São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2001
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Os sentidos da trama
A o leitor cabe escolher o modo de
abordar o último romance de
Rubens Figueiredo, "Barco a Seco". Pode considerá-lo uma trama instigante ou uma equação que demonstra, afinal, a falsidade de sua premissa. Expor a alternativa pareceria exigir que então se declarasse qual a premissa falsa. Mas como fazê-lo sem frustrar o
leitor mais frequente, aquele que, interessado no enredo, assegura a venda do
livro? A alternativa nos lança no próprio
redemoinho de um romance incomum.
Mas sua formulação não sai da superfície. Só pelo corpo-a-corpo com o romance a alternativa pode render. Ela então se converte em interrogação: como
distinguir na vida de uma pessoa a trama-como-intriga da trama-como-conluio? A trama-como-intriga implica
história, narrativa, formada tanto no dia-a-dia ("Você sabe o que me aconteceu?")
como no gênero de mais prestígio da literatura. A trama-como-conluio supõe, ao
contrário, conspiração, propósito de enganar. Os dicionários admitem os dois
sentidos. Mas os dicionários não escrevem romances. Nem ensaios de ética.
A peculiaridade de "Barco a Seco" está
na solda entre as duas acepções de "trama". Ao fazê-lo, cria para si seu próprio
campo de indagação: se as pessoas criam
enredos que são conluios, então a intriga
interliga romance e ética. Com a desvantagem imediata do gênero romanesco,
pois não há romance sem intriga. Mas, se
o conluio, a conspiração, também exige
uma intriga, a acusação ultrapassa a literatura e fere a mais inatacável das vidas
-não há vida que não se relate. O que
era ataque à literatura assume proporções inesperadas. "A vida é traição", já
dissera o poeta.
Mas o pensamento contemporâneo,
ora de modo mais sofisticado, ora bem
pouco, já forneceu o antídoto: fora da
ciência dos números, tudo é ficção. Relaxemos, pois: nada se diz sobre a conduta
humana sem alguma narrativa. Salva a
operação com números e os números
desconhecendo a ética, "tudo é ficção"
serviria de salvo-conduto para nossas
tramas. Se, porém, recusarmos o álibi de
"tudo é ficção", condições de verificar
por que "Barco a Seco" não se encerra na
trama de sua fábula hão de ser postas.
Vejamos como.
O narrador conhecera na infância a
transitividade entre intriga e conluio. Órfão, vítima dos irmãos adotivos, terminara expulso da casa que o acolhera para
que o padrasto regressasse. O "sangue",
ser do mesmo sangue, servira de semente para a fusão entre trama-intriga e trama-conluio. Pela conjunção de esforço e
sorte, ascendera um pouco. Apresentado
a uma negociante de quadros, descobrira
um pintor, que todos julgavam morto,
cuja fama de excêntrico e marginal o ajudara a subir na cotação do mercado e a
mover os falsários. Na condição de especialista em sua produção, o narrador não
só ganha a vida, autenticando ou negando a veracidade dos Emilio Vega que lhe
trazem, como se atribui a função de um
verdadeiro justiceiro. É neste papel que
se propõe desmistificar a lenda de Vega .
Assim já não era apenas um técnico a
examinar o fundo e o tampo das caixas
de charuto, as conchas e as lascas de madeira sobre as quais trabalharam as mãos
de Vega, mas sim alguém que odiava os
criadores de uma lenda "talhada sob medida para soterrar qualquer faculdade de reflexão". Sua especialidade o
põe entre os bons. Tratava-se de trazer o barco sujo em que o pintor vivera,
os barcos que pintara, o
mar em que teria desaparecido para a terra das
certezas. Não imagina que
sua decisão se voltaria contra ele. A terra
firme seria o mundo sem conluios e artifícios. Embora ele próprio fosse atraído
pelo mar, fizera jus ao mundo dos bons,
porque, honesto, se dedicava à causa da
verdade.
Barco a Seco 192 págs., R$ 24,50 de Rubens Figueiredo. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/ 3846-0801). Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.". Texto Anterior: Cristovão Tezza: Caleidoscópio de vozes Próximo Texto: + literatura - Betty Milan: Personagens dissolvidos Índice |
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