São Paulo, domingo, 17 de abril de 2005

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Uma harmonia hostil

O romance "Lições de Abismo", de Gustavo Corção, ficcionaliza fraturas ideológicas e sociais

ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No espelhamento mais radical entre juízos e valores opostos, é comum que os nossos ganhem proveitosa nitidez ao se confrontarem com os alheios. Desse jogo de preto e branco tiraram proveito, a partir dos meados do século passado, tanto o escritor Gustavo Corção (1896-1978) quanto os admiradores e os inimigos de seu arquiconservadorismo religioso e político, fartamente demonstrado em palestras, artigos de jornal e livros de ensaios.
Em 1950, no entanto, tomou o autor outra via de expressão e publicou um romance -"Lições de Abismo" (ora na 15ª edição). É o diário que João Maria, intelectual católico e professor universitário, condenado por um câncer, escreve em seus últimos meses de vida. Não é correto confundir a personalidade do escritor com a de seu narrador; mas será correto distingui-los até o fim, ignorando as raízes que se entrelaçam no subsolo?
Do preto ao branco, não faltaram ao escritor elogios máximos (Manuel Bandeira, numa carta, aventou méritos para um Prêmio Nobel) e repulsas de todo tipo, incluindo a do silêncio e a do apagador. Houve também uma crítico judiciosa de Sérgio Buarque de Holanda, que não se rende ao simplório preto-e-branco e avalia a estrutura romanesca (precária), o nó dramático (inconvincente) e o desempenho retórico (inegavelmente sedutor).
O preto-e-branco firma-se, no diário-romance, entre os previsíveis campos da virtude ou do pecado, da justificativa ou da culpa, da aparência e da essência, mas sobretudo entre o desejo de conhecimento e o mistério do mundo. Uma obsessão percorre o diário: a necessidade de uma íntima "harmonia" (palavra-chave) do acordo da alma consigo mesma, do ajuste entre o movimento da reflexão e a verdade última da matéria pensada. Tal obsessão cola-se à crise do homem que está para morrer e tem pouquíssimo tempo para testar o alcance de sua fé e sua capacidade de compreensão do mundo.
A crise deriva também de uma penosa tentativa de conciliação entre uma consciência que se vê a si mesma como ilustrada, superior e irônica e a outra penosa tentativa de amar ao próximo, acima de toda a exterioridade e artifício que o determinam. José Maria recorre a Júlio Verne para a materializar a expressão "lições de abismo": trata-se de uma expedição ambiciosa, vertiginosa viagem ao centro não da terra, mas do eu, através de suas inumeráveis camadas.
O espiritualismo e o racionalismo, absolutizados ambos, disputam espaço no espírito e na conduta do protagonista, em alternâncias que relativizam o missionarismo público do jornalista e ensaísta Gustavo Corção, que escreveu, por exemplo, um artigo chamado "Tudo É Cinza" referindo-se à lamentável fusão moderna do que antigamente (na Idade Média, sobretudo) podia-se distinguir como genuínos preto e branco...
Se cabe uma especulação, parece que, em "Lições de Abismo", Corção buscou traduzir ficcionalmente a liberdade "existencialista" para crises pessoais que não teriam espaço no jornalismo de militância. Muito sintomaticamente, numa das passagens do diário, o protagonista se refere com hostilidade ao rebanho dos que só dizem amém. Para o Corção romancista, o leitor ideal não será compulsoriamente um homem de fé, mas um intelectual capaz de acompanhar a profundidade da crise moral e da inteligência do autor, as lições de retorcimento íntimo das quais se mostra vítima e catedrático.
Sem dúvida, há no romance muita matéria de interesse, para além do incensamento ou da ojeriza que já provocou e que nada ensinou. As crises de José Maria não se passam apenas nos "refolhos da alma" (embora não os esqueçam): encenam-se no consultório médico, na rua da capital, no contato com a balconista de um café, no Carnaval carioca. O protagonista já foi casado, se desquitou, deu por seu um filho que não era, se amasiou, tem momentos de volúpia e de ciúme, de poesia e de sordidez.
Seu olhar se aplica com detalhamento na análise de cenas e pessoas, e sua cultura filosófico-literária mostra-se o tempo todo, em mil citações e alusões (uma fraqueza do romance). Em várias experiências vividas pelo professor José Maria há exposição de fraturas ideológicas e sociais que parecem ser detectadas por um progressista: a exploração do trabalho, o cinismo das fórmulas de convívio social, o prestígio inquestionável do poderoso, os efeitos da massificação. No entanto a ojeriza do narrador pelas indistinções do coletivismo redunda no soerguimento de seu personalismo. Faz excelente parelha, pelo avesso, com a apologia das massas num discurso stalinista.
Há evidências de domínio do ritmo da linguagem, em momentos de impregnação poética. A obsessão é sempre a de chancelar a superioridade emotiva e intelectual de um eu absorvente, que se quer totalizante de si mesmo, a despeito dos incansáveis atritos consigo e com o mundo.
Como já houve quem comparasse o autor com Machado de Assis, não custa lembrar o conhecido conto "O Espelho", onde o narrador machadiano demonstra que a "alma exterior", fixação que temos pelo mundanismo e suas recompensas, apaga facilmente os traços da nossa "alma interior", nossa suposta identidade profunda. Gustavo Corção não subestima o peso da "alma exterior", mas prefere mergulhar nos abismos infinitos de José Maria, repudiando toda e qualquer "mistura" de seu magistério, contorcido e aristocrático, com a desordem do mundo. Será um tema estranho aos nossos dias?


Alcides Villaça é professor de literatura brasileira na USP.

Lições de Abismo
240 págs., R$ 34,90 de Gustavo Corção. Ed. Agir (r. Nova Jerusalém, 345, CEP 21042-230, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/3882-8200).



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