São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2001

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Caleidoscópio de vozes

Cristovão Tezza
especial para a Folha

"O Filho do Crucificado", conjunto de narrativas de Nelson de Oliveira, é um bom ponto de partida para a análise não de um livro, mas de uma linguagem ou pelo menos de uma das faces da linguagem da literatura brasileira contemporânea, em uma de suas expressões mais novas e sugestivas. Como um caleidoscópio, o texto deste livro pode a rigor começar a ser lido de qualquer parte, em qualquer página; portadoras de uma memória que quase nunca vai além do parágrafo anterior, as palavras, à solta, avançam em todas as direções sintáticas e semânticas, acompanhando uma estrutura construída visivelmente sem andaimes. Nesse percurso, o narrador -que não é exatamente ninguém, mesmo quando se autonomeia- vai se apropriando de um modo instantâneo e voraz de todos os registros, vozes e fragmentos de visões de mundo de que é capaz. Se há alguma coisa que dá o tom ao conjunto, será um certo impulso coloquial, uma espécie de representação da oralidade, mas desprovida de sujeito: as vozes vêm e vão de toda parte, perdendo-se no ar assim que se pronunciam, numa algaravia eterna. Há uma contemporaneidade bruta, em todas as referências, mesmo quando às vezes alguns traços sugerem outros tempos ou a fusão dos tempos; e a geografia, urbaníssima, será sempre mais mental que física. Os registros da linguagem tocam praticamente todos os gêneros, congelados em clichês, lugares-comuns, frases feitas que não se fixam em nada; ditados populares ("se um cego, num país de cegos..."), fragmentos de seriados ("me ajoelhei e encostei o ouvido no assoalho, como uma índia"), pornografia ("eu segurava sua bunda com determinação, indo e voltando freneticamente"), citação literária ("Hoje mamãe morreu... talvez tenha sido papai quem morreu, ou tia Sofia, ou eu mesma"), filmes dublados ("Porque somos pagos pra defender esta maldita cidade. Agora mexam-se!"), cultura new age ("Radamés, ao acordar de sonho tão revelador, compreendeu que estava nas nossas mãos providenciar o novo homem, o germe da nova humanidade"), discurso bíblico ("Tu, abandona o vício do jogo, pára de fornicar com as putas da rodoviária, paga os duzentos dólares que deve ao teu amigo taxista") e daí por diante -pode-se dizer que não há uma linguagem cristalizada no dia-a-dia do brasileiro urbano que de alguma forma não trespasse parodicamente as narrativas; qualquer tonalidade séria será imediatamente desmontada na vírgula seguinte.


São milhares de vozes, mas nenhuma deixa marca, nem mesmo pelo humor, apenas acidental, porque a paródia é sempre a paródia da paródia da paródia, num perpétuo espelhamento


Positivismo literário
São milhares de vozes, mas nenhuma deixa marca, nem mesmo pelo humor, apenas acidental, porque a paródia é sempre a paródia da paródia da paródia, num perpétuo espelhamento que relativiza ao limite qualquer palavra -o que alguém poderia interpretar, ingenuamente, ou como algum "retrato fiel" do que acontece na chamada vida real ou como sua transgressão.
Nesse sentido, Nelson de Oliveira realizaria algo próximo a um realismo absoluto, uma espécie de positivismo literário: os fatos ou as linguagens falam por si, retomando hoje, em outros termos, a utopia surrealista, cujo projeto transferia ao inconsciente a responsabilidade da palavra escrita -alguns ecos dessa utopia ressoam no livro. O problema é que, ao fazer do relativismo o valor maior e abdicar de qualquer ponto estável fora dele, de um eixo, de uma referência que contemple o caos e lhe dê algum sentido, as palavras vão se reduzindo a uma sequência frouxamente articulada de matéria bruta. A sucessão de procedimentos técnicos esvaziados de um olhar que os transcenda -um olhar mais ou menos firme capaz de dar dimensão estética ao livro- corrói cada uma de suas sentenças, que se esfarelam no mesmo passo em que avançam.
Seria essa a intenção do autor? Nesse caso, teríamos o velho narrador onisciente, já sem lugar no mundo, substituído pela ilusão da "coisa em si" -a suposta realidade objetiva, como uma câmara de TV avançando sozinha pelo espaço.
Em alguns raros momentos a narração ganha uma sombra de estabilidade, como em "Quantos?". Mas então, sem lugar, a literatura que afinal emerge, mesmo numa composição construída com habilidade, se reduz a uma "mensagem" implícita e constrangedoramente tacanha: uma mulher que dá (literalmente) a Deus e a todo mundo confessa num programa de televisão que merecia um programa de auditório. "Ou de entrevistas. É, de entrevistas seria legal. Um "talk show". O que você acha?" É apenas uma amostra da evidente desproporção entre o aparato técnico, o inegável talento investido em "O Filho do Crucificado", e a pobreza do seu resultado.
Voltando ao início, como exemplo de uma linha da novíssima literatura brasileira, o livro de Nelson de Oliveira é a expressão viva de uma crise, talvez menos de talento e mais de uma medida de valor. Estacionadas nessa passagem de uma arte que parece ter ficado para trás e de um sonho que ainda não tomou forma à frente, as palavras se imobilizam, pré-literárias, em estado de espera.
O que, bem pensado, pode ser um bom começo.


O Filho do Crucificado
176 págs., R$ 19,00 de Nelson de Oliveira. Ateliê Editorial (r. Manoel Pereira Leite, 15, CEP 06700-000, Granja Viana, Cotia, SP, tel. 0/xx/ 11/ 4612-9666).



Cristovão Tezza é escritor -autor de, entre outros, "Breve Espaço entre Cor e Sombra" (Rocco)- e professor do departamento de linguística da Universidade Federal do Paraná.


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