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"O Pensamento Árabe na Era Liberal" analisa as interações e apropriações
entre filosofia européia, "modernismo islâmico" e nacionalismo
O enigmático Ocidente
PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA
De um lado, o islã assevera
expressar a vontade divina
acerca das dinâmicas sociais. Do outro, consolida-se o irreversível movimento da sociedade moderna na Europa -e,
posteriormente, no restante do planeta. Essa tensão marca as transformações pelas quais o Oriente Médio
passou a partir da invasão napoleônica do Egito, quando esses dois blocos se confrontam. Permeia, ademais, "O Pensamento Árabe na Era
Liberal", de Albert Hourani.
Em vez de ressaltar as escolas de
pensamento, o historiador britânico
destaca quatro gerações de pensadores, muçulmanos e cristãos, que refletem sobre como o ideário europeu adentrou o discurso intelectual
em árabe. A primeira fase (1830-1870) revela um período em que a
Europa não era vista como uma
ameaça, mas como um exemplo a
ser seguido.
Na segunda geração (1870-1900), a
Europa passa a ser tanto adversária
quanto modelo. No terceiro período
(1900-1939), verifica-se o fortalecimento do nacionalismo em resposta
à imposição do jugo estrangeiro. A
quarta etapa, desencadeada pela Segunda Guerra, é apenas delineada e
levanta questões a que os historiadores começam a responder agora.
Crise otomana
Analisam-se as interações e as
apropriações entre o pensamento
europeu, o "modernismo islâmico"
e o nacionalismo árabe e a evolução
das relações com a Europa, sempre
sob a ótica árabe -a obra não se
propõe a mostrar como os europeus
enxergavam o mundo árabe nem o
islã. Pondera-se ainda sobre o efeito
que a revolução científica na Europa
exerceu no mundo árabe e islâmico
e o fortalecimento da influência ocidental no Império Otomano.
Já na primeira metade do século
19, alguns teóricos defendiam a adoção de instituições ocidentais, mas é
a partir de 1860 que professores e
membros do governo compreendem a necessidade de reformar a estrutura otomana, em decadência havia pelo menos dois séculos devido
ao colapso do sistema de coleta de
impostos, à perda gradual de disciplina no Exército e à crise econômica provocada pela expansão européia para a Ásia e a América, entre
outros fatores.
Daí o destaque conferido ao papel
de Midhat Pasha na elaboração da
primeira Constituição otomana, em
1876, e à organização secreta fundada em Paris, em 1884, por Jamal Addin al Afghani (1838-1897) e por Muhammad Abduh (1849-1905), com o
intuito de empenhar-se na unidade
e na reforma do islã.
Ambos os pensadores defendiam
que o islã era compatível com os
avanços europeus, e Abduh alegava
que "a verdadeira civilização está em
conformidade com o islã". Discípulo
dele, apesar da mudança de relevo,
Muhammad Farid Wajdi acreditava
que "o verdadeiro islã está em conformidade com a civilização" (como
explica em "Almadaniyya wal Islam" -"A Civilização e o Islã"), mas
essas teses não visavam a discorrer
sobre eventuais méritos e deméritos
religiosos.
Indicavam, na realidade, a necessidade de uma interação inevitável e
de atualizar a interpretação da sharia
(conjunto de leis islâmicas). Sabe-se
que, há muito, autoridades religiosas e políticas justificam o fracasso
ou o sucesso de experiências locais
por meio da teoria islâmica tradicional do Estado, segundo a qual os Estados são virtuosos quando obedecem à sharia e, quando são virtuosos, são também estáveis.
Relações ambíguas
Hourani (1915-1993) traça uma sucinta evolução do nacionalismo árabe baseada no primado lingüístico e
nas reflexões de Rifaa Badawi Rafi
Attahtawi (1801-1873) acerca da matriz islâmica.
Não se omitem aqui a ambigüidade das relações com a Europa nem a
transferência de alvo dos nacionalistas, que, a princípio, enfrentam o domínio otomano, eventualmente
com a assistência e o interesse dos
europeus. E, em seguida, no período
entre guerras, a ocupação européia,
apesar da oposição tímida a que o
futuro país viesse a ser ocidentalizado -o que importava era a soberania. O livro foi lançado originalmente em 1962 e, no prefácio da edição
de 1983, Hourani reconhece que, à
época, algumas tendências não lhe
pareciam tão claras quanto 20 anos
mais tarde.
Por isso, nesta reedição, submeteu
o texto relativo aos prognósticos (essencialmente o último capítulo) a alterações. Quanto à tensão entre tradição islâmica e modernidade, que
perpassa essa obra de referência sobre o pensamento árabe no século 19
e no início do século 20, transcende
o período abordado e ainda hoje
suscita debates inconclusos.
Paulo Daniel Farah é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da USP.
O Pensamento Árabe
na Era Liberal
440 págs., R$ 52,00
de Albert Hourani. Trad. Rosaura Eichenberg. Companhia das Letras (r. Bandeira
Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002,
SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).
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