São Paulo, domingo, 17 de abril de 2005

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Ponto de fuga

Arte e reencarnação

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Isso só confirma o que eu venho dizendo -Hollywood não tem mais nenhum tipo de idéia nova." A frase é de John Carpenter sobre o atual "remake" de "Assalto à 13ª DP", filme que ele assinara em 1976. Frase acusadora, ou ressentida, talvez? Porque, vinda de quem vem, surpreende.
O original "Assalto à 13ª DP" é, ele próprio, uma paráfrase de "Onde Começa o Inferno", que Howard Hawks dirigiu em 1959, e deve bastante, sem dúvida, a "A Noite dos Mortos Vivos", de George Romero (1968). Carpenter é um cineasta que não hesitou em refazer alguns dos mais venerados "cults" do cinema fantástico: "O Enigma de Outro Mundo" (1982), "A Cidade dos Amaldiçoados" (1995) ou "Memórias de um Homem Invisível" (1992). Os resultados dessas retomadas, admiráveis, demonstram que uma boa idéia ou uma boa história podem ser sempre ressuscitadas e renovadas. As artes não cessam de reciclar invenções antigas, para reinventá-las.
Quantas obras-primas sucessivas não provocou, por exemplo, o "Don Juan" de Tirso de Molina [1584-1648]? Foi o período romântico, reiterado depois pelas posturas modernas, que insistiu na criação a partir do nada. Ainda assim, disfarçados, um livro renascia de outro, uma sonata ecoava em outra, uma tela surgia por trás de outra tela. As puras invenções maravilham, seu caráter inédito causa espanto: o prazer vincula-se ao inesperado.
As retomadas estimulam a criação de outro modo, que permite apreender e saborear transfigurações. O melhor lugar, para quem degusta, é o espaço vazio entre as obras que se espelham. Ali, no invisível e impalpável, elas se encontram.

Duplo
O princípio do "remake" baseia-se numa noção delicada: a semelhança. Quem a melhor intuiu, quem a melhor expôs, e isso numa obra literária, foi Proust [1871-1922]. Ele pressupõe que o lugar mais verdadeiro para a existência da obra não é nem a própria obra nem sua presença em nosso espírito, mas um terceiro lugar, uma terceira margem do rio.
A obra não se oferece apenas em sua existência material. Com essa idéia, Proust afasta dois fetichismos: o do objeto e o do original. Em seu modo de ver, a reprodução, mesmo fotográfica, adquire um papel nobre. Por conter, por trazer a semelhança da obra, a fotografia faz parte dela. Ainda que múltipla, a reprodução torna-se única graças à experiência do espectador: "Aquela que eu vi e vejo, que se encontra em minha mesa ou em minha parede", diz Proust. Nada de aura perdida, portanto, nada de preocupação com qualquer exposição às massas.
Proust encontra-se nos antípodas do célebre texto de Walter Benjamin [1892-1940] sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte. A arte existe na expansão de analogias e semelhanças, não em seus limites materiais ou de autoria. Um original é constituído pela reprodução, pela reiteração, pelo comentário, pela menção, pela evocação, pelo "remake". São modos profundos, e não substitutos vazios. Embora uma teoria do "remake" devesse assinalar a diferença com o princípio da reprodução, porque os "remakes" são obras verdadeiras, com seus poderes próprios.
De qualquer forma, criação ou retomada, a arte vive de representação ou, antes, de reapresentação.

Caso
O novo "Assalto à 13ª DP", de Jean-François Richet, não concorre com o original. Carpenter, com pouco dinheiro, com invenção ao mesmo tempo rigorosa e incessante, criou um ambiente árido nos subúrbios falsamente neutros de uma Los Angeles ensolarada. Richet reduz as cores ao claro-escuro, quase preto-e-branco. Cria um pesadelo de neve e de frio.

Tempos
Um é um, outro é outro: não vale a pena discutir inferioridade ou superioridade. O filme de Carpenter constitui uma referência insubstituível. O de Richet lhe presta homenagem. Richet embrulha mais os contrastes: não se pode confiar nas instituições, a polícia é corrompida. Cruzando bem e mal, bom e mau, faz brotar alianças éticas. Com soberbos atores, denuncia a falsa honestidade, a aparência do direito, a manipulação em escala ampla. Jean-François Richet nasceu num subúrbio pobre de Paris, começou a vida como operário e soube ver o avesso das coisas.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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