São Paulo, domingo, 17 de fevereiro de 2002

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O Segundo Império

por Antonio Candido


Em seu novo livro, "Um Funcionário da Monarquia", o crítico literário acompanha a ascensão de um empregado de segundo escalão da burocracia imperial à época de dom Pedro 2º


Adriano Schwartz
Editor do Mais!

Maurício Santana Dias
da Redação

Há dez anos era publicado pela primeira vez o Mais!. O caderno discutia uma grande exposição de obras do artista plástico Hélio Oiticica (1937-1980), que aconteceria em Roterdã, na Holanda.
Quinhentos e vinte e um números separam a edição inicial e a de hoje, que tem como destaque a obra "Um Funcionário da Monarquia", o novo livro do crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza, a ser lançado no mês que vem pela editora Ouro sobre Azul.
Como se pode perceber pelo resumo de algumas dessas edições (leia na pág. 16), nesse período o caderno sofreu alterações de rumo, ajustes de enfoque e até mudou de tamanho. O Mais! manteve, no entanto, uma premissa básica desde sua origem: trazer os principais nomes em atividade em cada área para discutir do modo mais abrangente e com a mais bem cuidada apresentação gráfica possível os assuntos mais pertinentes e em evidência.
Nesse sentido, não há talvez nome mais importante no universo intelectual brasileiro do que Antonio Candido. Autor de pelo menos um clássico dos estudos literários ("Formação da Literatura Brasileira") e de um clássico da sociologia ("Os Parceiros do Rio Bonito"), ele dá agora uma contribuição decisiva e original para o conhecimento da história nacional, com a biografia de Antonio Nicolau Tolentino, um empregado do segundo escalão da burocracia imperial à época de d. Pedro 2º.
Espécie de "Um Estadista do Império" (Joaquim Nabuco) em tom menor, mais atento aos personagens periféricos que aos figurões da época, "Um Funcionário da Monarquia" acompanha a ascensão de Tolentino, um funcionário público com real vocação para a carreira que atuou à sombra do duque de Caxias, do visconde do Rio Branco e do marquês de Olinda.
Na entrevista reproduzida a partir da próxima página, Antonio Candido fala sobre o funcionalismo público no passado e no presente, conta como se interessou por Tolentino e explica por que demorou tanto para publicar um estudo que já está pronto desde 1985.


Fiz um retrato que, além dos traços próprios, pode ajudar a conhecer certo tipo social do Brasil do século 19, o que no começo não estava no meu horizonte


Como surgiu a idéia de escrever "Um Funcionário da Monarquia"?
O conselheiro Tolentino é avô de minha mãe, de modo que desde menino ouvi falar dele. O que me atraiu sempre foi o fato de, sendo de origem muito modesta, ter aberto caminho pelo esforço pessoal e o mérito, começando como uma espécie de contínuo de repartição e chegando a postos elevados, inclusive o de presidente da Província mais importante do império. Então, por simples curiosidade, comecei a procurar dados e vi que ele teve uma vida cheia de peripécias e era uma personalidade muito interessante. Além disso, fui percebendo no curso da pesquisa que a carreira dele ajudava a esclarecer um dos meios de formação da classe média no Brasil no século 19. Sem nenhuma intenção de publicar, resolvi então escrever a sua história, de maneira a resultar não só num perfil, mas um perfil com certo valor de paradigma.
O seu caso serve para ilustrar a mobilidade vertical no Brasil monárquico, cuja classe dominante sabia cooptar os elementos auxiliares de que precisava. Basta pensar no critério de atribuição dos títulos nobiliárquicos, que eram dados a ricos e pobres, brancos e mestiços, membros de famílias importantes e gente "sem nascimento". Era uma sociedade relativamente flexível no universo dos homens livres (não dos escravos, é claro). Daí o contraste entre o peso da dominação de classe e a facilidade com que podiam ser incorporados os que correspondiam aos interesses da oligarquia, independentemente da origem social. A capacidade de recrutar elementos novos para manter o sistema foi um dos fatores de preservação do poder nas classes dominantes, que souberam se renovar sem largar as rédeas nem mudar de mentalidade além do inevitável.

