São Paulo, domingo, 17 de fevereiro de 2002

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+ cinema

Na entrevista a seguir, o diretor comenta seu nov o filme, "Elogio do Amor" , que estréia nesta semana e m SP, relembra a fase clá ssica de Hollywood e critica a TV

O servidor da memória

Thierry Jobin
do "Le Temps"

Com 71 anos, e em breve 50 de atividade como crítico, cineasta e ensaísta, Jean-Luc Godard dirige mais um filme. "Elogio do Amor" ficou pronto depois de cinco longos e inabituais anos de trabalho e mais de um mês de intensa divulgação, à qual ele se dedicou em todas as frentes, desde o diário esportivo "L'Équipe" até a análise, em um programa da televisão francesa, do "reality show" "Loft Story".

A mídia o considera um "bom cliente", que anima os palcos das rádios e das televisões. Quando se é convidado como "bom cliente", é evidente que se fale de um filme que aborda sobretudo a questão da resistência?
Não sei. A televisão sempre foi um lugar difícil para mim. Entrei no jogo durante certo tempo porque eu gostava dos debates e porque achava que havia a possibilidade de divulgar filmes menores, ter um lugar habitual para obras marginais. Mas a televisão é um rolo compressor. Cada uma à sua maneira tenta ganhar o público. As câmeras de televisão não olham mais, elas difundem. Como a web: a palavra "web" -rede, teia- é também a teia de aranha. E nós somos as moscas.

O sr. concorda que "Elogio do Amor" se preocupa mais em se aproximar do público do que alguns de seus filmes anteriores, como "King Lear" ou "Forever Mozart"?
Concordo. O tempo que levei para fazê-lo, as hesitações, as interrupções provavelmente permitiram uma maior preparação para alcançar mais simplicidade. O resultado é sem dúvida mais suave. Aconteceu naturalmente. Pela força das coisas.

Desde "Forever Mozart", sem contar o parêntese de sua série "Histoire(s) du Cinéma", o sr. nunca levou tanto tempo para fazer um filme.
Exatamente. É a idade. Avanço mais lentamente e talvez reflita um pouco mais. Foi-se o tempo em que eu misturava tudo, um pouco sistematicamente, em meus filmes, porque não sabia fazer de outro modo. Eu me entregava livremente a qualquer coisa que parecesse um ensaio, aceito de bom grado na literatura, mas absolutamente recusado na maioria dos filmes.

Seu processo de criação passa primeiro por uma coleta de imagens, pinturas, citações. Ele também foi mais lento no caso de "Elogio do Amor"?
Sim. É uma maneira de fazer que para mim é natural, a partir do momento em que começo a pensar num tema ou numa direção. Às vezes o estopim é uma música. Às vezes trata-se apenas de um som. Digo-me: "É isso! Esse som fala de um lugar aonde eu poderia ir". Depois reúno os elementos que vão na mesma direção. Para mim é uma maneira muito documental de chegar à ficção. Esse processo pertence a minha tradição de cinema, meio documentário, meio ficção. Não obrigatoriamente meio a meio. Por que não 90% e 10%?

A intriga principal, o sr. diz com frequência, sempre representou um problema. Dentre seus filmes, há alguma experiência oposta, em que a trama narrativa tenha surgido primeiro no processo de criação?
São muito raras... Lembro-me da época de "Bande à Part" (1964). Eu não gostava muito dele e continuo a não apreciá-lo, como muitos filmes que fiz, aliás: no melhor dos casos, eles contêm um ou dois bons planos. "Bande à Part" foi apresentado em Cannes e o diretor do Festival de Veneza, Luigi Chiarini, me disse: "Pena que tenha sido apresentado na França, porque eu o teria mostrado em Veneza". E eu respondi: "Se você quiser, faço outro para Veneza, em três meses e meio". Isso resultou em "Une Femme Mariée" (Uma Mulher Casada, 1964), que obrigatoriamente sofreu um a priori, o de eu ter-me decidido a fazer isso, isto e aquilo. "Une Femme Mariée" foi projetado na mesma época de "Deserto Vermelho" [de Michelangelo Antonioni, 1964", e digamos que vi uma diferença de qualidade que não me favorecia em nada (risos).

Como nasceu, em "Elogio do Amor", o personagem de Edgar?
Hoje podemos dizer que existe, no filme, um personagem chamado Edgar. Mas durante a preparação nunca pensei que se tratasse de um personagem. Com o trabalho terminado, consultando as pistas do processo, talvez possamos localizar sua origem. É como quando lemos as reflexões de César sobre a Guerra da Gália, para conhecer César: alguns indícios sobre o personagem podem nascer depois, mas a Guerra da Gália não fala dele.

Edgar é seu alter ego?
Absolutamente não. Coloco nele tanto do que eu penso quanto nas reflexões de uma garota ou nas de um velho senhor, de X ou Y. Muitas vezes me censuraram por isso.

Ao longo do filme, Edgar faz um trabalho de documentarista de obras em progresso. Ele é de certa forma um servidor da memória.
Isso! Prefiro que o descrevam assim. Eu não queria que pensassem que se trata somente de um diretor que tem um projeto de filme. É por isso que o faço hesitar: ele prepara, sem saber ao certo, um filme, uma ópera ou uma cantata.

Um de seus personagens diz: "Você tem boa memória". Edgar responde: "Sim, até demais". O sr. tem a sensação de ter memória demais, de ser compulsivo na pesquisa e na multiplicação dos elementos de seus filmes?
Creio que não. Com a idade, passamos mais tempo a recordar. As coisas não surgem tão depressa. É preciso se colocar no acostamento para perceber suas idas e vindas. Quando se é jovem, ao contrário, se apreende mais depressa o que passa.

Seu filme contém uma acusação bastante forte contra Hollywood. Qual sua visão dessa cinematografia, que outrora o senhor contribuiu para defender?
Se há coisas boas, tornou-se difícil vê-las. Gostei muito do cinema hollywoodiano em certa época. E não falo nem sequer da grande fase clássica dos estúdios ou antes. Não, eu continuei apreciando o que chamamos de pequenos filmes "B" ou mesmo outros mais importantes. Nos "Cahiers du Cinéma" batalhamos muito por eles. Porque, se Frank Capra era reconhecido, Alfred Hitchcock não o era.

O senhor acompanha os movimentos contra o Dogma de Lars von Trier, na Dinamarca, ou os jovens cineastas de Doegmeli, na Suíça?
Não. Leio os jornais, só isso. Quanto ao resto, continuo tão marginal quanto éramos antes da eclosão da nouvelle vague. Eu ia com mais frequência ao cinema, é verdade, mas também porque havia mais para ver. Eu morava em Paris. Na Suíça acho difícil ver filmes. Sobretudo em Genebra e Lausanne.

Uma frase de seu filme é: "Talvez a verdade seja triste".
É uma frase bastante irônica de Ernest Renan, de um livro sobre o cristianismo.

O senhor é triste?
Eu? De maneira nenhuma. Mas com frequência me encontro em situações tristes. Na televisão, por exemplo, onde me deixo vencer pelo ambiente...


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.



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