São Paulo, domingo, 17 de abril de 2005

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"O Pensamento Árabe na Era Liberal" analisa as interações e apropriações entre filosofia européia, "modernismo islâmico" e nacionalismo

O enigmático Ocidente

PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA

De um lado, o islã assevera expressar a vontade divina acerca das dinâmicas sociais. Do outro, consolida-se o irreversível movimento da sociedade moderna na Europa -e, posteriormente, no restante do planeta. Essa tensão marca as transformações pelas quais o Oriente Médio passou a partir da invasão napoleônica do Egito, quando esses dois blocos se confrontam. Permeia, ademais, "O Pensamento Árabe na Era Liberal", de Albert Hourani.
Em vez de ressaltar as escolas de pensamento, o historiador britânico destaca quatro gerações de pensadores, muçulmanos e cristãos, que refletem sobre como o ideário europeu adentrou o discurso intelectual em árabe. A primeira fase (1830-1870) revela um período em que a Europa não era vista como uma ameaça, mas como um exemplo a ser seguido.
Na segunda geração (1870-1900), a Europa passa a ser tanto adversária quanto modelo. No terceiro período (1900-1939), verifica-se o fortalecimento do nacionalismo em resposta à imposição do jugo estrangeiro. A quarta etapa, desencadeada pela Segunda Guerra, é apenas delineada e levanta questões a que os historiadores começam a responder agora.

Crise otomana
Analisam-se as interações e as apropriações entre o pensamento europeu, o "modernismo islâmico" e o nacionalismo árabe e a evolução das relações com a Europa, sempre sob a ótica árabe -a obra não se propõe a mostrar como os europeus enxergavam o mundo árabe nem o islã. Pondera-se ainda sobre o efeito que a revolução científica na Europa exerceu no mundo árabe e islâmico e o fortalecimento da influência ocidental no Império Otomano.
Já na primeira metade do século 19, alguns teóricos defendiam a adoção de instituições ocidentais, mas é a partir de 1860 que professores e membros do governo compreendem a necessidade de reformar a estrutura otomana, em decadência havia pelo menos dois séculos devido ao colapso do sistema de coleta de impostos, à perda gradual de disciplina no Exército e à crise econômica provocada pela expansão européia para a Ásia e a América, entre outros fatores.
Daí o destaque conferido ao papel de Midhat Pasha na elaboração da primeira Constituição otomana, em 1876, e à organização secreta fundada em Paris, em 1884, por Jamal Addin al Afghani (1838-1897) e por Muhammad Abduh (1849-1905), com o intuito de empenhar-se na unidade e na reforma do islã.
Ambos os pensadores defendiam que o islã era compatível com os avanços europeus, e Abduh alegava que "a verdadeira civilização está em conformidade com o islã". Discípulo dele, apesar da mudança de relevo, Muhammad Farid Wajdi acreditava que "o verdadeiro islã está em conformidade com a civilização" (como explica em "Almadaniyya wal Islam" -"A Civilização e o Islã"), mas essas teses não visavam a discorrer sobre eventuais méritos e deméritos religiosos.
Indicavam, na realidade, a necessidade de uma interação inevitável e de atualizar a interpretação da sharia (conjunto de leis islâmicas). Sabe-se que, há muito, autoridades religiosas e políticas justificam o fracasso ou o sucesso de experiências locais por meio da teoria islâmica tradicional do Estado, segundo a qual os Estados são virtuosos quando obedecem à sharia e, quando são virtuosos, são também estáveis.

Relações ambíguas
Hourani (1915-1993) traça uma sucinta evolução do nacionalismo árabe baseada no primado lingüístico e nas reflexões de Rifaa Badawi Rafi Attahtawi (1801-1873) acerca da matriz islâmica.
Não se omitem aqui a ambigüidade das relações com a Europa nem a transferência de alvo dos nacionalistas, que, a princípio, enfrentam o domínio otomano, eventualmente com a assistência e o interesse dos europeus. E, em seguida, no período entre guerras, a ocupação européia, apesar da oposição tímida a que o futuro país viesse a ser ocidentalizado -o que importava era a soberania. O livro foi lançado originalmente em 1962 e, no prefácio da edição de 1983, Hourani reconhece que, à época, algumas tendências não lhe pareciam tão claras quanto 20 anos mais tarde.
Por isso, nesta reedição, submeteu o texto relativo aos prognósticos (essencialmente o último capítulo) a alterações. Quanto à tensão entre tradição islâmica e modernidade, que perpassa essa obra de referência sobre o pensamento árabe no século 19 e no início do século 20, transcende o período abordado e ainda hoje suscita debates inconclusos.


Paulo Daniel Farah é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

O Pensamento Árabe na Era Liberal
440 págs., R$ 52,00 de Albert Hourani. Trad. Rosaura Eichenberg. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).



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