São Paulo, domingo, 17 de fevereiro de 2002

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+ brasil 502 d.C.

A última encarnação do Reino Unido

Evaldo Cabral de Mello


D. João 6º concluíra seu papel no Brasil, mas em Portugal fracassaria, pois ali ele teve de lidar com dois problemas: o da esquerda liberal e o da extrema direita, inspirada por d. Carlota


Realizada a Independência, a concepção do império luso-brasileiro voltaria à tona em 1823-1824, na esteira dos acontecimentos políticos em Portugal. Quando, em meados de 1821, d. João 6º regressara a Lisboa, lhe restavam cinco anos de vida, que viverá no paço tristonho da Bemposta. Esse período já não desperta o interesse do leitor brasileiro, naturalmente voltado não para o pai, mas para o filho, o príncipe d. Pedro, embora, ao contrário do poema de Bandeira, o pai, não o filho, estivesse mais precisado de oração.
D. João 6º concluíra seu papel no Brasil, mas em Portugal fracassaria. Ali, ele teve de lidar com dois problemas. O primeiro partia da esquerda liberal, os chamados "vintistas", que controlavam a situação nas cortes ressuscitadas pelo movimento vitorioso do Porto para regenerar a nação, humilhada ao tempo da ocupação francesa como da junta dominada pelo procônsul britânico, general Beresford. O outro desafio vem da extrema direita, do integrismo absolutista que, sob a inspiração da rainha d. Carlota, mobiliza o infante d. Miguel, a fradaria, parte da nobreza e do Exército e, para reconhecer a verdade, a esmagadora maioria fanatizada do país, com vista a derrubar o novo regime liberal que a atitude irredenta do Brasil comprometera.
Do momento do seu regresso a Lisboa, foi entre esses escolhos que d. João 6º teve de navegar. El Rei, que, por uma questão de feitio, preferia tratar com os liberais moderados a ter de se entender com a mulher e o infante, não viu com bons olhos o movimento, o qual, ironicamente e graças à força do sentimento monárquico, redundou em vantagem sua. Em 1823, um pronunciamento militar comandado por d. Miguel, a Vilafrancada, dissolveu as cortes e restaurou o Antigo Regime, repondo d. João 6º na plenitude dos poderes de que gozara antes da revolução do Porto. Malgrado haver sido desfechado pelos setores mais retrógrados da sociedade portuguesa, a Vilafrancada foi sua "journée des dupes", de vez que o monarca não os chamou ao poder, preterindo-os em favor dos conservadores moderados com o apoio da Inglaterra na sua resistência à Santa Aliança e de um limitado círculo de personalidades mais ou menos ilustradas que, tendo à frente d. Pedro de Souza Holstein, futuro duque de Palmela, enxergavam a saída da crise pelo meio-termo de uma monarquia constitucional que permitisse a El Rei recuperar o essencial, mas não a totalidade, dos poderes que perdera.
Doravante os objetivos da coroa cifrar-se-ão na outorga de uma Carta, à maneira da que Luís 18 dera à França; e a preservação de um nexo político e institucional, por tênue que fosse, entre Portugal e Brasil. D. João 6º foi malsucedido em ambos os propósitos.
Palmela foi o epígono da linhagem de diplomatas e de "estrangeirados" a serviço da coroa desde os tempo de d. Luís da Cunha. Representante no governo revolucionário de Sevilha em 1809-1812, ele tivera a missão de obter a regência da Espanha para d. Carlota Joaquina, diante do sequestro da família real espanhola na França. Palmela enxergara então a perspectiva de realizar na América, contra Napoleão, a união ibérica que não fora possível na Europa.
Como escreveu então, "duas nações, ilhas da mesma península e que o destino criou para serem irmãs, (...) ofereciam à França uma massa ainda maior de resistência, e o maior e mais resplandecente império do mundo poderia ressurgir de entre os incêndios e ruínas dessa revolução. Ter-se-ia conseguido, pelo único modo por que é possível consegui-lo, essa reunião, que foi de três séculos a esta parte o maior objeto às vezes da ambição, sempre da política dos soberanos e dos homens de Estado desta nação", isto é, da Espanha. Devido ao veto inglês ao ambicioso plano, que prejudicaria seus interesses comerciais, d. João, com seu bom senso lusitano, preferiu ceder os direitos de d. Carlota à Regência em troca da Banda Oriental, para desapontamento de Palmela, que acreditava que só no caso em que a América espanhola se estilhaçasse é que o príncipe deveria "tirar todo o partido possível dessa dissolução de um tão grande corpo político".
