São Paulo, domingo, 17 de janeiro de 1999

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LIVROS
Em "As Curvas do Tempo", o arquiteto Oscar Niemeyer deixa de lado as confidências
Confissão em meias palavras

TEIXEIRA COELHO
especial para a Folha

Para os arquitetos é fácil deixar marcas físicas no mundo. Bem menos simples é fazê-lo de modo a que sejam notadas. E gravá-las na idéia que se tem de uma época é excepcional. Oscar Niemeyer pertence ao grupo restrito dos que marcaram o corpo e a idéia do século 20. O Arquiteto vergou a História à sua vontade e transformou-se, lembrando a imagem de Boris Vian, num construtor de impérios, desses que definem seus próprios princípios e balizas.
Mas bem pouco disso e do que significou fazer tudo isso passa para o leitor dessas memórias. O título do livro é sugestivo e contemporâneo na alusão a Einstein. O conteúdo, nem tanto. "As Curvas do Tempo" dizem o mínimo possível da vida e da arquitetura de Niemeyer. Relativamente menos, por exemplo, que o ensaio biográfico a ele dedicado em 1978 pelo amigo e militar de esquerda Nelson Werneck Sodré.
Nas memórias, Niemeyer não se entrega a confidências, indiscrições e comentários sobre si ou sobre figuras e situações históricas. Ao contrário da moda atual, não mostra inclinação para expor em público sua vida pessoal: numa única passagem mais íntima quase sucumbe à vertigem da confissão, mas se segura a tempo em meias palavras. E sobre as personagens públicas com quem conviveu -Juscelino, tantos políticos e intelectuais- amplamente silencia; nomeia-as apenas, como num inventário (como faz com os livros que leu, dos quais não diz o que reteve).
O ensaio de Werneck, sob este aspecto, é mais revelador. Ali o Arquiteto admite, por exemplo, que pouco discutiu política com JK por "receio de importuná-lo com minhas opiniões de homem de esquerda" e por lamentar "não encontrar nesse terreno a abertura de espírito que ele sempre me havia provado quanto ao resto". Ali o Arquiteto comenta coisas como a especulação que acompanhou a construção de Brasília e que o governo não conseguiu ou quis conter. Ou seus encontros com os bedéis da ditadura militar num retorno ao Brasil em 1964. Nada disso é retomado, menos ainda aprofundado, 20 anos depois.
Mesmo assim vêm à tona detalhes importantes sobre o Arquiteto. Como sua melancolia, à primeira vista surpreendente. O livro é todo atravessado por uma "imensa tristeza", como diz Niemeyer, que parece decorrer da passagem do tempo: o Arquiteto envelhece, recorda o passado e admite sua amargura e seus desesperos. Diante de tanta melancolia, o leitor tende a pensar que as pessoas não deveriam esperar muito para escrever suas memórias porque correm o risco de achar tudo desimportante e terem pouco sobre o que falar.
Aos poucos, porém, o que se descobre é um Niemeyer de longa data angustiado, um Niemeyer leitor de Sartre (a quem cita mais, muito mais, que a Marx e Lênin), atormentado pela idéia do "fracasso inevitável da vida" e visceralmente pessimista. Nesse instante o leitor pensa na natureza da ligação entre o Arquiteto pessimista e JK, o político otimista por excelência (ou por clichê). O Arquiteto já era conhecido quando começou a trabalhar para JK e construir Pampulha. Mas teria sua produção sido a mesma sem a alavanca otimista de JK? Niemeyer não especula a respeito dessa composição de ânimos, que não lhe parece tema de discussão. Como tantos outros, aliás.
Esse desespero existencial talvez esteja na origem da pouca importância que o Arquiteto diz votar à própria arquitetura, à qual prefere a vida -que no entanto igualmente se esforça por cancelar das memórias. O Arquiteto surge, a essa luz, como um anti-romântico extremado: não quis fundir e confundir a arte com a vida. Como um bom artista conceitual, concede pequena importância a sua obra.
Mas, contrariando esse mesmo princípio, não mistura obra e existência nem abre espaço para a supremacia da vida, mesmo dizendo o contrário. Platão via a pessoa e a vida do artista como irrelevantes diante da obra que faziam (e que tampouco lhe parecia valer muito diante da filosofia). Essas memórias do Arquiteto quase dizem que a vida é mesmo muito pouco e a obra, quase nada. Niemeyer, o herói platônico radical. Sabemos todos, porém, como o Arquiteto zela, bravamente, por suas obras: não se toca nelas sem ouvi-lo. E, mesmo dizendo-se angustiado diante da vida desde jovem, deve ter vivido com mais largueza emocional do que admite.
As mulheres, falando nisso, são tema recorrente no livro, ilustrado pelo Arquiteto com desenhos de arquitetura e com desenhos... de mulheres -belas, jovens e nuas na praia (o traço da arquitetura é o mesmo que faz o corpo feminino: pelo menos aqui, vida e obra se juntam). E a arquitetura deve ter-lhe dado, ela também, outras tantas alegrias sonegadas ao leitor. Um arquiteto anti-romântico, portanto. E pragmático: mesmo opondo-se ideologicamente aos sucessivos governos e aos "caprichos da burguesia", foi para uns e outros que projetou.
Teria sido interessante conhecer suas reflexões sobre essa recorrente tragédia envolvendo a arquitetura, o arquiteto e a sociedade. Ou sobre o modo como encara aquilo que parecem incongruências filosóficas entre seu pensamento e sua obra, como a ordenação do carnaval por meio de uma arquitetura que, no sambódromo do Rio, impõe à festa um espaço projetado, começo certo, duração estipulada, comportamento padronizado e fim predeterminado. Mas, tampouco esta lhe parece uma questão a discutir. À autocrítica o Arquiteto preferiu um outro registro, mais auto-elogioso (de resto merecido, atestam os que com ele conviveram). Como se o Arquiteto fosse ainda um jovem profissional inseguro.
Não se contam memórias sem quebrar ovos -os próprios e os dos outros. Niemeyer quis deixá-los a todos inteiros, e o resultado é que ainda espera por uma biografia (intelectual e de vida) à altura, a mitobiografia que lhe cabe, portentosa, larga e funda como a época em que viveu e vive. Falar sobre o país nos últimos 60 anos é falar de Niemeyer. E vice-versa. O Arquiteto já é uma lenda. De uma lenda, pensando bem, apenas a ficção pode dar conta, porque só a ficção, como a vida, é ambígua, incerta, matizada.
A certa altura, o Arquiteto escreve que sua história, feita de afetos e solidariedades, talvez só a ele possa "interessar e comover". Não é assim. Mas é verdade que, mesmo trazendo mais um tijolo para o edifício, estas memórias revelam-se apenas uma introdução ao tema.



A OBRA

As Curvas do Tempo - Oscar Niemeyer. Ed. Revan (av. Paulo de Frontin, 163, CEP 20260-010, RJ, tel. 021/502-7495). 294 págs. R$ 25,00.



Teixeira Coelho é ensaísta e escritor (autor de "Niemeyer - Um Romance"), diretor do MAC-SP (Museu de Arte Contemporânea) e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.



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