Quanto tempo durou a pesquisa para a biografia e quais as suas principais fontes?
Durou de 1975 a 1985, mas de modo muito intermitente, e foi toda feita no Rio de Janeiro. Comecei pelo Arquivo Nacional, onde em 1975 tive a sorte de ser ajudado por uma funcionária exemplar, que me pôs na pista de documentos essenciais. Trabalhei também na Biblioteca Nacional, no Gabinete Português de Leitura, no Instituto Histórico, na Biblioteca do Itamaraty. Mas o que acabei fazendo não foi uma biografia propriamente dita. Para isso teria sido preciso contar em detalhe a atividade central do conselheiro Tolentino, que foi a sua longa carreira no Tesouro. E também a sua atuação decisiva na Caixa Econômica, da qual foi um dos fundadores e, durante muitos anos, presidente. Mas não consegui localizar a documentação necessária e acabei mencionando apenas os dados essenciais dessas atividades. Com isso o texto ficou menos árido, sem falar que para aquela tarefa eu não tinha o tirocínio indispensável de história econômica.
Portanto o trabalho destacou os momentos mais dramáticos da vida do conselheiro Tolentino, que revelam o seu modo de ser e, ao mesmo tempo, vários aspectos da época. Digamos que fiz um retrato que, além dos traços próprios, pode ajudar a conhecer certo tipo social do Brasil no século 19, o que no começo não estava no meu horizonte, mas já estava quando comecei a redação, feita de 1984 a 1985 em São Paulo e em Poços de Caldas.
Quanto às fontes: foram basicamente os documentos originais, relatórios oficiais impressos, almanaques daquele tempo, sobretudo o preciosíssimo de Laemmert, o "Jornal do Comércio", uns poucos papéis de família e os livros e opúsculos de autoria do conselheiro Tolentino, todos interessantes e legíveis.

Há uma carência na historiografia brasileira de estudos como este que o sr. vai lançar?
Francamente não sei. Não sou historiador, embora me interesse pelos estudos históricos. Devido à formação que tive, com muita sociologia e influência do marxismo, me interesso não apenas pela atuação dos grupos e classes dominantes, mas também pelos agentes anônimos e os personagens humildes, que são dissolvidos nas generalizações e desaparecem tragados pelas estatísticas. Raramente eles chamam individualmente a atenção dos estudiosos, e nunca a dos biógrafos. Mas acho que o estudo dos indivíduos "que não têm história" pode aprofundar o conhecimento.
Há muitos anos escrevi um artigo no jornal da nossa cidade de Cássia, no sudoeste de Minas, onde vivi até os dez anos, chamando a atenção para duas antigas escravas, como contrapeso da crônica local dos barões e dos coronéis. No mesmo sentido escrevi sobre Teresina Carini Rocchi, obscura militante socialista italiana que veio para o Brasil em 1890, à qual minha família e eu próprio nos ligamos intimamente em Poços de Caldas, aonde ela fora morar e onde morreu quase nonagenária.
Registro, ainda, que a minha tese de doutorado em ciências sociais, de 1954, seguiu a mudança de enfoque realizada sobretudo a partir de São Paulo nos anos de 1940: enquanto estudiosos como Oliveira Viana e Gilberto Freyre se concentraram nas classes dominantes, nós passamos a estudar as classes dominadas, e eu insisto sempre nisso como um dos traços distintivos da USP. Assim foi que estudei não o fazendeiro, mas o parceiro anônimo, um proletário rural. Diria que o ensaio sobre o conselheiro Tolentino se enquadra um pouco nesse espírito, e eu o mostro na sombra dos figurões que aparecem nos livros de história: Olinda, Caxias, Rio Branco, Mauá, Ângelo Muniz, Saldanha Marinho e outros. Mas sou um simples amador nesse terreno, e deve haver trabalhos especializados que ignoro.