Na sua condição de embaixador ao Congresso de Viena, Palmela fora o verdadeiro inspirador da criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1816), pois, como pretendeu Oliveira Lima, ele atribuíra o projeto a Talleyrand para mais facilmente vendê-lo a d. João. A hipótese do autor de "D. João 6º no Brasil" tem a seu favor a tenacidade com que Palmela, ao assumir a pasta dos negócios estrangeiros após a Vilafrancada, defendeu a preservação do Reino Unido, malgrado suas reduzidas possibilidades de êxito, perante novamente a oposição inglesa e dessa vez também a do governo do Rio de Janeiro. À raiz da Vilafrancada, acreditava-se em Lisboa estarem criadas as condições políticas para retomar o diálogo com o Brasil. Se as cortes liberais haviam constituído o grande empecilho a um acordo entre os dois reinos, seu desaparecimento parecia aplainar o caminho para a reconstituição da unidade imperial. A justificada resistência do príncipe regente às ordens do regime liberal perdia razão de ser, no momento em que d. João 6º voltava a exercer a soma dos poderes majestáticos.
Palmela via com nitidez que o Reino Unido teria de ser reconstruído para atender às circunstâncias do Brasil após a partida de d. João 6º. Por um lado, havia a impossibilidade de reduzi-lo à anterior situação colonial, por outro, a dificuldade de convencer El Rei, mas sobretudo a opinião portuguesa à perda de "uma tão bela e vasta herança", tarefa que teria de ser conduzida com extrema habilidade para impedir que os miguelistas capitalizassem com o prejuízo. Em princípio, podia-se contar com a ajuda do tempo, "sempre elemento indispensável para levar os homens a resignarem-se à lei da necessidade e para dissipar as ilusões criadas", mas sua mera passagem trazia o inconveniente de consolidar o status quo no Brasil, tornando maiores a cada dia as exigências que o Rio de Janeiro apresentaria como preço do restabelecimento do Reino Unido. Quaisquer, porém, que fossem os empecilhos, o regime saído da Vilafrancada ou qualquer outro em seu lugar ver-se-ia na mesma obrigação de fazer alguma coisa, antes de abandonar de vez a possibilidade de trazer os brasileiros de volta ao aprisco.
Mesmo que Palmela estivesse suficientemente informado de que, na perspectiva do governo do Rio, a atitude das cortes dissolvidas havia levado a situação ao ponto a partir do qual já não havia retorno, ele julgava que a divisão do Reino Unido era contrária aos interesses d'El Rei como também do próprio d. Pedro, seu herdeiro. Em decorrência da permanência deste no Brasil, o que se passava aqui não podia ser assemelhado ao que ocorrera nos Estados Unidos da América ou ao que se verificava na América espanhola. É certo existir um partido brasileiro de aspirações republicanas, mas a preservação do Reino Unido daria precisamente ao regente os meios de debelá-lo.
Reconhecia Palmela que nada poderia o governo de Lisboa sem apoio britânico, não só devido à necessidade de atender aos interesses comerciais desenvolvidos pela Inglaterra a partir de 1808 mas também -e não menos essencial- em vista da eventual sustentação militar que dela esperava o novo regime português para pôr-se a salvo de uma intervenção espanhola, incentivada pela Santa Aliança.
Embora houvesse anos o secretário do Exterior, Castlereagh, houvesse tirado as esperanças de socorrer militarmente Portugal, Palmela, em seguida à Vilafrancada, voltou a alimentá-las, tanto mais que, morto Castlereagh, ainda se desconhecia o rumo a ser dado pelo sucessor, George Canning, à política exterior do país. Tratava-se de persuadir o governo de Londres de que a separação do Reino Unido não redundaria em vantagens comerciais para a Grã-Bretanha e que a instauração de regimes republicanos na América reforçaria a posição dos Estados Unidos no continente. E, o que é mais, a posição privilegiada da Inglaterra em Portugal ficaria irremediavelmente prejudicada, pois sem o Brasil o velho reino ou se tornaria um aliado onerosíssimo para a Inglaterra ou sairia da sua órbita para colocar-se sob a da França e da Espanha.


