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São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2003

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+ sociedade

O autor de "A Guerra e a Paz na História Moderna" prevê o fim dos conflitos na atualidade e a substituição total do Estado-nação pelo Estado-mercado

O charme discreto do novo modelo

Tiago Ornaghi
da Agência Folha

Estamos vivendo o fim do Estado-nação parlamentarista e migrando para um novo modelo constitucional: o Estado-mercado. Essa é a teoria de Philip Bobbitt desenvolvida em seu livro "A Guerra e a Paz na História Moderna - O Impacto dos Grandes Conflitos e da Política na Formação das Nações" (editora Campus).
Bobbitt, que é professor de direito constitucional na Universidade do Texas e leciona história da estratégia nuclear no King's College, em Londres, acredita que mudanças tecnológicas militares e alterações nos paradigmas constitucionais provocaram o que ele chama de "guerras momentosas" -grandes conflitos de coalizões que geralmente se estendem por décadas e alteram o formato constitucional dos Estados.
Mudanças constitucionais como essa teriam acontecido, pelo menos, outras quatro vezes desde o nascimento do Estado moderno. A primeira foi marcada pela Paz de Augsburgo (1555), que pôs fim à sequência de guerras entre os Habsburgos e os Valois (1515-1555). Com o final desses conflitos, terminou o Estado principesco, dominado por uma dinastia territorial. Da Paz de Augsburgo nasceu o Estado régio, que durou até o final da Guerra dos 30 Anos, marcado pela Paz de Vestfália (1648).
A terceira mudança constitucional aconteceu com o aparecimento da nação-Estado, a partir do Tratado de Utrecht (1713), que celebrou a paz européia após as guerras comandadas por Luís 14. A última revolução foi a passagem da nação-Estado para o Estado-nação, após as guerras napoleônicas, com o redesenho europeu feito no Congresso de Viena (1815). A "longa guerra" se iniciou, para Bobbitt, em 1914 e se estendeu até 1990, acabando com o Estado-nação. A luta começou para escolher entre os modelos constitucionais de Estado-nação (parlamentarismo, comunismo e fascismo).
Bobbitt retoma uma tradição mais soturna: aquela associada a Nicolau Maquiavel. Segundo ele, o Estado deve deixar de ser um gestor da sua nação e passar a interferir o mínimo possível nas vidas dos cidadãos. O Estado deixa de ser "o Deus Mortal, nossa paz e defesa", como dizia Thomas Hobbes. Esse é o paradigma do Estado-mercado: proporcionar oportunidades para o indivíduo se desenvolver. Bobbitt, que já foi diretor sênior de infra-estrutura crítica e de planejamento estratégico no Conselho de Segurança Nacional durante os governos de George Bush e Bill Clinton, analisa a realidade estratégica do mundo neste início de século, prevê como o Estado-mercado se desenvolverá no planeta e fala sobre a atitude dos EUA como liderança global.


Philip Bobbitt


Quais os conflitos que podemos esperar ver acontecendo em um futuro próximo?
De três tipos. Primeiramente, nações e os povos ligados a elas procurando unificar Estados-nação (Palestina, Caxemira, Tchechênia, Coréia), basicamente, povos que ainda não têm seus próprios Estados territoriais. Em segundo lugar, Estados-nação sem preocupações territoriais em desenvolvimento (como as redes globais de terrorismo) lutando contra Estados-mercado em desenvolvimento como os EUA, a União Européia, a China, por motivos ainda não esclarecidos. E, finalmente, a intervenção de Estados-mercado para prevenir abusos aos direitos humanos em Estados-nação. Esses são os conflitos a que, inclusive, já estamos assistindo.