Em seu livro o sr. toma um caso particular -a biografia do burocrata Antonio Nicolau Tolentino- para descrever os meandros de uma sociedade estamental. A certa altura, falando da oposição à sua atividade reformadora, o sr. diz que "o que se queria era apenas um pouco de ordem"; e, mais adiante, que "o propalado desejo de modificar era no fundo mero desejo de arranjo, que melhorasse o funcionamento do sistema sem o afetar na essência". Em que medida essa "essência" mudou?
Essa pergunta me permite esclarecer o que talvez devesse estar mais especificado no livro. Não se deve pensar que o conselheiro Tolentino fosse um inconformado com o sistema social e político e quisesse a sua transformação. Longe disso. Era um homem convencional, bem enquadrado e, embora não fosse político, visivelmente alinhado com os conservadores, entre os quais se encontravam os seus amigos poderosos. A reforma da administração fluminense não foi iniciativa dele. Era uma velha aspiração e certamente o marquês de Olinda, presidente do Conselho de Ministros, o encarregou de fazê-la, como presidente da Província. O problema foi que, não sendo político militante, ele levou a tarefa a sério demais e entornou o caldo oligárquico. Isso, porque era um burocrata consciente, que desejava melhorar o serviço público para fazer funcionar o sistema com eficiência e justiça. A indignação que suscitou permite dizer que ocorreu um conflito entre a mentalidade burocrática racionalizadora e os interesses da máquina política, que não podia viver sem o pistolão e o compadrio.
Hoje as coisas mudaram, mas é claro que persiste muita coisa do patronato, porque é uma prática enraizada na cultura brasileira a partir da herança portuguesa. A análise clássica de Sérgio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil", mostrando como a nossa tradição tende mais para as "relações de simpatia" do que para as "relações de categoria" (digamos assim), ainda se aplica bastante hoje. Por isso eu disse que a concepção do nosso serviço público se prende mais ao modelo ibérico, que pressupõe o favor. O fato é que, apesar dos pesares, não só os restos do patronato estão aí, mas as classes dirigentes continuam de modo geral a reclamar a necessidade de reformas que, no fundo, não querem efetuar. Agora, como antes, a tendência é manter o máximo do estado de coisas, mudando apenas o mínimo inevitável. Aliás, isso é sociologicamente "normal", porque os grupos que detêm o poder não admitem perdê-lo. Daí a ocorrência periódica dos golpes e das revoluções.

Digamos então que Tolentino era um funcionário preocupado com a eficiência do sistema que, ao tentar promover reformas contrárias aos interesses do patronato, foi derrubado. Como o sr. imagina que seria o destino de um Tolentino na República de hoje?
Os administradores e políticos que querem pôr ordem e lisura no serviço público podem estar sempre certos de que enfrentarão problemas, de modo que hoje a coisa deve ser parecida. Mas é preciso esclarecer: a sua pergunta se refere ao que aconteceu quando ele era presidente da Província do Rio de Janeiro, isto é, quando um burocrata quis atuar na esfera reservada habitualmente aos políticos. Foi aí que surgiu a complicação, porque houve o choque de mentalidade a que já me referi, os políticos querendo apenas uma maquiagem do estado de coisas, ele querendo racionalidade e justiça. Provavelmente hoje aconteceria algo semelhante. O conselheiro Tolentino pertencia ao tipo minoritário de servidores públicos com vocação, dedicação e competência. Graças a eles o serviço público funcionava naquele tempo como funciona agora, isto é, arrastando na periferia um peso morto de gente pouco aplicada e pouco capacitada.

Embora o tom da sua biografia seja impessoal, e o relato se atenha estritamente aos fatos, o texto funciona como peça de acusação exemplar do modelo político brasileiro. A simples descrição dos fatos por vezes tem mais peso e contundência do que a argumentação ideológica?
A sua pergunta focaliza dois tipos de trabalho intelectual, que podem ser e frequentemente são dois momentos de um estudo. Neste eu quis fazer, como disse, uma "crônica de fatos", uma despretensiosa crônica de fatos, de modo que estes predominam. Como o lastro teórico é pequeno, a crítica social aparece em comentários aderentes às situações concretas, não em explanações mais ou menos autônomas. Mas penso que esses comentários bastam para sugerir uma visão crítica. Para ir mais fundo teria sido preciso traçar um quadro mais amplo da oligarquia, e aí apareceria com certeza a "argumentação ideológica" de que fala.
Entre parênteses: como na verdade o meu ensaio é bastante crítico em relação ao sistema político do império, é justo fazer uma ressalva, dizendo que no tempo do Segundo Reinado os oligarcas estavam mais enquadrados, devido ao papel regulador do soberano. Com a "República Velha" eles tomaram o freio nos dentes e passaram a interferir mais pesadamente na vida do país. Creio que a minha narrativa mostra como d. Pedro 2º procurava ser equânime e eficiente naquela sociedade envenenada pela escravidão.


Ao me afastar da rotina (em "Formação da Literatura Brasileira"), não imaginei que a maioria das pessoas entendesse que eu a estava amputando das fases iniciais e das mais recentes. Para citar uma divertida pérola dessa incompreensão: certo colega espirituoso disse há muitos anos num congresso que eu escrevi uma história da literatura brasileira sem a cabeça e sem o rabo...


