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O sentido da vida
por Moacyr Scliar
Era uma vida de sobressaltos e emoções, a nossa.
Morávamos no Bom Fim, o bairro judaico de
Porto Alegre. Os moradores eram, em geral, imigrantes da Europa Oriental, gente sofrida e pobre, que residia em casinhas pequenas e sem conforto.
Os homens eram marceneiros, alfaiates, vendedores
ambulantes. As mulheres tomavam conta da casa, enfrentavam os ratos, as baratas e o orçamento reduzido.
E as crianças, meu caso, iam à escola judaica, jogavam
futebol e, nas brincadeiras de rua ou de quintal, transformavam-se em piratas, em viajantes espaciais, em heróis do faroeste, em exploradores da África misteriosa.
Meu pai, dono de uma loja de calçados, era dos mais
prósperos -até carro tinha, um velho Oldsmobile
caindo aos pedaços. Além disso, exercia uma posição de
liderança na comunidade. Foi ele quem fundou o Clube
Scholem Aleichem, que reunia pessoas interessadas em
leitura.
Eu disse que era uma vida de sobressaltos e emoções?
Disse. Os sobressaltos: doença na família (frequente),
assaltos na rua (raros). As emoções: assistir a um filme
iídiche no cinema Baltimore, comemorar o Ano Novo
na sinagoga. Ah, sim, e receber um visitante ilustre. Como Solomon Kristol.
Foi meu pai quem primeiro ouviu falar dele. E nesse
dia voltou para casa excitadíssimo. Um amigo lhe dissera que um grande artista estava em São Paulo, o pintor
Solomon Kristol, sobrevivente de campo de concentração.
Meu pai imediatamente resolveu trazê-lo a Porto Alegre. Afinal papai era um promotor da cultura judaica.
Mas queria também se promover, como observou, acidamente, minha mãe. Mulher prática, ela não tinha
muitas ilusões com artistas: todos que conhecera eram
vagabundos, boas-vidas. Meu pai irritou-se com aquela
coisa filistéia, pequeno-burguesa. Golpeou a mesa:
- O homem vem para Porto Alegre. Será nosso hóspede. Quem não estiver satisfeito pode ir embora.
De imediato fez-se silêncio. Meu pai raramente se enfurecia, mas, quando isso acontecia, era bom não contrariá-lo, coisa que minha irmã e eu havíamos aprendido às nossas próprias custas. Mamãe, porém, não se
deixava vencer tão facilmente:
- E posso saber onde o artista vai dormir?- perguntou, irônica. Questão mais do que pertinente: nossa casa
era um pouco maior que as outras do bairro, mas estava
longe de ser uma mansão. Três quartos: o do casal, o da
minha irmã e o meu. Ah, sim, e o quartinho da empregada. Para o meu pai a decisão não foi difícil:
- Ele fica no quarto do Quico. E o Quico dorme na
sala.
Quico sou eu. Mas não fiquei zangado, não. Longe
disso. Em primeiro lugar, estava contente por meu pai.
Em segundo lugar, seria uma honra ter um pintor em nossa casa. À época eu tinha minhas próprias veleidades artísticas: queria ser violinista. Eu e mais duzentos
milhões de judeuzinhos, só que eu seria um violinista
famoso, o Jascha Heifetz do Bom Fim. Meu pai já tinha
me conseguido um violino -recebido de um cliente,
como parte do pagamento de uma dívida- e até me arranjara uma professora: a senhorita Rachel (ela fazia
questão deste "senhorita", embora, segundo as comadres do Bom Fim, fosse, na verdade, uma solteirona).
Aos quarenta e poucos anos, cabeleira desgrenhada e
fundas olheiras, a senhorita Rachel traduzia na sofrida
expressão a sua amargura: sempre quisera ser uma artista, não o conseguira, e dava aulas para sobreviver. Eu
não era exatamente o discípulo que pedira a Deus: as
notas que eu arrancava de meu precário sofrimento
lembravam os miados de um gato passando por um
processo de lento estrangulamento. Certamente não
poderia tocar para o Solomon -ele já tinha pago seus
pecados no campo de concentração-, mas decerto
trocaríamos idéias, o jovem artista e o artista veterano.
Meu pai pôs-se a campo. Milagrosamente, numa época em que as comunicações eram precárias, conseguiu
falar com o pintor, fez-lhe o convite. Para sua surpresa,
Solomon aceitou-o de imediato. Não fez qualquer exigência; aceitou até vir de trem, o que levava vários dias.
Nesse meio tempo, papai meteu mãos à obra. Várias
coisas estavam previstas: uma exposição das obras de
Solomon (que ele mesmo traria), um jantar e até uma
visita a um vereador.
No dia marcado fomos -a nossa família e vários
amigos- à estação ferroviária e lá estava o Solomon
Kristol, um homem de uns 50 anos, baixo, atarracado,
barbicha, uma cabeleira grisalha. O que mais me impressionou nele foi o rosto, sulcado por fundas rugas
-parecia uma máscara, aquele rosto. Meu pai abraçou-o efusivamente, fez um pequeno discurso em iídiche. Solomon murmurou algumas palavras de agradecimento e disse que gostaria de repousar: a viagem havia sido longa e cansativa. Fomos para casa, pois, papai
mostrou-lhe o quarto -que olhou sem qualquer comentário- e pronto, tínhamos um artista a domicílio.