Desde 1822, a Independência deixara de ser objetivo de grupos urbanos radicais para tornar-se investimento político da elite de funcionários da corte fluminense, para quem era vital preservar as repartições deixadas no Brasil por d. João 6º


Com a deformação da visão retrospectiva com que escreveu suas recordações de vida pública, Palmela virá a afirmar que a atitude inglesa pusera desde o começo tudo a perder, pois "quase que sem rebuço, mostrou desde logo a intenção de favorecer a insurreição das colônias espanholas e portuguesas, fazendo ceder qualquer consideração de moral pública à que sobre todas e sempre o domina, isto é, a de promover e desenvolver o seu comércio". A verdade é que inicialmente havia a possibilidade, como em toda mudança de poder, de que Canning viesse a infletir a orientação de Castlereagh em sentido mais favorável a Portugal. Em todo o caso, não se pode dizer, como fez Palmela, que Londres não distinguia a situação da América portuguesa da situação da América hispânica. Por outro lado, se todo o objetivo da Grã-Bretanha era exclusivamente econômico, cabia a Portugal sugerir a fórmula que buscasse acomodá-lo no contexto do sistema comercial que se teria de criar para o Reino Unido, sob a forma de um condomínio anglo-lusitano das relações mercantis do Brasil.

Pacto federativo
Para reconstruir o Reino Unido, d. João 6º e o ministério estavam dispostos a reconhecer a mais ampla autonomia política e administrativa ao Brasil, que receberia Constituição própria, adaptada às suas condições; e seria regido pelas leis do seu próprio Parlamento, as quais seriam sancionadas pelo regente e confirmadas pro forma por d. João 6º. O vínculo subsistente entre ambos países seria exclusivamente dinástico, por um lado, e internacional, por outro, configurando um autêntico pacto federativo. O chefe da Casa de Bragança por direito hereditário reinaria sobre as duas nações, delegando ao primogênito e, portanto, futuro monarca, a regência daquela parte em que não residisse, fórmula que permitia evitar uma definição acerca da melindrosa questão da capital da monarquia. De início, d. João 6º reinaria em Lisboa, tendo d. Pedro como regente no Rio, até o dia em que, morto d. João, d. Pedro confiaria Portugal a seu herdeiro, no caso d. Maria da Glória. Para alcançar esse resultado, d. João 6º e Palmela se contentariam com a cláusula da nação mais favorecida, sacrificando qualquer pretensão de preferência comercial, a qual era inviável do momento em que os interesses da Grã-Bretanha deviam ser levados na devida conta, pois a ela caberia avalizar internacionalmente a engenhosa fórmula. As relações diplomáticas seriam comuns no tocante aos tratados políticos, mas os acordos de comércio exterior seriam adaptados às necessidades de cada reino. O monarca delegaria no príncipe regente do país em que não estivesse residindo a competência de nomeação para os cargos públicos, garantindo-se desde então os empregos concedidos no Brasil, pois, segundo Palmela, "o interesse próprio é sempre a mola real das revoluções e só transigindo com uns se podem terminar as outras". A medida era, com efeito, vital para o êxito do plano, na medida em que, desde 1822, a Independência do Brasil deixara de ser um objetivo de grupos urbanos radicais para tornar-se o investimento político da elite de altos funcionários da corte fluminense, para quem era vital preservar as repartições deixadas no Brasil por d. João 6º. A marinha de guerra e o serviço diplomático seriam comuns. A dívida pública destinada às responsabilidades comuns seria compartilhada, segundo proporções a serem ajustadas. As possessões ultramarinas da África e da Ásia continuariam a ser dependências da coroa portuguesa.

