São Paulo, domingo, 17 de maio de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PONTO DE FUGA
A cultura e o visível

JORGE COLI
especial para a Folha, em Paris

Ao inventar a grande pintura do Ocidente, Giotto fez surgir formas e obsessões individuais, subordinando-as, no entanto, às determinantes de uma cultura coletiva, que o artista renova, amplia e afirma. Este modo ambicioso e elevado perdurou até o século 19; Delacroix foi um de seus maiores representantes e também o último. Depois dele, haverá ainda pintores, mas é como se agora eles reduzissem o teclado de seus instrumentos ou se fechassem em campos pessoais. Ao celebrarem bicentenário do nascimento de Delacroix, neste 1998, os franceses preferiram, ao invés de uma imensa exposição acumulativa, a inteligência de várias mostras menores, multiplicando e dilatando questões. A principal delas ocorre no Grand Palais, em Paris, cobrindo somente os 13 anos finais do pintor. Houve uma tal acuidade na escolha das obras e a organização por temas resultou tão expressiva, que o gesto febril, impresso na tela pela marca do pincel, evidenciou-se como agente cada vez mais vital da forma e da cultura. Na sala derradeira foram reunidas "As Quatro Estações", emprestadas pelo Masp: tudo, na mostra, prepara e conduz o espectador a essas sublimes telas, últimas e incompletas, que revelam, "in progress", os poderes criadores do gênio.

PULSÕES - O bicentenário de Delacroix, pelas mostras e publicações que provocou, permite perceber melhor o romantismo francês. Menos melancólico ou "gótico" do que na Inglaterra; menos místico ou fantástico do que na Alemanha, ele nasce épico e brutalmente "realista", buscando forças furiosas de energia nos homens, nos animais, na natureza. São forças desencadeadas na violência de combates que, entretanto, suscitam a própria aniquilação, isto é, a morte na materialidade das feridas e das carnes que apodrecem, sem qualquer metafísica ou transcendência.
Baudelaire e Théophile Gautier foram, ao mesmo tempo, o produto e os melhores analistas contemporâneos desse romantismo feroz e deliquescente. A crítica de Baudelaire é mais conhecida; a de Gautier ressurge agora. Textos essenciais de ambos formam o recente "Correspondances Esthétiques sur Delacroix", editado pela Olbia.

SOLIDÃO - "Esqueçam tudo o que vocês viram no cinema", diz alguém em "Vampires", de John Carpenter, que busca renovar o mito dos dráculas. Envolve a Igreja Católica até a raiz dos cabelos, na boa tradição "gótica", protestante e anglo-saxônica do "Monge" de Lewis; constrói personagens cuja comicidade grotesca avança ao par da violência distanciada pelos próprios excessos; sexualiza tudo de maneira tão imediata, que as mordidas deixam os pescoços para descerem entre as coxas. O resultado é desigual, mas inquietante e amargo.

AMÉRICA - A estréia de Bidú Sayão no Metropolitan de Nova York, em "Manon", de Massenet (1937), foi gravada e chegou a circular em LPs piratas inaudíveis. Retorna bem restaurada em CD (Naxos). Bidú Sayão amadureceria o papel, como testemunha outra gravação, antológica, ao vivo, com Beecham na regência. Mas a vibração comovente da estréia e a juventude radiosa da voz são insubstituíveis.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli@correionet.com.br



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.