Em seu livro o sr. escreve sobre grandes guerras que acabam com formas inteiras de organização social e abrem a possibilidade de novas ordens constitucionais. O que pode mudar após os conflitos a que se assiste atualmente?
É ainda muito cedo para dizer, mas, na minha opinião, o Estado-mercado está começando a se desenvolver e os Estados-nação serão totalmente substituídos por ele.
O Estado-mercado tem prioridades diferentes do Estado-nação a que estamos acostumados.
Em vez de promover o bem-estar da sua população em troca de impostos e ordem, o Estado-mercado será o menos invasivo possível, e seu objetivo será o de promover as maiores oportunidades para os indivíduos se desenvolverem -e a liberdade comercial será apenas uma dessas oportunidades.

O Estado-mercado, como o sr. o vê, pode ser instituído no Ocidente, mas parece muito complicado imaginar que aconteça em regiões como o Oriente Médio ou em países asiáticos e africanos. Como isso pode funcionar?
Pelo contrário, eu imagino o Estado-mercado em todas as regiões do planeta. Cingapura, por exemplo, já está no caminho para se tornar um Estado-mercado; outros países asiáticos como o Japão, a Austrália e a China vão seguir esse modelo.
Pode-se imaginar um "Estado-mercado guarda-chuva" no Oriente Médio, incluindo Israel, Palestina, Jordânia e Iraque -mas isso desde que as populações desses países possam imaginar isso acontecendo a aceitem as premissas de liberdades constitucionais necessárias.

O poder militar pode ser um paradigma geopolítico fundamental em um futuro que tenha assistido ao fim dos conflitos modernos?
Se estivermos realmente na iminência de testemunhar o fim dos conflitos modernos -e eu acredito que estejamos-, então eu suponho que seja necessário nos prepararmos para lutar em conflitos pós-modernos. Exércitos menores, com poderes de mobilização e movimentação maiores, tecnologias de comunicação mais avançadas. O poder militar pode se tornar global, em vez de geopolítico, mas a sua importância não está acabando, está se modificando.

Qual deve ser a posição estratégica das grandes estruturas político-econômicas, como a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), a Comunidade Européia ou o próprio Mercosul, em um mundo dominado por Estados-mercado?
Essas grandes entidades regionais são descritas no meu livro como tendo duas características principais. Elas podem se tornar "Estados guarda-chuvas", dividindo responsabilidades de defesa mútua e interesses econômicos, mas mantendo culturas locais bastante diversificadas. E atualmente elas parecem estar seguindo o modelo gerencial do Estado-mercado com a sua grande preocupação com a comunidade e a posteridade e a sua boa vontade de aceitar um crescimento anual mais modesto em troca de um maior bem-estar social.

O ataque contra o Iraque, tendo sido conduzido como uma guerra convencional, na sua opinião foi a melhor escolha estratégica, levando em consideração todas as questões envolvidas na região?
Sim, eu acho que foi. A guerra impediu Saddam Hussein de adquirir armas nucleares, acabou com a possibilidade de novas depredações na região e contra o próprio povo iraquiano. Isso por uma pequena fração do custo em mortes que teria apenas um ano de permanência dele no poder.

Mas o motivo asseverado pela aliança anglo-americana para o ataque -de que o Iraque possuía armas de destruição em massa- não se confirmou até agora.
A razão não é tão importante quanto o resultado obtido. Evitou-se que um Estado violento usasse ou mesmo obtivesse armas de destruição em massa. Além disso, os Estados Unidos podem estar lançando bases seguras para a formação de democracias em um cenário bastante complicado politicamente como é o Oriente Médio.

Mas os Estados Unidos estão sofrendo ataques constantes e parecem ainda longe, mesmo após a declaração oficial de fim dos principais conflitos, de estabilizar a região. Isso não pode demonstrar que a nação iraquiana é contra a intervenção?
Os Estados Unidos sofrem ataques em regiões onde Saddam Hussein ainda tem aliados. São focos que mantêm o apoio ao regime autoritário deposto. É apenas uma questão de tempo para que a população perceba que a democracia é uma evolução que melhorará a sua vida. Não acho que a ação norte-americana seja contrária à autodeterminação do povo iraquiano. Nenhum povo escolhe ser violentado por um ditador.


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