São Paulo, domingo, 17 de fevereiro de 2002

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O sentido da vida

por Moacyr Scliar

Era uma vida de sobressaltos e emoções, a nossa. Morávamos no Bom Fim, o bairro judaico de Porto Alegre. Os moradores eram, em geral, imigrantes da Europa Oriental, gente sofrida e pobre, que residia em casinhas pequenas e sem conforto. Os homens eram marceneiros, alfaiates, vendedores ambulantes. As mulheres tomavam conta da casa, enfrentavam os ratos, as baratas e o orçamento reduzido. E as crianças, meu caso, iam à escola judaica, jogavam futebol e, nas brincadeiras de rua ou de quintal, transformavam-se em piratas, em viajantes espaciais, em heróis do faroeste, em exploradores da África misteriosa. Meu pai, dono de uma loja de calçados, era dos mais prósperos -até carro tinha, um velho Oldsmobile caindo aos pedaços. Além disso, exercia uma posição de liderança na comunidade. Foi ele quem fundou o Clube Scholem Aleichem, que reunia pessoas interessadas em leitura.
Eu disse que era uma vida de sobressaltos e emoções? Disse. Os sobressaltos: doença na família (frequente), assaltos na rua (raros). As emoções: assistir a um filme iídiche no cinema Baltimore, comemorar o Ano Novo na sinagoga. Ah, sim, e receber um visitante ilustre. Como Solomon Kristol.
Foi meu pai quem primeiro ouviu falar dele. E nesse dia voltou para casa excitadíssimo. Um amigo lhe dissera que um grande artista estava em São Paulo, o pintor Solomon Kristol, sobrevivente de campo de concentração.
Meu pai imediatamente resolveu trazê-lo a Porto Alegre. Afinal papai era um promotor da cultura judaica. Mas queria também se promover, como observou, acidamente, minha mãe. Mulher prática, ela não tinha muitas ilusões com artistas: todos que conhecera eram vagabundos, boas-vidas. Meu pai irritou-se com aquela coisa filistéia, pequeno-burguesa. Golpeou a mesa:
- O homem vem para Porto Alegre. Será nosso hóspede. Quem não estiver satisfeito pode ir embora.
De imediato fez-se silêncio. Meu pai raramente se enfurecia, mas, quando isso acontecia, era bom não contrariá-lo, coisa que minha irmã e eu havíamos aprendido às nossas próprias custas. Mamãe, porém, não se deixava vencer tão facilmente:
- E posso saber onde o artista vai dormir?- perguntou, irônica. Questão mais do que pertinente: nossa casa era um pouco maior que as outras do bairro, mas estava longe de ser uma mansão. Três quartos: o do casal, o da minha irmã e o meu. Ah, sim, e o quartinho da empregada. Para o meu pai a decisão não foi difícil:
- Ele fica no quarto do Quico. E o Quico dorme na sala.
Quico sou eu. Mas não fiquei zangado, não. Longe disso. Em primeiro lugar, estava contente por meu pai. Em segundo lugar, seria uma honra ter um pintor em nossa casa. À época eu tinha minhas próprias veleidades artísticas: queria ser violinista. Eu e mais duzentos milhões de judeuzinhos, só que eu seria um violinista famoso, o Jascha Heifetz do Bom Fim. Meu pai já tinha me conseguido um violino -recebido de um cliente, como parte do pagamento de uma dívida- e até me arranjara uma professora: a senhorita Rachel (ela fazia questão deste "senhorita", embora, segundo as comadres do Bom Fim, fosse, na verdade, uma solteirona). Aos quarenta e poucos anos, cabeleira desgrenhada e fundas olheiras, a senhorita Rachel traduzia na sofrida expressão a sua amargura: sempre quisera ser uma artista, não o conseguira, e dava aulas para sobreviver. Eu não era exatamente o discípulo que pedira a Deus: as notas que eu arrancava de meu precário sofrimento lembravam os miados de um gato passando por um processo de lento estrangulamento. Certamente não poderia tocar para o Solomon -ele já tinha pago seus pecados no campo de concentração-, mas decerto trocaríamos idéias, o jovem artista e o artista veterano.
Meu pai pôs-se a campo. Milagrosamente, numa época em que as comunicações eram precárias, conseguiu falar com o pintor, fez-lhe o convite. Para sua surpresa, Solomon aceitou-o de imediato. Não fez qualquer exigência; aceitou até vir de trem, o que levava vários dias.
Nesse meio tempo, papai meteu mãos à obra. Várias coisas estavam previstas: uma exposição das obras de Solomon (que ele mesmo traria), um jantar e até uma visita a um vereador.
No dia marcado fomos -a nossa família e vários amigos- à estação ferroviária e lá estava o Solomon Kristol, um homem de uns 50 anos, baixo, atarracado, barbicha, uma cabeleira grisalha. O que mais me impressionou nele foi o rosto, sulcado por fundas rugas -parecia uma máscara, aquele rosto. Meu pai abraçou-o efusivamente, fez um pequeno discurso em iídiche. Solomon murmurou algumas palavras de agradecimento e disse que gostaria de repousar: a viagem havia sido longa e cansativa. Fomos para casa, pois, papai mostrou-lhe o quarto -que olhou sem qualquer comentário- e pronto, tínhamos um artista a domicílio. E em nosso domicílio ficaria por algum tempo.