Golpes e contragolpes
As concessões que Portugal estava pronto agora a fazer eram as mesmas que os deputados brasileiros haviam solicitado em vão às cortes liberais. Por que, ao contrário, El Rei e o ministério se mostravam sensíveis a essas aspirações autonomistas? No Brasil, na atmosfera exaltada da Independência, atribuiu-se à atitude de d. João 6º os mais sinistros desígnios de recolonização. Em meados de 1824, a concepção do Reino Unido estava inapelavelmente condenada, embora Palmela julgasse otimisticamente que a dissolução da Constituinte e a Confederação do Equador levariam d. Pedro a reavaliar as vantagens da união à luz da necessidade de repressão de movimentos regionais. Àquela altura, a extrema direita desencadeara nova prova de força, quando d. João 6º se viu cercado no palácio por outro levante castrense, a Abrilada, que, a pretexto de protegê-lo, visava a alijar Palmela e os moderados para precipitar sua abdicação em d. Miguel. O golpe fracassou devido à reação do corpo diplomático estrangeiro, que levou El Rei para bordo de uma nau inglesa no Tejo, de onde d. Miguel foi sumariamente demitido da chefia do Exército e enviado para o exílio. Que o objetivo de d. João 6º e dos moderados ao insistirem na preservação do Reino Unido era primordialmente dinástico é o que se conclui da leitura da correspondência diplomática de Palmela. A tônica da sua argumentação recaía não sobre a reconstituição do monopólio comercial, o que se sabia ser impossível, nem sequer sobre os aspectos econômicos das relações entre os dois reinos, embora estes também fossem ventilados, mas sobre o problema da sucessão ao trono português, a cujo respeito os conservadores moderados desejavam manter os direitos de d. Pedro, menos por entusiasmo pela figura de um príncipe visto como o ingrato que se pusera à frente da Independência do Brasil do que pelo temor do mal maior, isto é, de que a coroa viesse caber à "bête noire" da facção no poder, o infante d. Miguel. Por outro lado, a eventual aclamação de d. Pedro após a morte de d. João 6º exigia que se prevenisse a hipótese de Portugal voltar a ser governado do Brasil. "A sorte deste Reino não pode ficar incerta e precária, dependente da vida do nosso atual soberano", se lamentava Palmela. Só a reconciliação com o Brasil permitiria "evitar para Portugal a desgraça de futuras dissensões e assegurar a sucessão à Coroa no seu legítimo herdeiro". A diferença é que Palmela queria resolver de imediato a questão sucessória, mas d. Pedro preferia adiá-la.

Guerra civil
Por conseguinte, para Palmela e os moderados, urgia assegurar a presença de d. Pedro à frente da monarquia dual, barrando as pretensões de d. Miguel e da sua facção, cuja tomada do poder eles temiam mais que tudo, prevendo corretamente que elas viriam a custar uma guerra civil ao país. Nessa perspectiva, a corte do Rio deveria funcionar como âncora da monarquia constitucional lusitana. A obsessão brasileira pela recolonização fez naufragar o plano joanino, sem que, contudo, evitássemos o que legitimamente poderia ser tido como a recolonização por excelência, a presença dominante da imigração e do comércio portugueses na antiga colônia e sua influência nas decisões do novo Estado nacional.
O tratado de 1825 só recolheu do esquema dual a cláusula pela qual d. João 6º, mas não seus sucessores em Portugal, poderia denominar-se imperador do Brasil. A cláusula, que parece tão ofensiva aos brios nacionalistas da historiografia brasileira, foi apenas o penduricalho tirado ao plano de Palmela para satisfação de amor-próprio de um soberano que já era encarado como o verdadeiro fundador da Independência. Ironicamente a união dos dois reinos só sobreviverá no nível de alguns consulados, que ao longo do século 19 atuaram indistintamente como repartições luso-brasileiras na Europa, não fossem então os diplomatas uns incorrigíveis arcaizantes.


Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "O Negócio do Brasil" (Topbooks). Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".



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