que pensar.
A razão disso é que o discurso do social é o da humanização das estruturas, não o da transformação das estruturas. A genealogia desse pensamento é muito clara. Começa com a idéia de que o bonito e o bom seria a mudança estrutural, a substituição do capitalismo pelo socialismo, mas que ela é impossível ou perigosa. Somos adultos, não somos mais crianças, não vamos ter devaneios, então vamos procurar melhorar o existente. Aí chegamos à social-democracia ou ao social-liberalismo, que é a idéia de civilizar o destino. Quando tentamos apenas civilizar o destino, não conseguimos nem sequer civilizá-lo.
Essa é uma das polêmicas centrais da minha obra, que diretamente contradiz o único discurso crítico que hoje existe no Brasil. Esse discurso insosso, vazio, mentiroso do social. O social, no Brasil, nós vamos ter quando começarmos a reorganizar o país, a reorganizar a democracia e o mercado e a criar as condições práticas que vão nos transformar em um país de rebeldes e de profetas.
E qual o problema com as ciências sociais positivas?
As ciências sociais positivas, tal como praticadas na academia dos EUA, rejeitaram essas premissas fatalistas, mas, ao fazê-lo, destruíram também a idéia indispensável das alternativas estruturais. Elas concebem a vida social como apenas um conjunto unidimensional de problemas e soluções, de interesses e composições. Perdeu-se a concepção de uma diferença entre a superfície da vida social, as rotinas da prática e do discurso e as estruturas profundas.
Aí está uma das grandes ambições da minha obra. Resgatar a concepção da descontinuidade estrutural, mas libertá-la de todo determinismo sociológico e econômico. Esse projeto já está implícito em muitas das tendências inovadoras do pensamento social, mas falta sistematizá-lo, falta ir até o fim.
Esse é um dos muitos paradoxos da obra. Quero demonstrar que uma concepção que coloca a política no centro da vida social, em vez de vê-la como um reflexo de determinismos econômicos e sociais, não leva ao abandono das explicações gerais.
A sua visão não estaria muito próxima daquela formulada por Max Weber (1864-1920), um dos clássicos da sociologia, segundo a qual se poderia compreender a mesma realidade a partir de recortes estruturais distintos?
Max Weber é um exemplo de pensador social que estava a meio caminho entre os determinismos clássicos de Marx e o tipo de projeto que eu preconizo. No pensamento de Weber há a idéia de tendências profundas irreversíveis. Por exemplo, a dinâmica da burocratização, da racionalização, do desencanto. Assim como Marx, ele universaliza uma experiência da sociedade européia de seu tempo, à qual ele atribui um cunho irreversível.
Ele também faz, embora de maneira mais rica, uma confusão entre destino histórico singular e destino histórico universal da humanidade.
Para o sr. não há nada irreversível?
Aí está uma parte da confusão. Eu não estou diminuindo ou negando o peso dos constrangimentos. A obra não é uma advocacia do voluntarismo. É uma tentativa de reinterpretar esses constrangimentos, de desmistificá-los, de negar a eles o cunho de leis profundas de evolução social. Reconhecer que eles têm peso, mas que não representam um destino sujeito a leis.
Quanto mais nós compreendermos a história, quanto mais nos tornamos senhores da nossa situação, quanto mais nos rebelarmos contra esse falso destino das estruturas, mais criaremos formas de organização institucional, formas de pensamento e práticas discursivas que facilitam a própria transformação. Ou seja, que diminuem o espaço entre a atividade rotineira, de aceitar as estruturas existentes, e a atividade excepcional, revolucionária, de transformá-las. Começamos, então, a mudar as estruturas no curso da vida normal. Não dependemos mais de crises e catástrofes, de guerras e colapsos econômicos, para mudar as estruturas.
Por isso, uma das grandes preocupações práticas dessa obra é mostrar como nossos grandes interesses no progresso econômico da humanidade e na democratização da sociedade estão ligados à tentativa de criar estruturas institucionais e de pensamento que se abram ao experimentalismo, que facilitem a atividade revisora e que nos libertem da falsa escolha entre aceitar a estrutura dada ou esperar a crise que vai permitir quebrá-la de uma só vez.
Contra a "racionalização retrospectiva" da ciência social positiva, o sr. propõe o resgate de caminhos históricos abandonados. Pode exemplificar que caminhos seriam esses?
Um exemplo, que se repete de forma diferente em todas as sociedades ocidentais, é a grande riqueza das formas de pequena propriedade, de associação de pequenos produtores. É um aspecto subterrâneo dessas sociedades e dessas economias. No século 21, a maior resistência ao que veio a ser o projeto dominante não veio do proletariado industrial ou do socialismo de esquerda, veio dessa pequena burguesia.
