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LIVROS
Em "As Curvas do Tempo", o arquiteto Oscar Niemeyer deixa de lado as confidências
Confissão em meias palavras
TEIXEIRA COELHO
especial para a Folha
Para os arquitetos é fácil deixar
marcas físicas no mundo. Bem
menos simples é fazê-lo de modo a
que sejam notadas. E gravá-las na
idéia que se tem de uma época é
excepcional. Oscar Niemeyer pertence ao grupo restrito dos que
marcaram o corpo e a idéia do século 20. O Arquiteto vergou a História à sua vontade e transformou-se, lembrando a imagem de
Boris Vian, num construtor de impérios, desses que definem seus
próprios princípios e balizas.
Mas bem pouco disso e do que
significou fazer tudo isso passa
para o leitor dessas memórias. O
título do livro é sugestivo e contemporâneo na alusão a Einstein.
O conteúdo, nem tanto. "As Curvas do Tempo" dizem o mínimo
possível da vida e da arquitetura de Niemeyer. Relativamente menos, por exemplo, que o ensaio biográfico
a ele dedicado
em 1978 pelo
amigo e militar
de esquerda
Nelson Werneck Sodré.
Nas memórias, Niemeyer não se
entrega a confidências, indiscrições e comentários sobre si ou sobre figuras e situações históricas.
Ao contrário da moda atual, não
mostra inclinação para expor em
público sua vida pessoal: numa
única passagem mais íntima quase
sucumbe à vertigem da confissão,
mas se segura a tempo em meias
palavras. E sobre as personagens
públicas com quem conviveu
-Juscelino, tantos políticos e intelectuais- amplamente silencia;
nomeia-as apenas, como num inventário (como faz com os livros
que leu, dos quais não diz o que
reteve).
O ensaio de Werneck, sob este
aspecto, é mais revelador. Ali o
Arquiteto admite, por exemplo,
que pouco discutiu política com
JK por "receio de importuná-lo
com minhas opiniões de homem
de esquerda" e por lamentar
"não encontrar nesse terreno a
abertura de espírito que ele sempre me havia provado quanto ao
resto". Ali o Arquiteto comenta
coisas como a especulação que
acompanhou a construção de Brasília e que o governo não conseguiu ou quis conter. Ou seus encontros com os bedéis da ditadura
militar num retorno ao Brasil em
1964. Nada disso é retomado, menos ainda aprofundado, 20 anos
depois.
Mesmo assim vêm à tona
detalhes importantes sobre o Arquiteto. Como sua
melancolia, à
primeira vista
surpreendente. O livro é todo atravessado
por uma
"imensa tristeza", como diz Niemeyer, que parece decorrer da
passagem do tempo: o Arquiteto
envelhece, recorda o passado e admite sua amargura e seus desesperos. Diante de tanta melancolia, o
leitor tende a pensar que as pessoas não deveriam esperar muito
para escrever suas memórias porque correm o risco de achar tudo
desimportante e terem pouco sobre o que falar.
Aos poucos, porém, o que se
descobre é um Niemeyer de longa
data angustiado, um Niemeyer
leitor de Sartre (a quem cita mais,
muito mais, que a Marx e Lênin),
atormentado pela idéia do "fracasso inevitável da vida" e visceralmente pessimista. Nesse instante o leitor pensa na natureza da ligação entre o Arquiteto pessimista
e JK, o político otimista por excelência (ou por clichê). O Arquiteto
já era conhecido quando começou
a trabalhar para JK e construir
Pampulha. Mas teria sua produção
sido a mesma sem a alavanca otimista de JK? Niemeyer não especula a respeito dessa composição
de ânimos, que não lhe parece tema de discussão. Como tantos outros, aliás.
Esse desespero existencial talvez
esteja na origem da pouca importância que o Arquiteto diz votar à
própria arquitetura, à qual prefere
a vida -que no entanto igualmente se esforça por cancelar das
memórias. O Arquiteto surge, a
essa luz, como um anti-romântico
extremado: não quis fundir e confundir a arte com a vida. Como um
bom artista conceitual, concede
pequena importância a sua obra.
Mas, contrariando esse mesmo
princípio, não mistura obra e existência nem abre espaço para a supremacia da vida, mesmo dizendo
o contrário. Platão via a pessoa e a
vida do artista como irrelevantes
diante da obra que faziam (e que
tampouco lhe parecia valer muito
diante da filosofia). Essas memórias do Arquiteto quase dizem que
a vida é mesmo muito pouco e a
obra, quase nada. Niemeyer, o herói platônico radical. Sabemos todos, porém, como o Arquiteto zela, bravamente, por suas obras:
não se toca nelas sem ouvi-lo. E,
mesmo dizendo-se angustiado
diante da vida desde jovem, deve
ter vivido com mais largueza emocional do que admite.
As mulheres, falando nisso, são
tema recorrente no livro, ilustrado
pelo Arquiteto com desenhos de
arquitetura e com desenhos... de
mulheres -belas, jovens e nuas
na praia (o traço da arquitetura é o
mesmo que faz o corpo feminino:
pelo menos aqui, vida e obra se
juntam). E a arquitetura deve
ter-lhe dado, ela também, outras
tantas alegrias sonegadas ao leitor.
Um arquiteto anti-romântico,
portanto. E pragmático: mesmo
opondo-se ideologicamente aos
sucessivos governos e aos "caprichos da burguesia", foi para uns e
outros que projetou.
Teria sido interessante conhecer
suas reflexões sobre essa recorrente tragédia envolvendo a arquitetura, o arquiteto e a sociedade. Ou
sobre o modo como encara aquilo
que parecem incongruências filosóficas entre seu pensamento e sua
obra, como a ordenação do carnaval por meio de uma arquitetura
que, no sambódromo do Rio, impõe à festa um espaço projetado,
começo certo, duração estipulada,
comportamento padronizado e
fim predeterminado. Mas, tampouco esta lhe parece uma questão
a discutir. À autocrítica o Arquiteto preferiu um outro registro,
mais auto-elogioso (de resto merecido, atestam os que com ele
conviveram). Como se o Arquiteto
fosse ainda um jovem profissional
inseguro.
Não se contam memórias sem
quebrar ovos -os próprios e os
dos outros. Niemeyer quis deixá-los a todos inteiros, e o resultado é que ainda espera por uma
biografia (intelectual e de vida) à
altura, a mitobiografia que lhe cabe, portentosa, larga e funda como
a época em que viveu e vive. Falar
sobre o país nos últimos 60 anos é
falar de Niemeyer. E vice-versa. O
Arquiteto já é uma lenda. De uma
lenda, pensando bem, apenas a
ficção pode dar conta, porque só a
ficção, como a vida, é ambígua, incerta, matizada.
A certa altura, o Arquiteto escreve que sua história, feita de afetos e
solidariedades, talvez só a ele possa "interessar e comover". Não é
assim. Mas é verdade que, mesmo
trazendo mais um tijolo para o
edifício, estas memórias revelam-se apenas uma introdução ao
tema.
A OBRA
As Curvas do Tempo - Oscar Niemeyer. Ed. Revan (av. Paulo
de Frontin, 163, CEP 20260-010, RJ, tel. 021/502-7495). 294
págs. R$ 25,00.
Teixeira Coelho é ensaísta e escritor (autor de
"Niemeyer - Um Romance"), diretor do MAC-SP
(Museu de Arte Contemporânea) e professor da
Escola de Comunicações e Artes da USP.
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