Em "Formação da Literatura Brasileira" (1959), o sr. fez uma análise macro-histórica do "sistema literário" nacional. Aqui, o sr. se desloca para o registro da micro-história. A mudança de enfoque implica uma alteração de suas concepções teóricas ou se trata de uma adequação ao objeto estudado?
Trata-se da adequação. É muito diferente o estudo de dois períodos literários decisivos, como fiz em relação à Arcádia e ao Romantismo, e o estudo da vida de um personagem secundário. Aproveito para registrar que você acertou ao dizer que eu quis estudar o "sistema literário", segundo conceitos que procurei definir. Não quis estudar a literatura brasileira no conjunto. No entanto, ao me afastar da rotina, não imaginei que a maioria das pessoas entendesse que eu a estava amputando das fases iniciais e das mais recentes. Para citar uma divertida pérola dessa incompreensão: certo colega espirituoso disse há muitos anos num congresso que eu escrevi uma história da literatura brasileira sem a cabeça e sem o rabo...

Seria possível traçar algum paralelo entre a ascensão pública de Tolentino e a de Machado de Assis?
Eles são tão diferentes, e a respectiva ordem de grandeza é tão afastada, que é difícil. Traços comuns são que ambos subiram pelo próprio esforço e o próprio mérito, ambos casaram com mulheres de condição social superior à sua, ambos foram admitidos com respeito à classe média, ambos servem de prova da flexibilidade da sociedade brasileira daquele tempo no universo dos homens livres, sempre que não se tratasse de alterar as suas estruturas básicas. Além disso, ambos foram altos funcionários públicos e, se não fosse a Proclamação da República, Machado de Assis receberia, ao se aposentar como diretor, o título de conselheiro, segundo a praxe.

E há alguma relação de parentesco entre o seu personagem e o famoso poeta satírico português Nicolau Tolentino (1740-1811)?
Nenhuma. O sobrenome do poeta português é Almeida, e Tolentino era prenome, enquanto no nosso conselheiro era sobrenome. A fonte de ambos os casos é a devoção ao santo italiano Nicolau de Tolentino. É frequente em Portugal e no Brasil a transformação dos nomes de certos santos em sobrenome: Assis, Gonzaga, Loiola, Sales, Xavier etc.

Além de "Um Funcionário da Monarquia", o sr. tem algum outro estudo guardado que, eventualmente, pretenda publicar um dia? Há algum outro autor ou tema a que o sr. tenha se dedicado especialmente nos últimos anos ou que tenha chamado a sua atenção?
Não. Este livro existia mimeografado em poucos exemplares desde 1985 e eu não pensava em publicá-lo, porque, como disse, achei que faltava o estudo da longa carreira burocrática do conselheiro Tolentino. Além disso, um vezo meu é protelar demais a publicação de escritos prontos, e mesmo não publicá-los. Tenho feito erros sob este aspecto. Por exemplo: em 1945 escrevi e defendi uma tese de literatura sobre Sílvio Romero, impressa com pouco mais de cem exemplares, como exigia o regulamento. José Olympio me convidou para publicá-la na famosa coleção Documentos Brasileiros, mas recusei, porque achava que eram necessários retoques. Resultado: a tese acabou sendo publicada tal e qual 20 anos depois como boletim da Faculdade de Filosofia, cuja circulação é quase só interna, de modo que continuou secreta. Se tivesse aparecido em 1945, teria sido uma das primeiras monografias universitárias de literatura e poderia ter prestado serviços. Outro exemplo: em 1954 defendi tese de doutorado em ciências sociais, e José Olympio fez o mesmo convite. Recusei de novo, achando que precisava ser melhorada. Afinal dei-lhe o texto sem grandes alterações e ele o publicou em 1964, dez anos depois. Se tivesse aparecido na hora, "Parceiros do Rio Bonito" poderia ter marcado um momento nos estudos sociológicos. Quando apareceu, estes já tinham se desenvolvido muito, e ele perdera grande parte da oportunidade.
"Um Funcionário da Monarquia" foi pedido há muitos anos por um editor que soube dele, mas eu recusei, com a esperança de completá-lo -e ele sai agora praticamente do mesmo jeito que teria saído em 1985. Se não fosse o amável interesse da editora Ouro sobre Azul, creio que continuaria para todo o sempre em estado de poucos exemplares mimeografados.


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