Assim também ocorreu no Brasil, com formas brasileiras. Esse projeto pequeno-burguês é um projeto sem futuro se ele for confundido com um instrumento tradicional da pequena propriedade isolada. Nós precisamos reinventá-lo.
Eu creio que esse é um tema de grande riqueza para nós, porque o centro de gravidade da vida pública brasileira sempre foi a classe média. Uma classe média que se sentiu asfixiada entre uma plutocracia colonial, de um lado, e uma massa depauperada e desinformada, de outro. As lideranças dessa classe média sempre optaram pela importação das fórmulas institucionais e culturais. Isso foi uma calamidade para nós, porque só conseguiríamos dar um destino produtivo a esse projeto inventando formas institucionais próprias.
Que formas seriam essas?
A democratização radical do mercado. O mercado é um conceito vazio, que pode ser traduzido em realidades institucionais diferentes. O tipo de economia de mercado que existe nos países ricos não é bom para eles e muito menos para nós, porque não resolve um problema que se tornou crucial para a humanidade: a divisão entre os setores avançados da economia e o resto. Precisamos de um mercado que descentralize radicalmente o acesso aos recursos e às oportunidades de produção. Isso só pode ocorrer por uma parceria entre o Estado e a iniciativa privada que reinvente aquela idéia do século 19 de dar um grande espaço para a pequena produção.
E na política propriamente dita, qual a direção?
O aprofundamento da democracia. As democracias do Atlântico Norte são de baixa energia. Elas foram organizadas para limitar o nível do engajamento civil e dificultar a transformação da sociedade. Nós devemos manter o objetivo liberal de fragmentar o poder, mas expurgar a mácula conservadora que restringe a mobilização política.
O seu modelo quer também provocar mudanças no plano individual. Como fazê-lo?
É a idéia de dar poder ao indivíduo, assegurando a ele um conjunto de recursos econômicos e educativos. Ele precisa se sentir e ser seguro para atuar em um ambiente de inovações intensificadas. A relação entre esse conjunto de garantias e poderes do indivíduo e o experimentalismo de uma sociedade mais democrática é como a relação entre o amor que os pais dão a uma criança e a capacidade de se lançar ao risco e à aventura: uma coisa permite a outra.
No ano que vem haverá uma eleição presidencial e parlamentar no Brasil. Será, a seu ver, um momento "quente", para usar um termo que lhe é caro, da política brasileira?
Não há nenhum país do mundo, hoje, que tenha melhores condições do que o Brasil para dar uma virada. O mundo todo está em busca de um projeto rooseveltiano, para usar um termo do passado, e quem tem melhores condições de iniciá-lo é o Brasil. Pela combinação de características objetivas e subjetivas suas. A eleição presidencial seria uma grande oportunidade para isso.
Mas nós temos grandes obstáculos. A ordem dos obstáculos, indo do menos importante para o mais importante, é a seguinte. Primeiro, estão os obstáculos econômicos. São os menos importantes, mas não consolidamos no país as condições para um rebeldia profícua, que dependeria da mobilização dos recursos nacionais e a diminuição da dependência externa. Porém, se tivéssemos um projeto mais amplo, resolveríamos isso em pouco tempo.
Depois, o problema político. Não temos partidos políticos. Só temos um: o PT, que é ao mesmo tempo organizado e nacional. Mas não temos uma vida de partidos políticos. Essa é uma das razões pelas quais as lideranças pessoais acabam sendo tão importantes. Não é que eu queira que sejam, elas são.
Nós temos o risco, nessa sucessão presidencial, de haver uma confusão de discursos. Todos os candidatos serão de centro-esquerda. Todos dizendo que querem o crescimento com compromisso social. E, mais uma vez, o povo brasileiro será obrigado a penetrar essa neblina de palavras por meio de um julgamento intuitivo das pessoas. E frequentemente se erra nesse julgamento...
Mais grave ainda, há o problema intelectual de não termos uma idéia clara das alternativas. Voltamos ao início da conversa. Montesquieu dizia: nenhum vento ajuda a quem não sabe a que porto veleja. Sem a concepção das alternativas, não conseguimos tornar fecunda a situação política.
Finalmente, o que me parece mais grave e menos percebido, há o problema psicológico e espiritual. No fundo, essa idéia que eu estou propondo ao Brasil é a idéia da grandeza. Nós não vamos receber uma licença dos Estados Unidos ou da França. Vamos resolver nossos problemas sem pedir licença, sem enquadrar a nossa solução em alguma fórmula já credenciada. Os brasileiros se sentem desconfortáveis com a idéia de que eles possam iniciar uma experiência de interesse para a humanidade.
Como é que vamos convencer os nossos concidadãos a isso? Esse é, para mim, o problema que enseja a maior perplexidade.

André Singer é professor de ciência política na USP e repórter especial da Folha. Autor de "Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro" (Edusp) e "O PT" (Publifolha).


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