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Uma harmonia hostil
O romance "Lições de Abismo", de Gustavo Corção, ficcionaliza fraturas ideológicas e sociais
ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA
No espelhamento mais radical entre juízos e valores
opostos, é comum que os
nossos ganhem proveitosa
nitidez ao se confrontarem com os
alheios. Desse jogo de preto e branco
tiraram proveito, a partir dos meados do século passado, tanto o escritor Gustavo Corção (1896-1978)
quanto os admiradores e os inimigos de seu arquiconservadorismo
religioso e político, fartamente demonstrado em palestras, artigos de
jornal e livros de ensaios.
Em 1950, no entanto, tomou o autor outra via de expressão e publicou
um romance -"Lições de Abismo"
(ora na 15ª edição). É o diário que
João Maria, intelectual católico e
professor universitário, condenado
por um câncer, escreve em seus últimos meses de vida. Não é correto
confundir a personalidade do escritor com a de seu narrador; mas será
correto distingui-los até o fim, ignorando as raízes que se entrelaçam no
subsolo?
Do preto ao branco, não faltaram
ao escritor elogios máximos (Manuel Bandeira, numa carta, aventou
méritos para um Prêmio Nobel) e
repulsas de todo tipo, incluindo a do
silêncio e a do apagador. Houve
também uma crítico judiciosa de
Sérgio Buarque de Holanda, que não
se rende ao simplório preto-e-branco e avalia a estrutura romanesca
(precária), o nó dramático (inconvincente) e o desempenho retórico
(inegavelmente sedutor).
O preto-e-branco firma-se, no diário-romance, entre os previsíveis
campos da virtude ou do pecado, da
justificativa ou da culpa, da aparência e da essência, mas sobretudo entre o desejo de conhecimento e o
mistério do mundo. Uma obsessão
percorre o diário: a necessidade de
uma íntima "harmonia" (palavra-chave) do acordo da alma consigo
mesma, do ajuste entre o movimento da reflexão e a verdade última da
matéria pensada. Tal obsessão cola-se à crise do homem que está para
morrer e tem pouquíssimo tempo
para testar o alcance de sua fé e sua
capacidade de compreensão do
mundo.
A crise deriva também de uma penosa tentativa de conciliação entre
uma consciência que se vê a si mesma como ilustrada, superior e irônica e a outra penosa tentativa de amar
ao próximo, acima de toda a exterioridade e artifício que o determinam.
José Maria recorre a Júlio Verne para
a materializar a expressão "lições de
abismo": trata-se de uma expedição
ambiciosa, vertiginosa viagem ao
centro não da terra, mas do eu, através de suas inumeráveis camadas.
O espiritualismo e o racionalismo,
absolutizados ambos, disputam espaço no espírito e na conduta do
protagonista, em alternâncias que
relativizam o missionarismo público do jornalista e ensaísta Gustavo
Corção, que escreveu, por exemplo,
um artigo chamado "Tudo É Cinza"
referindo-se à lamentável fusão moderna do que antigamente (na Idade
Média, sobretudo) podia-se distinguir como genuínos preto e branco...
Se cabe uma especulação, parece
que, em "Lições de Abismo", Corção
buscou traduzir ficcionalmente a liberdade "existencialista" para crises
pessoais que não teriam espaço no
jornalismo de militância. Muito sintomaticamente, numa das passagens do diário, o protagonista se refere com hostilidade ao rebanho dos
que só dizem amém. Para o Corção
romancista, o leitor ideal não será
compulsoriamente um homem de
fé, mas um intelectual capaz de
acompanhar a profundidade da crise moral e da inteligência do autor,
as lições de retorcimento íntimo das
quais se mostra vítima e catedrático.
Sem dúvida, há no romance muita
matéria de interesse, para além do
incensamento ou da ojeriza que já
provocou e que nada ensinou. As
crises de José Maria não se passam
apenas nos "refolhos da alma" (embora não os esqueçam): encenam-se
no consultório médico, na rua da capital, no contato com a balconista de
um café, no Carnaval carioca. O protagonista já foi casado, se desquitou,
deu por seu um filho que não era, se
amasiou, tem momentos de volúpia
e de ciúme, de poesia e de sordidez.
Seu olhar se aplica com detalhamento na análise de cenas e pessoas,
e sua cultura filosófico-literária
mostra-se o tempo todo, em mil citações e alusões (uma fraqueza do
romance). Em várias experiências
vividas pelo professor José Maria há
exposição de fraturas ideológicas e
sociais que parecem ser detectadas
por um progressista: a exploração
do trabalho, o cinismo das fórmulas
de convívio social, o prestígio inquestionável do poderoso, os efeitos
da massificação. No entanto a ojeriza do narrador pelas indistinções do
coletivismo redunda no soerguimento de seu personalismo. Faz excelente parelha, pelo avesso, com a
apologia das massas num discurso
stalinista.
Há evidências de domínio do ritmo da linguagem, em momentos de
impregnação poética. A obsessão é
sempre a de chancelar a superioridade emotiva e intelectual de um eu
absorvente, que se quer totalizante
de si mesmo, a despeito dos incansáveis atritos consigo e com o mundo.
Como já houve quem comparasse
o autor com Machado de Assis, não
custa lembrar o conhecido conto "O
Espelho", onde o narrador machadiano demonstra que a "alma exterior", fixação que temos pelo mundanismo e suas recompensas, apaga
facilmente os traços da nossa "alma
interior", nossa suposta identidade
profunda. Gustavo Corção não subestima o peso da "alma exterior",
mas prefere mergulhar nos abismos
infinitos de José Maria, repudiando
toda e qualquer "mistura" de seu
magistério, contorcido e aristocrático, com a desordem do mundo. Será
um tema estranho aos nossos dias?
Alcides Villaça é professor de literatura
brasileira na USP.
Lições de Abismo
240 págs., R$ 34,90
de Gustavo Corção. Ed. Agir (r. Nova Jerusalém, 345, CEP 21042-230, Rio de Janeiro, RJ,
tel. 0/xx/21/3882-8200).
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