No dia seguinte, papai pediu-lhe os quadros, para colocá-los no Clube, onde seria realizada a exposição. E aí, a primeira surpresa. De uma grande pasta, Solomon tirou seus trabalhos. Que miramos com certa surpresa -e consternação: era risco pra cá e pra lá, borrão pra cá e pra lá, pingo pra cá e pra lá. Maravilhoso, disse meu pai, tentando disfarçar a perplexidade. Minha mãe limitou-se a dar uma olhada e voltou para a cozinha, anunciando que tinha de preparar o almoço.
Meu pai foi falar com Schmil, o moldureiro. Pediu-lhe que fizesse o serviço de graça, como um tributo ao mestre. Schmil, que não tinha papas na língua, respondeu que Solomon não era mestre coisa alguma: as molduras até se envergonhariam de estar junto àqueles quadros horrorosos. Por fim, chegaram a um acordo: se as vendas fossem boas, Schmil receberia uma porcentagem delas. Caso contrário, poderia retirar as molduras.
A exposição foi um fracasso: apenas dois quadros foram vendidos, um deles para papai. Ao jantar também não veio muita gente. Enfim, todo o empreendimento resultara em decepção.
O curioso é que, a Solomon, isso não parecia importar. Aliás, nada parecia lhe importar. Falava pouco, passava o tempo todo no seu quarto -no meu quarto-, olhos fitos no teto, pensando ou trauteando baixinho uma canção em iídiche. Às vezes saía, dava uma volta pelo Bom Fim, mas sem falar com ninguém. Agora: comia um bocado. E dava trabalho: havia o quarto para arrumar -tocos de cigarro por toda a parte-, roupa para lavar. Lucila ficava por conta. Era a nossa empregada, uma mulatinha bonita e viva. Ela ficava irritada com o hóspede, por razões óbvias. Solomon, pelo contrário, tratava-a muito bem: era a única pessoa a quem sorria, o que deixava minha mãe irritada. Lá pelas tantas, começou a perguntar a meu pai quando, afinal, o visitante levantaria acampamento. Não posso intimar um artista a ir embora, se defendia meu pai. Artista coisa nenhuma, replicava minha mãe, esse aí não passa de um vigarista. Uma opinião partilhada por muitos de nossos vizinhos. Schmil, por exemplo, não hesitava em dizer que meu pai deveria mandar embora o tal Solomon.
Uma noite acordei ouvindo doridos soluços. Vinham do quarto de Solomon, ao lado da sala onde eu estava dormindo. Com medo de que o homem estivesse passando mal, bati à porta. Não houve resposta. Hesitei um instante e entrei.
Ali estava o pintor, estirado na cama, ainda vestido, chorando. O que houve, perguntei em iídiche. Também em iídiche ele me disse que estava chorando de saudades da mulher e dos filhos, mortos havia exatos cinco anos, no campo de concentração.
Perguntei se podia fazer alguma coisa por ele.
Olhou-me, subitamente -e estranhamente- animado.
-Sim -disse-, há uma coisa que você pode fazer por mim.
Queria que eu convencesse a Lucila a vir a seu quarto. Você já é um homenzinho, disse, deve entender isso, faz muito tempo que estou sem mulher.
Eu não sabia o que dizer. A verdade é que estava com pena do homem, muita pena. E era tão sincera sua súplica que acabei indo até o quarto de Lucila. Cuja porta estava aberta, por causa do calor. Acordei-a, contei-lhe o que tinha se passado. De início ficou indignada: essa não, vê lá se vou dormir com aquele velho carcomido. Mas eu insisti. Expliquei que se tratava de um artista, e que os artistas não podem ficar frustrados. Mais: prometi-lhe meu relógio. Era um belo relógio, e Lucila cobiçava-o há tempos -não para si, para o namorado. Acabou aceitando. Deitei-me e, tapando os ouvidos, tratei de ignorar os gemidos que vinham do quarto.
No dia seguinte, Solomon anunciou que ia embora. Schmil tratou de recuperar as molduras. Ao receber os quadros, Solomon deu-me um de presente. Chamava-se "O Sentido da Vida". Traços, borrões, pingos: "O Sentido da Vida".
Solomon Kristol foi para o Estados Unidos e nunca mais ouvimos falar dele. Mamãe jogou fora o quadro que papai havia ganho, mas o meu eu guardei. Guardei-o por muitos anos. Um dia, para minha surpresa, vi numa revista uma grande reportagem sobre Kristol, recentemente morto. Tornara-se um artista famoso e seus quadros valiam uma fortuna.
Valiam mesmo, como constatei ao vender "O Sentido da Vida" para um marchand do Rio: com o dinheiro paguei o meu curso de medicina. Não todo o curso, naturalmente; o último ano correu por minha conta. Mas aí eu já estava trabalhando, já ganhava alguma coisa. E, principalmente, já sabia muito acerca do sentido da vida.


Moacyr Scliar é escritor, autor de, entre outros, "A Mulher Que Escreveu a Bíblia" (Companhia das Letras).



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