São Paulo, domingo, 17 de maio de 1998

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LIVROS
O olhar estrangeiro


Psicanalistas discutem em coletânea a xenofobia e o medo da diferença


MIRIAM CHNAIDERMAN
especial para a Folha

O antropólogo Pierre Clastres, nos seus estudos sobre os índios guayaqui, conta que nessas tribos os membros se designavam a si próprios como "os homens", reservando para os componentes de tribos vizinhas a expressão "ovos de piolho", "sub-homens" ou coisa pior. Ou seja, mesmo entre os ditos primitivos há um etnocentrismo. Assim começa seu texto Marcelo Viñar, psicanalista uruguaio, um dos que participam da importante coletânea "O Estrangeiro", organizada por Caterina Koltai.
O livro reúne os textos dos que participaram de um colóquio promovido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Pontifícia Universidade Católica, em 1994. Quase às vésperas do evento, ocorrera em Buenos Aires o atentado contra o centro cultural judaico, colocando em evidência a oportunidade do debate. São Paulo é uma cidade de imigrantes e, afirma Caterina Koltai na "Introdução", o evento ocorre quando do aniversário de 440 anos de sua fundação. Um jeito de homenagear essa cidade, onde os problemas relativos ao preconceito, à intolerância, tendem a se acentuar.
Jacques Hassoun, importante psicanalista francês, cita em seu texto o autor racista inglês H.S. Chamberlain: "As crianças pequenas, especialmente as menininhas muitas vezes dão mostras de um instinto infalível para reconhecer os judeus. Frequentemente, crianças, sem qualquer idéia do que seria um judeu, ignorando até mesmo sua existência, começam a chorar quando um indivíduo autenticamente judeu se aproxima delas".
Viñar relata que uma criança uruguaia, com clara ascendência européia denuncia, entre indignada e temerosa, sua repulsa a uma criança japonesa que entrou em sua classe. É preciso ter cuidado para não encontrar explicações instintivistas do racismo.
Radmilla Zygouris aponta que todos nós fomos ou somos um pouco xenófobos. A xenofobia se enraíza no universo infantil do medo: o medo e a rejeição do não familiar aparecem após o reconhecimento da imagem no espelho (estágio do espelho, nomeado por Lacan). Spitz, entre outros estudiosos, apontou que isso se dá por volta do oitavo mês. Antes disso, qualquer ser humano pode ser adotado pelo bebê. Medo do estrangeiro, xenofobia. É preciso entender a passagem da xenofobia ao ódio, ao racismo, à intolerância.
Mas, estranho paradoxo, a psicanálise nos ensina que a subjetividade se constitui a partir do Outro. Outro da linguagem, da ordem simbólica, pela qual somos determinados. Sim, com a descoberta do inconsciente passamos a ser habitados pelo estrangeiro em nós. Freud escreveu um belo texto em 1919 sobre o estranhamente familiar ("O sinistro", segundo a maioria das traduções), há várias referências a ele no decorrer do livro. O "estranhamente familiar" é um sentimento que nos invade quando algo irrompe nos limites entre mundo interno e mundo externo. Lacan falou em "extimidade", para falar de uma exterioridade íntima.
Luís Cláudio Figueiredo refere-se a Laplanche, para quem o processo de constituição das subjetividades se dá pelo encontro com a alteridade do adulto. Mas essa alteridade do adulto diz respeito à diferença do adulto para consigo mesmo, ou seja, da alteridade implicada no e pelo inconsciente do adulto como corpo estranho e estrangeirice própria -a alteridade do próprio. É nesse próprio que se estranha que o psicanalista trabalha. Daí o chavão comum: somos todos estrangeiros, ou a afirmação de que o psicanalista deve estar em permanente exílio.
Aliás, Ricardo Goldemberg começa seu ensaio lembrando uma frase do presidente argentino após o atentado contra o centro cultural judaico de Buenos Aires: "Hoje somos todos judeus". Nessa frase, provavelmente apesar das boas intenções, ficou evidente que há os argentinos, de um lado, e os judeus de outro. Goldemberg quer alertar sobre a posição: "Hoje somos todos estrangeiros", pois só se é estrangeiro na miragem criada pela própria segregação.
O fato é que esse oportuno livro deixa claro que a psicanálise não pode pairar acima do mundo no qual se insere. O tema do estrangeiro traz à tona conceitos nucleares da teoria psicanalítica, evidenciando quanto nossas miradas acontecem em um ir e vir em que pululam múltiplas determinações. Debruçar-se sobre questões tão dilacerantes de nosso contemporâneo só pode vir de uma firme convicção de que a psicanálise deve poder contribuir para um mundo onde seja possível a proximidade do estranho. Convicção que permeia todos os textos e norteia a organização do livro. Poder debruçar-se sobre o que no humano beira o inumano. Trabalhar com o morrer de nosso dia-a-dia -o lindo texto de Peter Pal Pelbart é sobre esse tema. Poder nomear o que dá náusea, o que horroriza. Poder defrontarmo-nos com o terror. Para não sermos agidos por repetições do que foi recalcado.


Miriam Chnaiderman é psicanalista, membro do departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, autora de "O Hiato Convexo - Literatura e Psicanálise" ( Brasiliense) e "Ensaios de Psicanálise e Semiótica".



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