E em nosso domicílio ficaria por algum tempo.
No dia seguinte, papai pediu-lhe os quadros, para colocá-los no Clube, onde seria realizada a exposição. E aí,
a primeira surpresa. De uma grande pasta, Solomon tirou seus trabalhos. Que miramos com certa surpresa
-e consternação: era risco pra cá e pra lá, borrão pra cá
e pra lá, pingo pra cá e pra lá. Maravilhoso, disse meu
pai, tentando disfarçar a perplexidade. Minha mãe limitou-se a dar uma olhada e voltou para a cozinha, anunciando que tinha de preparar o almoço.
Meu pai foi falar com Schmil, o moldureiro. Pediu-lhe
que fizesse o serviço de graça, como um tributo ao mestre. Schmil, que não tinha papas na língua, respondeu
que Solomon não era mestre coisa alguma: as molduras
até se envergonhariam de estar junto àqueles quadros
horrorosos. Por fim, chegaram a um acordo: se as vendas fossem boas, Schmil receberia uma porcentagem
delas. Caso contrário, poderia retirar as molduras.
A exposição foi um fracasso: apenas dois quadros foram vendidos, um deles para papai. Ao jantar também
não veio muita gente. Enfim, todo o empreendimento
resultara em decepção.
O curioso é que, a Solomon, isso não parecia importar. Aliás, nada parecia lhe importar. Falava pouco, passava o tempo todo no seu quarto -no meu quarto-,
olhos fitos no teto, pensando ou trauteando baixinho
uma canção em iídiche. Às vezes saía, dava uma volta
pelo Bom Fim, mas sem falar com ninguém. Agora: comia um bocado. E dava trabalho: havia o quarto para
arrumar -tocos de cigarro por toda a parte-, roupa
para lavar. Lucila ficava por conta. Era a nossa empregada, uma mulatinha bonita e viva. Ela ficava irritada
com o hóspede, por razões óbvias. Solomon, pelo contrário, tratava-a muito bem: era a única pessoa a quem
sorria, o que deixava minha mãe irritada. Lá pelas tantas, começou a perguntar a meu pai quando, afinal, o visitante levantaria acampamento. Não posso intimar um
artista a ir embora, se defendia meu pai. Artista coisa
nenhuma, replicava minha mãe, esse aí não passa de
um vigarista. Uma opinião partilhada por muitos de
nossos vizinhos. Schmil, por exemplo, não hesitava em
dizer que meu pai deveria mandar embora o tal Solomon.
Uma noite acordei ouvindo doridos soluços. Vinham
do quarto de Solomon, ao lado da sala onde eu estava
dormindo. Com medo de que o homem estivesse passando mal, bati à porta. Não houve resposta. Hesitei um
instante e entrei.
Ali estava o pintor, estirado na cama, ainda vestido,
chorando. O que houve, perguntei em iídiche. Também
em iídiche ele me disse que estava chorando de saudades da mulher e dos filhos, mortos havia exatos cinco
anos, no campo de concentração.
Perguntei se podia fazer alguma coisa por ele.
Olhou-me, subitamente -e estranhamente- animado.
-Sim -disse-, há uma coisa que você pode fazer
por mim.
Queria que eu convencesse a Lucila a vir a seu quarto.
Você já é um homenzinho, disse, deve entender isso, faz
muito tempo que estou sem mulher.
Eu não sabia o que dizer. A verdade é que estava com
pena do homem, muita pena. E era tão sincera sua súplica que acabei indo até o quarto de Lucila. Cuja porta
estava aberta, por causa do calor. Acordei-a, contei-lhe
o que tinha se passado. De início ficou indignada: essa
não, vê lá se vou dormir com aquele velho carcomido.
Mas eu insisti. Expliquei que se tratava de um artista, e
que os artistas não podem ficar frustrados. Mais: prometi-lhe meu relógio. Era um belo relógio, e Lucila cobiçava-o há tempos -não para si, para o namorado.
Acabou aceitando. Deitei-me e, tapando os ouvidos,
tratei de ignorar os gemidos que vinham do quarto.
No dia seguinte, Solomon anunciou que ia embora.
Schmil tratou de recuperar as molduras. Ao receber os
quadros, Solomon deu-me um de presente. Chamava-se "O Sentido da Vida". Traços, borrões, pingos: "O
Sentido da Vida".
Solomon Kristol foi para o Estados Unidos e nunca
mais ouvimos falar dele. Mamãe jogou fora o quadro
que papai havia ganho, mas o meu eu guardei. Guardei-o por muitos anos. Um dia, para minha surpresa, vi numa revista uma grande reportagem sobre Kristol, recentemente morto. Tornara-se um artista famoso e seus
quadros valiam uma fortuna.
Valiam mesmo, como constatei ao vender "O Sentido
da Vida" para um marchand do Rio: com o dinheiro paguei o meu curso de medicina. Não todo o curso, naturalmente; o último ano correu por minha conta. Mas aí
eu já estava trabalhando, já ganhava alguma coisa. E,
principalmente, já sabia muito acerca do sentido da vida.
Moacyr Scliar é escritor, autor de, entre outros, "A Mulher Que Escreveu a Bíblia" (Companhia das Letras).
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